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Por que polícia não pode ter autonomia


Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos
Subprocurador-geral da República e docente
de Ciências Penais em Brasília
Republicação de O Estado de São Paulo
04 Agosto 2015

 
O Estado moderno é “o crime organizado que deu certo”. Mas, para isso, ele teve de se legitimar numa longa trajetória de revoluções, Constituições, declarações de direitos fundamentais e sufrágio popular – numa palavra, pela “domesticação” do Leviatã. Aspecto importante desse processo foi a proibição da violência para a solução de conflitos, instituindo-se o monopólio de sua utilização em favor do Estado. A polícia é, pois, o órgão de execução da violência legítima pelo Estado. Conferir-lhe autonomia é o mesmo que retroceder a um Estado policial dentro do Estado de Direito.

Não há exemplo no Direito Comparado ou na História de polícia autônoma em relação ao Estado nem de democracia que tenha sobrevivido a Forças Armadas ou policiais desvinculadas de controles. Aliás, democracia não convive com poder sem controle, sobretudo poder que tem o emprego de arma e violência como ferramenta de trabalho. O poder civil e desarmado controla o poder armado, que usa as armas em nome do povo.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 412/2009 assumiu inusitada celeridade e evidência a partir da Operação Lava Jato, também estimulada pelo lobby dos delegados federais, que a rotularam de “PEC da autonomia da PF”. Que autonomia? Autonomia para quem?

Em outubro de 2014, a presidente da República, em plena campanha eleitoral, quando os delegados federais planejavam uma “mobilização nacional”, assinou a Medida Provisória (MP) 657, convertida em lei, prevendo que o cargo de diretor-geral seja privativo de delegado da PF.

Qual teria sido a urgência capaz de justificar constitucionalmente a edição de tal medida provisória? Outras polícias de igual ou maior prestígio (FBI, Interpol, Scotland Yard) permitem que sua chefia seja exercida por qualquer pessoa com notável conhecimento de segurança pública, atributo não exclusivo nem presumível de delegados de polícia.

A PEC 412 prevê autonomia funcional, administrativa e financeira, inclusive à elaboração do próprio orçamento. A autonomia que interessa, a investigativa, a PF já tem de sobra. Ela investiga o que bem entende, sem nenhuma pressão política, o que lhe é conveniente, o que lhe dá visibilidade, isto é, casos de maior repercussão. Inquéritos ou diligências requisitadas pelo Ministério Público (MP) e pelos juízes, que em tese ela estaria obrigada a atender, são tratados com desdém.

Discricionariedade e seletividade descontroladas conduzem ao arbítrio, ao monopólio na definição do que deve ou não ser investigado, e reduzem a pó os princípios republicanos da isonomia, legalidade, obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal.

Se a PF já dispõe da autonomia investigativa que diz buscar, no fundo, o que almeja com essa PEC é o mesmo objetivo visado com tantas outras reivindicações normativas pretéritas e futuras: concentração de poder, isto é, atributos estranhos à função de investigar crimes. A autonomia facilmente se converteria em soberania, pois seria virtualmente impossível resistir às pretensões de uma polícia dotada de tamanhos poderes.
 
A falácia do discurso favorável à PEC 412 desnuda-se por inteiro quando se verifica que a propalada “autonomia da Polícia Federal” nada mais é que a autonomia dos delegados – se tanto. Os outros 2/3 dos policiais – peritos em diversas áreas, escrivães, agentes, a maioria feita de profissionais altamente competentes, muitos com pós-graduação em suas áreas – estarão sempre fadados a posições subalternas, porque só os delegados podem ocupar funções de direção. Há uma compreensão equivocada dos delegados de que só eles fazem parte da atividade-fim; os demais seriam meros coadjuvantes da função policial. Essa mentalidade gera uma estrutura elitista, preconceituosa e obsoleta no seio da corporação.

Cabe indagar que efeitos esperar dessa autonomia dos delegados, na absurda hipótese de a PEC 412 ser aprovada e o Supremo Tribunal Federal não derrubá-la por inconstitucionalidade, como já fez na Ação Direta de Inconstitucionalidade 882 com semelhante desvario ensaiado na Constituição de Mato Grosso.

Como seria o relacionamento de uma autarquia armada autônoma com o poder eleito? Como o Estado poderia definir e implementar políticas de segurança pública tendo de “negociar” com essa polícia? Um poder armado passaria a ter a prerrogativa de interpretar a Constituição e a lei sobre quando e como agir, pois, segundo a peculiar noção de Estado de Direito do presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal, não é republicano “querer subordinar uma instituição a outra”, mas só “à lei”.

Para ele, somente à entidade abstrata “sociedade” cabe a “vigilância para que a PF não seja desviada de sua finalidade”. A PF se converteria em órgão do monopólio da violência de si mesma, sem prestar contas a ninguém, com todo seu aparato de armamento, tecnologia e inteligência.

O que querem, afinal, os delegados? Apesar dos frequentes embates com o MP, na verdade querem ser juízes sem perder a direção da investigação policial, daí esta canhestra figura do “delegado-jurista”, que, junto com a hipertrofia da categoria, tem sido disfuncional à capacidade operacional das polícias.

O “delegado-jurista” vive o paradoxo de querer se aproximar do Judiciário e se distanciar das mazelas da polícia, mas sem abrir mão de uma pretensa exclusividade da investigação e da direção da corporação. Essa aspiração explica a ênfase na cultura jurídica na investigação, assim como o apego ao inquérito policial como uma espécie de reserva de mercado, cujo anacronismo como método de investigação já foi cantado em prosa e verso, parecendo que só persiste por instinto de sobrevivência dos delegados.

O céu é o limite para o projeto de poder das associações de classe. Pelo visto, o Brasil não quer nem precisa dessa monstruosidade, que bem poderia ser rotulada de “polícia jabuticaba”, porque só existiria aqui.

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