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‘Não há nada que o Brasil ganhe se metendo num vespeiro no Oriente Médio’, diz ex-chanceler de Temer

Para o ex-chanceler brasileiro Aloysio Nunes, o Brasil não tem nada a ganhar ao romper sua tradição de neutralidade e se alinhar com os Estados Unidos no atual momento de tensão do país com o Irã. "Não há nada, nada, que o Brasil ganhe com isto, nos metendo num vespeiro no Oriente Médio", disse Nunes à BBC News Brasil na quarta-feira (08).

O governo brasileiro tem demonstrado apoio aos Estados Unidos nas hostilidades com os iranianos — aprofundadas quando uma operação militar norte-americana matou o general iraniano Qasem Soleimani, na última sexta (03). O Ministério das Relações Exteriores (MRE), hoje comandado pelo ministro Ernesto Araújo, divulgou nota logo após a morte de Soleimani apoiando a "luta contra o flagelo do terrorismo" e condenando os ataques recentes à Embaixada dos Estados Unidos em Bagdá, no Iraque.

A mesma posição de apoio aos americanos foi depois reiterada pelo presidente Jair Bolsonaro — e o MRE lançou uma circular interna pedindo a diplomatas brasileiros que não participassem de qualquer demonstração pública de condolências pela morte de Soleimani.

A chancelaria brasileira fez mais um gesto de afastamento do Irã ao cancelar uma reunião que a encarregada de negócios da embaixada brasileira em Teerã, Maria Cristina Lopes, realizaria nesta quarta (08).

Na segunda-feira, a diplomata já tinha sido convocada pelo governo iraniano a prestar esclarecimentos sobre a nota do Itamaraty em apoio aos EUA.

Aloysio Nunes comandou o Itamaraty de março de 2017 até o fim de 2018, no governo de Michel Temer (MDB). Ele lembra que o Brasil tem interesses comerciais no Oriente Médio — os países da região, inclusive o Irã, estão entre os principais compradores de produtos agrícolas brasileiros.

"Não há nada, nada, que o Brasil ganhe com isto, nos metendo num vespeiro no Oriente Médio. Onde nós temos muitos interesses sim. De natureza comercial, além dos interesses políticos. Os países do Oriente Médio estão entre os maiores importadores nossos de produtos do agronegócio", diz ele.

"Nós estamos nos metendo num vespeiro de uma região onde há interesses estratégicos, geopolíticos, religiosos, que formam um quebra-cabeça inextricável (que não pode ser desembaraçado) para quem não entra lá com uma ideia simples na cabeça. E a ideia simples é a defesa da paz, do diálogo, do direito internacional. Que nos permitia andar naquele formigueiro sem sermos molestados. É o que nós temos feito ao longo das últimas décadas", diz ele.

"Eu mesmo fiz uma viagem, nos últimos tempos da minha gestão. Fui a Ramallah (na Cisjordânia), fui a Amã (capital da Jordânia), fui a Beirute (capital do Líbano), fui a Jerusalém. Conversei com as mais altas autoridades de cada um desses países sem nenhuma… sem que ninguém questionasse a posição tradicional do Brasil em temas como a solução dos Dois Estados (no conflito entre judeus e palestinos), da resolução pacífica (de conflitos), do respeito às resoluções das Nações Unidas", diz Nunes.

"Portanto, para uma região complexa, ideias simples. Nós não temos nada a ganhar (abandonando a neutralidade que caracteriza a política externa brasileira), diz o ex-chanceler.

Jair Bolsonaro comentou a escalada de tensões entre os EUA e o Irã algumas vezes ao longo da semana — e em várias ocasiões criticou as relações mantidas pelo governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) com a república islâmica.

Disse, também, que o Brasil trabalha para manter a paz. "Nós temos que seguir as nossas leis. Nós não podemos extrapolar. Mas acredito que a verdade tem que fazer parte do nosso dia a dia, porque nós queremos a paz no mundo", disse Bolsonaro, na quarta-feira (08).

No dia anterior, Bolsonaro disse a repórteres que deseja manter as relações comerciais do Brasil com o país do oriente médio. "Temos comércio com o Irã e vamos continuar (…). Eu quero saber uma coisa: o Irã adotou alguma medida contra nós? Eu acho que não", disse o presidente.

A reportagem da BBC News Brasil também procurou o Itamaraty por meio da assessoria de imprensa do órgão, para comentários sobre as críticas feitas por Aloysio Nunes. A pasta respondeu apenas que já manifestou-se "sobre os acontecimentos no Iraque e a luta contra o terrorismo na nota nº 1/2020", mencionada neste texto.

'Até mais ideológico que o PT'

Para Aloysio Nunes, que também foi senador pelo PSDB de São Paulo (2011-2019) e ministro da Justiça no governo do tucano Fernando Henrique Cardoso (2001-2002), a única explicação para o alinhamento do Brasil a Washington é um "impulso de natureza ideológica".

"É a ideia de que o Trump é o nosso aliado, de que estamos sobre a proteção do mesmo Deus, o Deus de Trump, para combater o globalismo, o comunismo, o laicismo, essas coisas. Que são, como você sabe (na visão deles), destruidoras da civilização ocidental. Não tem outra razão, a não ser a motivação ideológica", avalia o ex-ministro.

"Ou seja, se criticava o PT por determinadas atitudes da política externa, que respondiam somente à ideologia, mas estamos indo muito além, no atual governo. E num tema da maior delicadeza, que é o tema da guerra e da paz. Nos afastando de uma linha da qual nunca nos afastamos, mesmo quando os EUA nos pressionaram para estar do lado deles, nas batalhas que eles travaram mundo afora", diz ele.

"Acho que é até por isso que o governo norte-americano nos respeita, ou nos respeitava. Nunca foi (o governo brasileiro) caudatário (da política externa dos EUA). (…) Tirando a época do PT, em algumas fases, onde prevaleceu um certo antiamericanismo ginasiano, desde o Barão do Rio Branco (José Maria da Silva Paranhos Júnior, 1845-1912) o Brasil sempre estimou a importância de termos boas relações, relações produtivas com os Estados Unidos", diz.

Pacifismo é tradição de nossa política externa, diz professor

Um alinhamento tão forte aos Estados Unidos não é adotado pelo Brasil desde a redemocratização, nos anos 1980, diz Leandro Consentino, professor de ciência política e relações internacionais do Insper.

"É algo inédito, na Nova República (desde 1988), um alinhamento automático tão forte a um lado, o dos Estados Unidos. Já tivemos no passado pontos de alinhamento aos EUA, nos governos de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) e Castelo Branco (1964-1967). Mas desde a redemocratização, o perfil da política externa brasileira tem sido mais pragmático", diz Consentino.

"Desde então, temos buscado uma relação boa com os Estados Unidos, mas mantendo o nosso espaço de manobra", diz ele.

A tradição da política externa brasileira está assentada em três pilares: universalismo, respeito ao direito internacional e pacifismo, diz o professor de relações internacionais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da FGV, Guilherme Casarões.

Na avaliação dele, os três fundamentos são comprometidos pela adesão da política externa brasileira aos planos de Donald Trump.

"Universalismo consiste em ter uma boa relação com todos os países, ou com o maior número possível de países. O Brasil nunca se prendeu a nenhum lado de nenhuma briga e nunca fechou portas para ninguém. E isto vem sendo rompido com o governo Bolsonaro. Essa é uma decisão que Ernesto Araújo já abriu (tornou pública), de maneira óbvia, quando disse que o universalismo 'tirava a alma' da política externa brasileira", diz ele.

"A outra questão é o multilateralismo, isto é, o respeito ao direito internacional. A ação de Trump foi super polêmica. Fazer o assassinato de um líder de uma organização estatal, é algo raro na história recente. É diferente de lutar contra o terrorismo — e os EUA mataram o (Osama) Bin Laden (da Al-Qaeda, em 2011), mataram o (Abu Bakr) al-Baghdadi (do Estado Islâmico, em 2019), mas nesse caso estamos falando do líder da força militar de um país", diz ele.

"E por fim tem o terceiro pilar, o pacifismo, isto é, a ideia de que o governo brasileiro, ou o Brasil, não se envolve em conflitos internacionais de maneira direta. O repúdio a qualquer ação militar, de qualquer natureza, sempre foi uma marca da política externa brasileira, e isso também está sendo colocado de lado", diz Casarões.

"Esta última é uma das marcas mais importantes da política externa brasileira em todo o período republicano. Fora as duas guerras mundiais, o Brasil nunca participou de nenhuma ação militar iniciada fora do contexto das Nações Unidas", diz Casarões.

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