Quando subir ao púlpito do plenário da Organização das Nações Unidas (ONU) para abrir a 74ª edição da Assembleia Geral, nesta terça-feira, 24, o presidente Jair Bolsonaro deve reposicionar o Brasil no xadrez global, diante dos líderes de outros 192 países.
Há exatos 70 anos, em 1949, o diplomata brasileiro Oswaldo Aranha fazia pela primeira vez a abertura do encontro de nações, inaugurando a tradição que, historicamente, daria ao Brasil a prioridade sobre o microfone e enunciando valores que norteariam a participação do país na ONU: o multilateralismo, uma agenda comprometida com a neutralidade e a mediação diante de conflitos internacionais.
Sete décadas mais tarde, às vésperas de completar 10 meses de mandato, Bolsonaro enfrentará expectativa oposta em relação ao seu discurso inaugural na ONU.
Bolsonaro falará logo depois do secretário-geral da ONU, o português António Guterres, e imediatamente antes do discurso do mandatário do país anfitrião, os Estados Unidos, de Donald Trump, o que aumentará ainda mais a audiência das palavras do presidente.
Desde que assumiu, Bolsonaro vem operando uma alteração profunda na política internacional brasileira, combatendo o que chama de globalismo, climatismo, ideologia de gênero e defendendo o que denominou de "verdadeiros direitos humanos" – a defesa de valores religiosos e o princípio da família tradicional.
"É o primeiro governo eleito democraticamente em um século que diz abertamente que veio romper com as tradições diplomáticas brasileiras", afirma Guilherme Casarões, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas.
O cenário preparado para o discurso na ONU não é favorável ao brasileiro. "Tá na cara que vou ser cobrado", admitiu o próprio presidente em uma live de rede social na última quinta-feira. Queimadas na Floresta Amazônica somadas à promessa (não cumprida) de Bolsonaro de que sairia do Acordo do Clima de Paris, de sua intenção (não concretizada) de fechar o Ministério do Meio Ambiente, do desestímulo às ações de fiscalização e aplicação de multas por crime ambiental pelo IBAMA e aos reiterados questionamentos da cúpula do governo sobre a importância da ação humana em relação ao aumento de temperatura do planeta, levaram a França a censurar publicamente o Brasil, há cerca de um mês.
"A Amazônia absorve 14% do CO2 mundial. A perda do primeiro pulmão do planeta é um problema mundial", tuitou o presidente francês Emmanuel Macron. O governo brasileiro viu na mensagem um questionamento a sua soberania. O tom subiu a ponto de Macron dizer que o Brasil não tinha um líder "à altura do posto"e de Bolsonaro fazer comentários considerados ofensivos sobre a primeira dama francesa em redes sociais.
Por fim, o presidente deverá tentar desvincular as queimadas na Amazônia do fenômeno do aquecimento global. O chanceler Ernesto Araújo, um dos que levantam controvérsias sobre a importância da ação humana na mudança climática, tem tentado minimizar o impacto global da Amazônia ao dizer que a devastação da floresta seria responsável por 2% de todas as emissões de CO2 no mundo.
Isolamento
O discurso sugerirá que o Brasil se tornou vítima do que o governo considera ser um alarmismo climático, ou climatismo, uma face do chamado globalismo que a gestão Bolsonaro busca combater: a captura de organismos internacionais por determinados interesses – o chamado marxismo cultural, a destruição do modelo tradicional de família, dos valores religiosos e do conceito de nação e fronteiras – e a tentativa de impor tais interesses ao Brasil.
Extremamente minoritária no Itamaraty, essa linha de explicação sobre os arranjos internacionais tem sido enunciada pelo ideólogo do governo, o escritor Olavo de Carvalho, e frequentemente adota tons conspiratórios para se referir ao mundo globalizado, chamado por Araújo de "o sistema".
'É um momento importante porque o Brasil vai dizer ao mundo o que pensa. O Brasil chega em uma posição defensiva, e o presidente deveria deixar claro qual é a sua política para o meio ambiente. Apenas reafirmar a soberania do Brasil não é suficiente. Esse governo foi eleito com uma agenda diferente das posições de direitos humanos, de liderança em meio ambiente, e tem legitimidade para tomar as medidas que achar que deve tomar.
Mas deve lembrar que as posições que adota em política externa têm consequências" afirmou à BBC News Brasil o embaixador Rubens Barbosa, que liderou a embaixada em Washington por quase 5 anos durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
Dentre as consequências estaria o isolamento. De acordo com um embaixador que falou à BBC em condição de anonimato por temor de represálias, esse risco já está no horizonte.
"Mudanças climáticas são um tema sensível para todo mundo: árabes e israelenses, russos, americanos e chineses. Acho perigoso não percebermos que estamos nos isolando, que as palavras têm um peso importante e que estamos enfrentado o resultado do que esse governo optou por dizer – considerando o meio ambiente um assunto menor.
Falta sensibilidade para entender que seguir nesse caminho ideológico não é bom para o Brasil. Estamos destruindo um capital precioso e, quando o governo se der conta disso, vai ser difícil limpar o picadeiro", afirmou.
Especialistas e integrantes do Itamaraty ouvidos pela reportagem consideram pequena a possibilidade de que as delegações se retirem durante o discurso de Bolsonaro – o que seria uma humilhação sem precedentes para o país. Algumas embaixadas na Europa chegaram a fazer sondagens com os representantes desses países para apurar a possibilidade de um ato hostil.
"Os interesses financeiros devem pesar para evitar que algo assim aconteça. Mas, de qualquer forma, os países não precisam desse instrumento para punir o Brasil. O parlamento austríaco já rejeitou o acordo Mercosul-União Europeia, o castelo de cartas começa a ruir", diz o embaixador, em referência ao acordo comercial fechado durante a reunião do G-20, em junho, e que depende da aprovação unânime dos parlamentos dos países da União Europeia pra ser ratificado.
Alinhamento aos Estados Unidos
Na primeira fileira do auditório da Assembleia Geral da ONU, enquanto Bolsonaro falar, estará sentado aquele que é hoje seu aliado prioritário no mundo: o presidente americano Donald Trump. Na embaixada brasileira em Washington, a avaliação é de que a relação entre os dois países nunca foi tão estreita e que o compartilhamento de agendas – e de estilos – entre os dois presidentes facilitou muito essa aproximação.
Essa proximidade não é fortuita: desde a eleição, Bolsonaro se aproximou, por meio do filho Eduardo, de Steve Bannon, ex-estrategista de comunicação de Trump e um dos ideólogos do atual movimento de direita. De acordo com o jornal O Estado de São Paulo, Bannon teria se encontrado com Ernesto Araújo, em Washington, há dez dias para se debruçar sobre o discurso que o presidente fará na ONU. Na mesma visita, Araújo afirmou que sua prioridade de trabalho é estabelecer uma data para que Trump visite o Brasil.
A diplomacia brasileira considera já colher frutos dessa aproximação. Uma das mais comemoradas foi a ausência de menção à Amazônia no relatório final do G-7, em meio à série de discussões públicas com Macron. A conquista foi atribuída ao apoio americano. Outros acenos importantes ao Brasil são o apoio explícito dos americanos à entrada do país na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e o reconhecimento do país como um aliado militar estratégico fora da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Para assegurar tais posições junto aos americanos, no entanto, o Brasil tem adotado uma política internacional vacilante, já que em alguns aspectos o estilo Trump contraria o histórico de atuações do Brasil. Em sua visita ao presidente americano, em março, Bolsonaro compartilhou com ele o microfone em uma entrevista e não retrucou quando o par afirmou que todas as opções estavam sobre a mesa em relação à Venezuela, sugerindo que o Brasil poderia concordar ou mesmo participar de uma investida militar contra o país vizinho.
Isso foi rechaçado pela ala militar do governo brasileiro e o próprio chanceler Ernesto Araújo afirmou que essa era uma opção fora do jogo brasileiro. No entanto, há duas semanas, a Organização dos Estados Americanos (OEA) decidiu convocar o mecanismo do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) para tratar da situação venezuelana. Em manifestação, a Costa Rica propôs que o TIAR excluísse a possibilidade de qualquer ação bélica. O Brasil votou contra a proposta.
Em relação ao Irã, em escalada crescente de tensão contra os EUA desde que Trump retomou as sanções econômicas ao país, o Brasil chegou a reter navios de bandeira iraniana carregados de milho brasileiro em portos nacionais porque a Petrobras se recusou a abastecer as embarcações, justificando temer retaliações americanas.
"Vocês já sabem que estamos alinhados com a política deles (dos EUA). Então fazemos o que temos que fazer", disse o presidente, defendendo a posição da empresa. O imbróglio foi resolvido com uma decisão do STF que ordenou o abastecimento dos navios iranianos. O Irã é o principal consumidor de milho brasileiro.
A decisão de seguir os passos de Trump em Israel e transferir a Embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, cidade em disputa entre palestinos e israelenses, também foi recebida com descontentamento pelos países árabes – grandes importadores de carne brasileira – que acabaram por forçar um recuo do Brasil no assunto sob pena de um boicote. O país ficou a meio caminho, tendo optado por abrir um escritório de negócios em Jerusalém.
"O Brasil está apostando em um inédito alinhamento incondicional com os Estados Unidos, o que nos coloca junto a países como a Polônia, a Hungria, Itália e Israel", afirma Casarões, em referência ao grupo de países com governos nacionais-populistas de direita. Nesse contexto, se insere o convite feito pelos americanos ao Brasil, e já aceito, para sediar uma edição da conferência de paz e segurança no Oriente Médio, que esse ano aconteceu em Varsóvia.
"É um evento dos Estados Unidos e de Israel para dizer porque eles não gostam do Irã", afirma Casarões. No discurso de Bolsonaro na próxima terça-feira, são esperadas críticas tanto à Venezuela quanto ao Irã.
A aposta do Itamaraty sob Ernesto Araújo é que esses movimentos tragam ao país investimentos e tecnologia que não teriam chegado enquanto o Brasil privilegiava cooperações com o terceiro mundo e parcerias Sul-Sul.
"A mensagem é que o Brasil vai fazer concessões unilaterais na esperança de receber investimentos diretos, com a vinda de empresas estrangeiras interessadas em se beneficiar da mão de obra barata do Brasil e da redução de garantias aos trabalhadores pelo Estado", afirma Elaini da Silva, professora de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo
A manobra, porém, é considerada arriscada mesmo por quem teria a ganhar com tais vantagens econômicas. Fontes do Fundo Monetário Internacional ouvidas reservadamente pela BBC News Brasil afirmam que Bolsonaro despreza o risco de Trump não ser reeleito no ano que vem. O presidente já disse que torce pela reeleição do Republicano.
"Os investidores se movimentam olhando a taxa de inflação e de juros, a expectativa de crescimento e a condição de previsibilidade do país. Para um país robusto como os Estados Unidos, a política de Trump acaba causando pouco dano, mas isso não é verdade para o Brasil. Essas discussões de política externa aumentam o nível de incerteza. Nunca vi algum país se beneficiar economicamente quando o seu mandatário ofende a mulher de um dos presidentes do G-7", diz um analista.
No mercado financeiro chama a atenção o modo como as autoridades brasileiras têm privilegiado o discurso ideológico em vez de tentar aproveitar a agenda positiva da reforma da previdência, esperada há anos por investidores estrangeiros e às vésperas de ser aprovada no Senado Federal. Em discurso de mais de meia hora na Heritage Foundation, um dos principais think tank conservadores dos Estados Unidos, o chanceler Araújo sequer mencionou a reforma das aposentadorias e pensões, pauta cara aos liberais que lotavam a plateia do evento.
"O Brasil tem coisas boas a dizer, mas simplesmente não diz", afirma o embaixador ouvido sob anonimato pela BBC News Brasil.
Ruim dentro, pior fora da ONU
"Se eu for presidente, eu saio da ONU. Não serve para nada essa instituição. Sim, saio fora. Não serve para nada a ONU. (O Conselho de Direitos Humanos) É um local de reunião de comunistas e gente que não tem qualquer compromisso com a América do Sul pelo menos", afirmou Bolsonaro há um ano, ainda durante a campanha presidencial.
No início do mês de setembro, ele voltou à carga contra a ONU, atacando a alta comissária da instituição para os direitos humanos, a ex-presidente chilena Michele Bachelet: "Parece que quando tem gente que não tem o que fazer, como a senhora Michelle Bachelet, vai lá para a cadeira de direitos Humanos da ONU".
Em que pese a opinião de Bolsonaro sobre a ONU e seu órgão de direitos humanos, uma das prioridades de política externa do governo atual é a reeleição para um assento no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Criado em 2006, o Conselho é formado por 47 países e tem como função monitorar violações dos direitos humanos ao redor do mundo e municiar de informações a Assembleia Geral da ONU, que pode deliberar por sanções aos países com governos violadores e autoritários. Cabe ao órgão, por exemplo, acompanhar a situação dos venezuelanos.
A eleição, que acontece em meados de outubro, conta com duas vagas a serem ocupadas por países da América Latina e apenas dois candidatos a elas: Brasil e Venezuela. Na prática, portanto, a vaga estaria assegurada.
Embora possa parecer contraditória, a estratégia faz sentido, conforme explicam integrantes do governo, no esforço de ocupar espaços considerados da "esquerda" e levar para lá as convicções da gestão atual.
O Itamaraty pediu a seus diplomatas que combatam o uso do termo "gênero" em acordos multilaterais, pleiteando a substituição por "sexo biológico". Diplomatas defenderam a mudança à BBC Brasil dizendo que a Constituição Brasileira não prevê a palavra gênero e que o termo família se refere a casais heterossexuais, já que não há possibilidade biológica de geração de filhos de casais homossexuais.
"O Brasil tem demonstrado um posicionamento mais duro do que Paquistão e Egito em relação à gênero", afirma Camila Asano, especialista em política externa da Conectas, entidade da sociedade civil que se posicionou institucionalmente contra a reeleição do Brasil ao Conselho de Direitos Humanos à luz dos movimentos recentes do país na área.
Pesou na avaliação da Conectas, uma série de declarações de Bolsonaro em defesa aos regimes ditatoriais e militares que se espalharam pela América Latina entre as décadas de 1960 e 1980.
A última delas foi justamente contra Bachelet. Ao reagir à crítica da alta comissária da ONU de que há um "encolhimento do espaço democrático no Brasil", Bolsonaro afirmou que a ex-presidente "se esquece que seu país só não é uma Cuba graças aos que tiveram a coragem de dar um basta à esquerda em 1973, entre esses comunistas o seu pai, brigadeiro à época".
Bolsonaro se referia ao regime ditatorial de Augusto Pinochet, que derrubou o governo eleito de Salvador Allende e é considerado responsável, entre outros crimes, pela morte do pai de Bachelet, Alberto, submetido a torturas enquanto estava preso por ordens da ditadura. O elogio a Pinochet causou mal-estar até entre aliados de Bolsonaro, como o atual presidente chileno Sebastian Piñera, que o desautorizou a falar sobre a história do Chile.
Antes disso, ao criticar o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, Bolsonaro afirmou que "um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade".
O Estado Brasileiro já reconheceu que o pai de Felipe, Fernando Santa Cruz, desapareceu enquanto estava sob custódia do Estado Brasileiro, durante a ditadura, em 1974. As manifestações do presidente em favor do regime militar levaram a OAB a denunciar o governo brasileiro à ONU e pedir monitoramento em relação ao "frágil processo de redemocratização" do país.
Para o embaixador Rubens Barbosa, a intenção de Bolsonaro em relação ao Conselho de Direitos Humanos encontra paralelo no movimento feito pela ditadura militar brasileira, na década de 1970, de ocupar assento na então Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos, órgão antecessor ao Conselho atual.
"Naquele momento o Brasil também estava na defensiva, querendo assegurar sua soberania sobre a Amazônia, na lógica do integrar para não entregar, e se antecipar para saber o que diziam do país em relação aos direitos humanos, temeroso de denúncias", diz Barbosa.
Para representantes do Itamaraty, só a ida do presidente a Nova York já é um recado de uma disposição para o diálogo. Mas o embaixador Rubens Barbosa afirma que a mera intenção não basta, os termos do discurso são cruciais para demonstrar à opinião internacional essa disposição:
"Vai ter que calibrar o discurso para poder mudar essa perspectiva negativa agora que o Brasil adotou posição na contra mão do mainstream".