À medida que aumenta a diversidade entre os estudantes nos Estados Unidos, e em um momento de extrema polarização política, um debate vem crescendo nas escolas do país: que fatos e personagens históricos ensinar aos alunos.
Diversos Estados americanos estão revisando seus currículos para garantir que as aulas de Estudos Sociais (que englobam História e, dependendo da escola, disciplinas como Geografia, Economia, Ciências Políticas, Sociologia, Psicologia e Estudos Religiosos) incluam eventos e pontos de vista até então ignorados, como questões ligadas a minorias, e ressaltem o papel desempenhado por diferentes grupos e culturas na história do país.
Recentemente, pelo menos cinco deles passaram a exigir que os estudantes de escolas públicas aprendam sobre a história da luta por direitos da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros).
Os temas abordados incluem episódios como a revolta de Stonewall — em que membros da comunidade se rebelaram contra a invasão da polícia ao bar Stonewall Inn, em Nova York, em 1969 —, considerada um marco histórico.
Em Nebraska, por exemplo, aulas sobre a expansão da fronteira americana para a Costa Oeste passaram a incluir as diferentes perspectivas envolvidas, abordando relatos não apenas dos pioneiros, mas também dos povos indígenas deslocados.
O Estado aprovou no fim do ano passado novas orientações para o ensino de Estudos Sociais em escolas públicas, Vários fatos e personagens históricos antes deixados de lado vêm sendo incorporados aos currículos.
No estudo sobre a Segunda Guerra Mundial, alunos agora aprendem sobre a atuação dos Tuskegee Airmen, grupo de pilotos de elite das Forças Armadas americanas formado somente por negros, em uma época em que o país vivia sob leis de segregação racial.
Em muitas escolas, há lições sobre os líderes trabalhistas latinos Cesar Chavez e Dolores Huerta e sua atuação no United Farm Workers, sindicato que lutou por melhores condições para os trabalhadores rurais a partir dos anos 1960.
A presidente do National Council for the Social Studies (Conselho Nacional para os Estudos Sociais, ou NCSS, na sigla em inglês), Tina Heafner, diz à BBC News Brasil que, com a maior diversidade entre os estudantes americanos, muitos desses alunos não se viam refletidos nos currículos.
Segundo Heafner, há, atualmente, a consciência de que o currículo de Estudos Sociais não era inclusivo no passado e de que é necessário questionar que vozes são integradas e que vozes estão silenciadas. "Há a percepção de que nossas práticas tradicionais não prepararam bem os estudantes para o que é exigido deles atualmente na vida em sociedade", afirma.
A presidente eleita do NCSS, Stefanie Wager, afirma que há um desejo de incluir aspectos que reflitam não apenas as identidades dos estudantes, mas também as identidades dos outros.
"Mesmo que em uma escola todos os estudantes sejam brancos, o currículo ainda assim deve refletir a diversidade do mundo, porque nós precisamos oferecer janelas para (que os estudantes possam) ver outras pessoas."
Polêmicas
Mas esses esforços muitas vezes são recebidos com polêmica, especialmente em um momento de grande polarização política no país. Segundo Wager, alguns tópicos em particular costumam gerar mais controvérsia, entre eles temas ligados à comunidade LGBT e à Guerra Civil (especialmente no Sul do país).
"E quando há uma lista de pessoas (figuras históricas incluídas nos currículos), muitas vezes há o questionamento sobre quantas dessas pessoas são democratas e quantas são republicanas, e se há um número igual de democratas e republicanos", diz.
No Estado de Michigan, iniciativas recentes para incluir nas aulas de Estudos Sociais temas relacionados aos direitos da comunidade LGBT e às mudanças climáticas foram denunciadas por grupos conservadores, que reclamaram que as mudanças davam menos espaço à importância da influência cristã na história americana.
Alguns políticos sugeriram que as escolas deveriam equilibrar lições sobre direitos LGBT com o ensino de direitos de consciência religiosa.
No Texas, diversas alterações propostas em 2018, entre elas a de retirar do currículo personagens como a ex-candidata presidencial democrata Hillary Clinton, a ativista por direitos das pessoas com deficiência Helen Keller e o profeta Moisés, geraram meses de controvérsia, com protestos tanto de grupos conservadores como liberais, e acabaram sendo derrubadas.
O objetivo inicial das mudanças no Texas era responder à reclamação de professores, que diziam não ter tempo para cobrir todos os assuntos previstos no currículo e que, com isso, os estudantes acabavam simplesmente memorizando os temas em vez de realmente aprenderem.
O Conselho de Educação do Estado reuniu então um grupo de trabalho formado por professores, historiadores e especialistas em educação para analisar o currículo em vigor (que havia sido atualizado em 2010 e já era alvo de críticas) e recomendar cortes.
Além de retirar várias figuras históricas, o grupo de trabalho também debateu mudanças em diversos temas. No ensino da Guerra Civil, por exemplo, a escravidão, até então citada como uma entre várias causas, deveria passar a ser descrita como tendo papel central. Outra sugestão, a de retirar os "direitos dos Estados" entre as causas da guerra, foi derrubada.
Apesar de o objetivo da revisão no Texas ter sido simplificar o currículo e dar mais flexibilidade aos professores, as mudanças provocaram ataques tanto da direita quanto da esquerda, que viram nas propostas a tentativa de impor pontos de vista políticos ao que é ensinado aos alunos.
Vários outros Estados registraram polêmicas semelhantes recentemente. Até mesmo a questão sobre como descrever o governo americano costuma ser alvo de controvérsia: republicanos preferem "república constitucional", democratas preferem "democracia".
Apesar de historiadores dizerem que os Estados Unidos são tanto uma república quanto uma democracia representativa, diversos Estados, entre eles Michigan e Texas, enfrentaram polêmicas recentes sobre qual dos termos as escolas devem usar.
Mesmo em redutos liberais, como a Califórnia, as mudanças enfrentam resistência. Apesar de o Estado determinar desde 2011 o ensino da história da luta pelos direitos LGBT nas escolas públicas, até hoje muitas não incluíram o tema em seus currículos, diante da relutância de alguns pais, que argumentam que temas ligados a sexualidade e gênero devem ser ensinados em casa.
Divisões políticas
As orientações sobre o que deve ser ensinado nas aulas de Estudos Sociais em escolas públicas americanas são revisadas periodicamente. Como não há um currículo nacional obrigatório, cabe aos Estados determinar o que seu alunos devem aprender, e a maioria promove atualizações a cada cinco ou sete anos.
O processo varia em cada Estado, mas em geral o Conselho de Educação cria grupos de trabalho formados por especialistas para analisar o material em vigor e sugerir mudanças, que são então submetidas a comentários do público antes de serem aprovadas.
Mas como os membros dos conselhos costumam ser eleitos e pertencer a um dos dois principais partidos (Republicano ou Democrata), é comum que essas revisões sejam marcadas por divisões políticas.
"Em alguns Estados, além de passar pelo Conselho de Educação, as mudanças também precisam ser aprovadas pelo Poder Legislativo estadual. Muitas vezes, nesses Estados, é mais difícil aprovar as mudanças, porque mais pessoas precisam concordar. Torna-se um pouco mais político", diz Wager.
De acordo com ela, quanto mais específicas as orientações, mais polêmico o processo costuma ser.
"Um dos motivos (das controvérsias) no Texas e nesses outros Estados é a inclusão de uma lista muito específica (de personagens, datas, locais e fatos históricos que devem ser ensinados). Outros Estados têm orientações menos específicas, não incluem nomes ou lugares, apenas conceitos mais amplos."
As orientações oficiais servem para guiar os professores no planejamento das aulas, esclarecendo que temas devem ser incluídos e como devem ser abordados. Mas não costuma haver fiscalização para garantir que todos os professores estão seguindo o currículo oficial.
E defensores dos cortes recentes no material previsto em Estados como o Texas ressaltam que isso não significa que os temas cortados passam a ser proibidos, mas simplesmente que não são mais obrigatórios. As escolas têm liberdade para ensinar material que não está incluído.
Mas os testes aplicados aos alunos do Estado costumam ser baseados nessas orientações, e muitos professores afirmam não ter tempo para cobrir o material que não cai nos testes.
A decisão sobre o que ensinar aos alunos de escolas públicas nas aulas de Estudos Sociais sempre provocou polêmica, e reflete a divisão dos americanos sobre que fatos históricos e valores cívicos os estudantes devem aprender. Temas como imigração, direitos civis, identidade americana e tantos outros costumam dividir conservadores e liberais.
Heafner ressalta que o processo sempre foi politizado. "Sempre houve esforços para controlar o conteúdo nos currículos para servir à maioria política daquele período", afirma.
Mas especialistas veem uma mudança mais ampla em curso, em um momento em que a educação cívica ganha importância diante do clima de divisão política no país. "Por muitos anos, os Estudos Sociais foram marginalizados nos Estados Unidos (em comparação com outras disciplinas)", diz Wager.
Ela diz perceber um ressurgimento no interesse pelo tema, especialmente desde a eleição de 2016. "[Há interesse em discutir] a importância dos Estudos Sociais para entender tantas coisas, entender o mundo em que vivemos, para a capacidade de conversar sobre política e sobre temas polêmicos, de entender quem você é como pessoa e qual a sua cultura."
"Durante centenas de anos, os Estados Unidos tentaram se orgulhar de serem (uma sociedade) diversa e multicultural. É importante que os Estudos Sociais que os estudantes aprendem reflitam isso", ressalta Wager.