Big Science e Guerra Biológica:
dilemas de biossegurança e projetos de biodefesa em plasma frio na Europa
Doutora Fernanda Corrêa
Pesquisadora da linha de Tecnologias Emergentes e Disruptivas: métodos, teorias e práticas do Grupo de Estudo em Tecnologias de Defesa e Evolução do Pensamento Estratégico (GETED/ UNESP)
Big Science é um termo empregado por cientistas e historiadores da ciência cunhado no início da década de 1960 para se referir aos grandes programas e projetos estratégicos que, durante e após a Segunda Guerra Mundial, reuniram diversos talentos em recursos humanos, eram amparados por um complexo militar-industrial-acadêmico, receberam vultosos aportes financeiros dos Estados e impactaram profundamente no desenvolvimento e progresso científico e tecnológico das sociedades cujos objetivos ainda hoje são garantir a eficiência e a prontidão das Forças Armadas nos teatros de operações de guerra e a liderança política e econômica dos Estados no sistema de forças internacional. Dentre estes projetos e programas podemos citar o Projeto Manhattan de construção da primeira bomba atômica, o Programa Apollo que planejou e executou a chegada do homem à lua, o do Acelerador de Partículas LHC que descobre e analisa dados de partículas elementares e o projeto Genoma Humano que mapeou e identificou todos os nucleotídeos que compõem o genoma humano. A partir de projetos e programas estratégicos como estes, novas armas que estão na fronteira do conhecimento surgem e devido à sensibilidade envolvida se transformam em segredo de Estado. Experts apontam que este segredo é exatamente o produto final da Big Science.
Em regra geral, guerra biológica é definida como o emprego de agentes patógenos com potencial destrutivo em massa por meio de ações ofensivas causando doenças e mortes em pessoas e em animais e provocando danos ao meio ambiente e em materiais. Embora experimentos com herança genética sejam conhecidos desde o século XIX, avanços significativos que configuraram a denominada Revolução Biotecnológica datam a partir da década de 1970. Tanto na Primeira quanto na Segunda Guerra Mundial, houve experimentos envolvendo a manipulação de microorganismos patogênicos com o objetivo de desenvolver armas biológicas. Estas manipulações são conduzidas a partir de toxinas, bactérias, vírus, fungos entre outros microorganismos. Apesar do Protocolo de Genebra de 1925 proibir o uso de gases asfixiantes, tóxicos ou semelhantes e de armas químicas e bacteriológicas em conflitos armados internacionais, materiais, equipamentos e técnicas de produção, estocagem, propagação, experimentos, proteção e construção de arsenais biológicos foram aperfeiçoados, sobretudo, pela Alemanha nazista, a partir destas guerras.
Credita-se a este período o desenvolvimento da primeira geração de armas biológicas. A partir do início da Guerra Fria, em 1945, apesar das armas nucleares de destruição em massa moldarem as relações de poder no sistema internacional bipolarizado, as armas biológicas aperfeiçoadas se mantiveram no rol de opções de emprego militar dos Estados diante da hipótese de guerra total. Aqui temos a segunda geração de armas biológicas. Fontes históricas a partir de documentos estadunidenses desclassificados em 2017 revelaram que, em reunião em setembro de 1962 no âmbito da Operação Mangusto, idealizada pelos EUA para derrubar o regime comunista cubano, houve a sugestão de usar agentes biológicos disfarçados de substâncias de origem natural para destruir colheitas cubanas. Após os mais de dois mil documentos se tornarem públicos com a desclassificação, após a tomada de posse da presidência, Donald Trump voltou a classificá-los.
Conceitualmente, biotecnologia compreende áreas da ciência biológica que manipula microorganismos, plantas e animais com o objetivo de desenvolver práticas, processos, serviços e produtos com valor tecnológico agregado de interesse da sociedade para uso civil e militar. A terceira geração de armas biológicas surge com o advento da Revolução Biotecnológica a partir da década de 1970, na qual a recombinação genética de agentes patogênicos consolidou as armas biológicas na vanguarda científica e tecnológica do poder dos Estados. Fontes históricas revelaram que no início da década de 1970, a União Soviética deu iniciou a um novo programa estratégico de arma biológica no laboratório militar Compound 19 a partir da bactéria Bacillus anthracis, cuja infecção em humanos causa a doença Antraz. Apesar da produção, armazenamento e uso de armas biológicas de programas como estes serem proibidos pela Convenção sobre as Armas Químicas e Biológicas (BWC, sigla em inglês) de 1972, a União Soviética mesmo tendo assinado e ratificado o documento deu continuidade ao seu programa estratégico. Em 1979, uma epidemia de Antraz atingiu a antiga cidade de Sverdlovsk (atual Ecaterimburgo) no território russo provocando a morte de dezenas de pessoas. Após serem estabilizados, os esporos da bactéria são transformados em pó e podem ser facilmente transportados por aerossóis. Não intencionalmente, cientistas soviéticos teriam vazaram o pó do Antraz pelos dutos de ventilação para fora do laboratório provocando o acidente biológico. Embora nesta época já existisse vacina, os cientistas soviéticos estavam trabalhando para recombinar geneticamente cepas de Bacillus anthracis e tornar o Antraz resistente aos antibióticos. Tanto nos EUA quanto na União Soviética havia laboratórios militares especializados na produção de armas biológicas e no desenvolvimento de vacinas e medicamentos.
Após o fim da Guerra Fria e a hegemonia política-econômica-militar dos Estados Unidos no sistema internacional, surgiram teses acadêmicas respaldadas pela política internacional que anunciavam o fim das guerras convencionais e tratados, convenções e acordos internacionais que exigiam o fim ou a redução dos arsenais militares e seus respectivos orçamentos no mundo. Diante da então possibilidade remota de haver guerras nos moldes tradicionais, ou seja, entre Estados, foi proposto o alargamento da agenda de segurança internacional cujo termo novas ameaças (que de novas não tem nada) passou a englobar elementos que, direta ou indiretamente, podem impactar na segurança internacional, tais como grupos terroristas, organizações criminosas transnacionais, pirataria, conflitos étnicos e religiosos, desastres naturais, recursos minerais, violações aos direitos humanos, pandemias entre outros. Os investimentos em ciência tecnologia e inovação em defesa passaram a ser empregados pelos Estados com maior ou menor graus de apoio das empresas privadas para atender às velhas e às novas ameaças.
A partir dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, a hegemonia política-econômica-militar nos EUA passou a ser internacionalmente questionada e diversos Estados buscaram se rearmar numa corrida tecnológica que primava mais pela qualidade do que pela quantidade de armas e sistemas de armas. Neste sentido, no âmbito do desenvolvimento de armas biológicas cada vez mais sofisticadas e com melhor eficiência e rendimento nos teatros de operações, surgiram as armas de quarta geração como produto da fusão da Física Quântica com a Biologia Molecular: as armas de nanobiotecnologia. Nesta nova ciência fundida, unifica-se aminoácidos e proteínas gerando novos processos celulares, novos vírus e novas bactérias. As novas armas nanobiotecnológicas impactarão profundamente as guerras do futuro, que ao interagir com outras tecnologias emergentes com potencial disruptivo, como Inteligência Artificial, Robótica e/ou Internet das Coisas, transformarão os teatros de operações militares. Uma arma nanobiotecnológica do tamanho ou menor que um inseto pode injetar dosagens letais de patógenos recombinados geneticamente ou não à quilômetros de distância da sua base de controle remoto.
Indiscutivelmente, conforme demonstram os rankings internacionais de gastos militares, os EUA continuam liderando a corrida tecnológica a fim de garantir a manutenção da sua hegemonia política-econômica-militar no sistema internacional. Conforme mencionado, laboratórios que desenvolviam armas biológicas também se especializaram no desenvolvimento de vacinas e medicamentos. Muitos cientistas da extinta União Soviética que trabalhavam em laboratórios militares foram importados pelos EUA para trabalharem em seus programas e projetos estratégicos de biodefesa. Para maior e melhor compreensão sobre o termo biodefesa, cabe aqui conceituá-lo e distinguí-lo dos termos biossegurança e bioterrorismo. Consensualmente, biossegurança pode ser definida como um módulo, um processo, condutas e/ou um conjunto de ações que previvam, controlem, minimizem ou eliminem riscos inerentes às atividades de pesquisa, produção, ensino, desenvolvimento tecnológico e prestação de serviços, visando à saúde humana, animal e do meio ambiente. Biodefesa ou defesa biológica envolve o amplo espectro da segurança nacional e pode ser definida como o conjunto de medidas e ações militares contra ataques inimigos envolvendo agentes biológicos com a finalidade de restaurar a biossegurança. Bioterrorismo é a disseminação de microorganismos patógenos como bactérias, vírus, fungos ou toxinas que podem ser dispersos através do ar, da água ou de alimentos de forma deliberada e intencional no âmbito da dimensão psicossocial com a finalidade de provocar doença ou morte em populações, em animais ou no meio ambiente por meio de ações terroristas. Experts, apesar de reconhecer que quaisquer agentes patogênicos infeccioso pode ser transformado em uma arma biológica e que o bioterrorismo está no cerne nos debates e da opinião pública internacional atual, acreditam que não há muitos especialistas qualificados em bioterrorismo no mundo capazes de produzir e promover ataques ofensivos com armas biológicas.
O Projeto Escudo de Biodefesa promulgado em Ato em 2004 é um conjunto de contramedidas biomédicas dos EUA, como testes de diagnósticos, desenvolvimento de medicamentos e de vacinas para melhor capacitar os EUA diante de possíveis ataques químicos, biológicos, radiológicos ou nucleares (CBRN, sigla em inglês) e garanta o abastecimento de contramedidas médicas do Estoque Estratégico Nacional (SNS, sigla em inglês). Por meio deste Projetos, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) dos EUA está autorizado a adotar contramedidas não aprovadas e não licenciadas mediante a determinação de que exista experiência clínica satisfatória suficiente ou dados de pesquisa para que a Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA, sigla em inglês) aprove temporariamente o uso de medicamentos em uma emergência CBRN. Uma das justificativas apresentadas pelo presidente George W. Bush ao Congresso para a aprovação de projeto é que, como doenças provocadas por agentes CBRN ocorriam com pouca frequência, as empresas privadas não se sentiram economicamente motivadas a investir milhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento de vacinas e medicamentos nestas áreas. A partir da aprovação deste projeto, o governo federal pôde financiar em parceria com empresas privadas o desenvolvimento, a aquisição, o armazenamento e a distribuição de produtos médicos necessários para garantir a segurança dos Estados Unidos contra armas CBRN.
Envelope da carta que continha a bactéria Bacillus anthracis causadora da doença Antraz enviada ao Senador estadunidense Tom Daschle em 2001
Fonte: Folha de São Paulo, 2009
A propagação deliberada e intencional do Antraz nos EUA em 2001 e as preocupações constantes do governo Bush com o surgimento de pandemias motivaram também o sancionamento da Lei Pública nº 109-417 de 19 de dezembro de 2006 de Preparação para Pandemia e Todos os Riscos (PAHPA, sigla em inglês) com o objetivo de aperfeiçoar a saúde pública dos cidadãos estadunidenses e as capacidades de preparo e resposta médica para emergências deliberadas, acidentais ou naturais. Dentre as principais áreas deste Programa, se encontra a Autoridade de Pesquisa e Desenvolvimento Biomédico Avançado (BARDA, sigla em inglês), o qual é responsável pela aquisição e desenvolvimento de contramedidas médicas, em especial, as relacionadas ao bioterrorismo e à pandemias gripais e doenças emergentes e pela administração do Projeto Escudo de Biodefesa. Em 2013, o PAHPA foi autorizado novamente pelo Congresso. Vários debates entre os membros do Congresso, do governo federal e de empresas privadas sobre a aquisição ou o desenvolvimento de novas tecnologias biomédicas e capacidade de antecipação de ameaças emergentes surgiram diante da iminência da expiração do PAHPA em primeiro de outubro de 2018. Após o PAHPA ter sido revisado, o Congresso dos EUA aprovou a Lei Pública Nº 116-22 de 24 de junho de 2019 de Preparação para Pandemia e Todos os Riscos e Inovação Avançada (PAHPAIA). Além de autorizar novos programas de saúde pública e preparação médica para a preparação regional de saúde e parcerias militares e civis e autorizar novamente o financiamento e aperfeiçoamento das autoridades para programas de preparação médica e de saúde pública, o PAHPAIA também autorizou o uso do Fundo de Emergência de Saúde Pública caso seja declarada uma emergência de saúde pública ou determinada a existência de um potencial significativo para uma emergência de saúde pública e autoriza o financiamento antecipado para a compra de contramedidas médicas no âmbito do Projeto Escudo de Biodefesa e financiamento e apoio à pesquisa avançada e desenvolvimento de possíveis contramedidas médicas.
Em 2018, o governo dos EUA tornou pública a Estratégia Nacional de Biodefesa que em harmonia com o Memorando Presidencial de Segurança Nacional (NSPM, sigla em inglês) -14 esclarece os Estados Unidos estão administrando suas atividades de forma mais eficaz com o objetivo de avaliar, prevenir, detectar, preparar, responder e se recuperar de ameaças biológicas, coordenando esforços em biodefesa com parceiros internacionais, indústria, academia, entidades não governamentais e o setor privado. Expertsacreditam que o lançamento desta Estratégia tem contribuído significativamente na melhor capacitação e resposta para garantir a segurança da saúde pública e salvar vidas e na ampliação do portfólio de contramedidas médicas em biodefesa que envolvem não apenas vacinas e medicamentos como também testes de diagnósticos para informar a triagem e o tratamento, vacina pós-exposição para fornecer proteção rápida contra infecção, antitoxinas para neutralizar os efeitos tóxicos de bactérias e antibióticos de última geração para combater, sobretudo, ameaças novas e desconhecidas. Na Estratégia Nacional de Biodefesa, o governo assegurou que empenharia a promoção da inovação em todas as empresas nacionais de biodefesa para preparar os EUA para atender aos riscos e ameaças biológicas no futuro.
A pandemia do SARS-CoV-2 causadora da doença COVID 19 originada na China a partir de novembro de 2019, apesar de cientificamente comprovado não ser fruto de recombinação genética laboratorial, mas sim originada de um processo evolutivo natural, tem provocado profundas reflexões e debates acalorados na comunidade internacional sobre biossegurança e biodefesa. Em nove meses de pandemia, as estatísticas oficiais globais apontam que na presente data (28/08/2020) o SARS-CoV-2 foi responsável pela infecção de 24.466.482 e pela morte de 831.827 de pessoas. Complexos científico-tecnológico-militar-acadêmicos de diversos Estados estão mobilizados para a aquisição ou desenvolvimento de vacinas e medicamentos que, respectivamente, curem e tratem vítimas de COVID 19.
Os EUA lideram as estatísticas oficiais em número de infectados por COVID 19 com 5.900.407 e em número de óbitos estimados em 181.118 de pessoas. Diversos laboratórios e empresas biotecnológicas estadunidenses estão realizando pesquisas buscando desenvolver vacinas, as quais para serem comercializadas e aplicadas ao final da fase de testes em humanos precisam demonstrar que são seguras, eficazes e possuem poucos efeitos colaterais. Em regra geral, as vacinas têm que ser aprovadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), pelas agências sanitárias locais dos Estados. No entanto, devido ao atual caráter pandêmico do SARS-CoV-2, com a aprovação de Estados, a OMS e agências sanitárias locais, como a FDA, têm aprovado a comercialização antes mesmo da conclusão da comprovação da viabilidade científica assegurada pela fase de testes bem sucedidos em humanos.
Ainda que até hoje, a OMS não disponha de quaisquer dados ou indícios de que haja casos de enhancement (provocação ou agravamento da doença) em testes clínicos de vacinas candidatas contra o SARS-CoV-2 em humanos, é um grande risco econômico por parte dos Estados mobilizar somas vultosas de recursos financeiros na aquisição de vacinas ainda em desenvolvimento que não tenham concluído todas as fases de testagem. Em comunicado oficial, o governo dos EUA após aprovação da FDA solicitou um pedido inicial de compra da vacina BNT162b2 que ainda está em fase de testes por meio da parceria da empresa estadunidense Pfizer com a empresa alemã BioNTech ao custo total de US$ 1,95 bilhão. Caso a fase de testes em humanos esteja concluída até o final de 2020, as empresas deverão entregar cem milhões de doses este ano e estima-se que 1,3 bilhão de doses até o final de 2021.
Importante destacar que até agora a FDA não aprovou nenhuma vacina preventiva ou terapêutica para uso contra o SARS-CoV-2. Além da vacina candidata BNT162b2 fruto da parceria Pfizer- BioNTech, há outras vacinas candidatas contra o SARS-CoV-2 em fase de testes sendo desenvolvidas por instituições e empresas estadunidenses, tais como a vacina AZD1222 do Instituto Jenner da Universidade de Oxford, a vacina mRNA-1273 da empresa Moderna Therapeutics, a vacina Ad26COVS1 da Johnson and Johnson's, a vacina NVX-CoV2373 da empresa Novavxa, a vacina DNA INO-4800 da empresa da Inovio, vacina oral preventiva da empresa Vaxart, a vacina IPC-006 Novel Immunotherap da Corvus Pharmaceuticals, a AdCOVID da empresa Altimmune entre outras.
Novas evidências têm demonstrado que o SARS-CoV-2 já circulava em outros Estados além da China antes de novembro de 2019. Além disso, não há perspectiva para o fim da sua circulação do SARS-CoV-2 no planeta. Estes argumentos científicos ressaltam os dilemas da biossegurança na atualidade a medida que os Estados têm incentivado diversas empresas e instituições de biotecnologia e mobilizado vultosas somas de recursos humanos e econômicos no desenvolvimento de diversos tipos de vacina que contribuirão apenas para controlar a gravidade da doença que o vírus SARS-CoV-2 provoca nos organismos humanos.
Diante deste grave quadro pandêmico que o mundo vivencia com os SARS-CoV-2 e da alta possibilidade do surgimento de novas epidemias e pandemias, para além de vacinas e medicamentos, é imprescindível que governos, empresas e laboratórios prospectem novas tecnologias emergentes com potencial disruptivo e desenvolvam programas e projetos estratégicos no âmbito da Big Science com capacidade de eliminar ou inativar inúmeros microorganismos patogênicos com potencial epidêmico ou pandêmico tanto de ambientes e superfícies quanto de organismos humanos.
Aí sim os Estados estariam desenvolvendo planos estratégicos que tivessem por objetivos se antecipar ou minimizar riscos e ameaças de guerra biológica e se comprometendo com a apresentação de soluções definitivas aos dilemas de biossegurança atuais e do futuro.
É aqui que apresentamos o plasma atmosférico frio (CAP, sigla em inglês) como projeto estratégico de biodefesa com potencial tanto de antecipar ou minimizar riscos e ameaças de guerra biológica quanto de se configurar como um conjunto de soluções definitivas em práticas, processos e engenharia aos dilemas de biossegurança atuais e do futuro. Plasmas são considerados o quarto estado da matéria e estão presentes nas estrelas, nas auroras e nos raios, apresentando assim uma enorme quantidade de espécies altamente reativas, como íons, elétrons, radicais livres e nêutrons, os quais são excitados eletronicamente. Existem plasmas térmicos e plasmas não térmicos de baixas temperaturas. Estes últimos são, mais conhecidos como plasmas atmosféricos frios, podem ser controlados a uma temperatura próxima a temperatura ambiente, são capazes de modificar a propriedade da superfície de diversos tipos de materiais sem alterar os seus volumes, são geram resíduos após o uso e são gerados em reatores não térmicos a partir de diversos gases, como hélio, argônio, nitrogênio e misturas oxigenadas.
Originalmente, CAP é uma tecnologia russa que foi desenvolvida no início da década de 1990 para esterilizar vírus e bactérias de naves espaciais. Em 2001, a Alemanha também passou a dominar esta tecnologia e empregá-la na eliminação de vírus e bactérias da Estação Espacial Internacional (ISS, sigla em inglês). A partir de 2004, cientistas alemãs passaram a também empregá-la na esterilização de ambientes e superfícies médico-hospitalares da Europa. Estudos em diversos países têm também demonstrado a eficiência do CAP por meio da ionização parcial de gases na eliminação ou inativação de diversos tipos de vírus, bactérias, esporos, fungos e moléculas de odor. Dentre alguns dos muitos microorganismos patogênicos eliminados ou inativados pelo CAP, encontram-se: Enterococcus Mundtii, Influenza, Sincicial Respiratório, Adenovírus, Calicivirus, Candida albicans, Enterococcus faecium, Geobacillus stearothermophilus entre outros. As duas imagens a seguir demonstram a aplicação de CAP por meio do gás argônio. Na imagem a, temos a inativação de microorganismos bacteriológicos em jato de plasma de baixa corrente em uma placa de Petri, ou seja, placa rasa com tampa transparente utilizada em cultivo de células. A imagem b demonstra a visão central da descarga do jato através da placa de Petri.
Fonte: BALDANOV et Al, 2019
A empresa alemã Terraplasma GmbH, fundada em 2011 como spin-off do Instituto alemão Max Planck de Física Extraterrestre assegura que até hoje nenhuma espécie bacteriana encontrada apresenta resistência ao CAP, inclusive as bactérias resistentes à antibióticos, como Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Pseudomonas aeruginosa e Streptococcus agalactiae. O CAP também demonstra eficiência na degradação de toxinas. Em março de 2016, a Terraplasma GmbH fundou a startup Terraplasma Medical GmbH e, em abril de 2016, outra empresa alemã de segmento similar, a Dynamify GmbH, fundada em 2014, comprou 25% das ações desta startup. O objetivo destas duas empresas ao investirem na Terraplasma Medical GmbH era unir esforços para desenvolver um dispositivo biotecnológico para o tratamento médico de feridas crônicas e agudas provocadas por vírus, bactérias, esporos ou fungos usando CAP, o Plasma Care.
Diante do surgimento de diversos casos de vítimas de COVID 19 na Alemanha, em janeiro de 2019, a Terraplasma GmbH iniciou estudos de viabilidade científica de CAP em ensaios pré-clínicos e clínicos, respectivamente, objetivando verificar a capacidade de redução, eliminação ou de inativação da carga viral de SARS-CoV-2 e de bactérias secundárias em culturas celulares e em pacientes ventilados. Em março, a empresa iniciou os testes pré-clínicos em laboratórios de biossegurança em Munique e na Baviera em parceria com o grupo de trabalho von Brunn do Instituto Max von Pettenkofer e em junho deste ano, a Terraplasma GmbH divulgou os primeiros resultados apontando o sucesso do CAP na inativação de SARS-CoV-2 em culturas celulares em solução. Experts apontam que entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, após aprovação do comitê de ética alemão, a Terraplasma GmbH possa apresentar os primeiros resultados dos testes clínicos do CAP em pacientes ventilados com COVID 19.
Como mencionado, as vacinas em desenvolvimento na atualidade contribuirão apenas para controlar a doença provocada pelo vírusSARS-CoV-2. A relevância estratégica do CAP em biossegurança é a capacidade de dispositivos geradores de plasma frio inativar o SARS-CoV-2 e diversos outros tipos de microorganismos patogênicos, inclusive, multirresistentes à antibióticos, com potencial epidêmico e pandêmico em organismos humanos. A relevância estratégica do CAP em biodefesa é sua capacidade de usar o plasma frio para esterilizar materiais e equipamentos de emprego militar em centros de pesquisa e laboratórios militares e em ambientes operacionais de guerra biológica.
A Terraplasma GmbH é especialista em desenvolvimento de tecnologias com diferentes tipos de plasmas frio com múltiplas aplicações industriais. Um dos parceiros estratégicos da Terraplasma GmbH em biodefesa é o Instituto de Ciências da Defesa para Tecnologias de Proteção – Proteção NBC (WIS, sigla em inglês). O WIS é a única grande instituição da Alemanha que trata especificamente da proteção de pessoas, materiais, dispositivos e sistemas contra armas nucleares, biológicas e químicas de destruição em massa. Esta parceria estratégica está desenvolvendo um projeto em biodefesa de construção de uma câmara de descontaminação móvel com CAP para esterilização de equipamentos e sistemas termolábeis nos teatros de operações em guerras biológicas.
A IBATECH Tecnología, fundada em 2009, é uma empresa espanhola de engenharia especializada que também desenvolve projetos e produtos estratégicos em biodefesa com CAP. Em outubro de 2014, a IBATECH iniciou e liderou o projeto Quick Xor Technology for Cold-Plasm B&C Descontamination (QUIXOTE) no âmbito de um consórcio empresarial europeu com o objetivo de desenvolver e validar dois protótipos de câmaras fechadas portáteis de CAP de baixa potência (APPC, sigla em espanhol) para descontaminar materiais sensíveis, equipamentos, pessoal e instalações contra agentes químicos e biológicos em ambientes laboratoriais e em teatros de operações militares.
Parte externa da APPC
Fonte: IBATECH
Os resultados de testes realizados em diversos laboratórios de biossegurança certificados pela União Europeia comprovaram a capacidade do projeto QUIXOTE em eliminar ou inativar os seguintes agentes biológicos: Bacillus anthracis, Clostridium botulinum e Vibrio cholerae.
Interior da APPC
Fonte:IBATECH
O projeto Quixote foi financiado no âmbito do programa CBRN Joint Investment pela Agência Europeia de Defesa (EDA, sigla em inglês).
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