Um coronel da Guarda Nacional Bolivariana, uma das forças militares que dão sustentação à permanência de Nicolás Maduro no comando da Venezuela, passou despercebido entre os mais de mil conterrâneos que procuraram o centro de triagem de imigrantes em Boa Vista naquela quinta-feira de julho.
A família do coronel já havia se refugiado em Porto Rico. Ele, com passagens aéreas compradas, não ficaria no Brasil. Entrou no país por Pacaraima, na fronteira, seguiu por terra para Boa Vista, manteve um breve encontro com militares do Exército brasileiro no centro de triagem e pegou o avião até Foz do Iguaçu (PR).
O destino final era o Uruguai. O coronel, uma patente elevada, é um desertor. Fugiu da Venezuela, de forma discreta, em meio à convulsão em que o país está mergulhado.
Dados oficiais obtidos pelo GLOBO mostram que, desde 21 de fevereiro, quando Maduro chegou a fechar a fronteira com os países vizinhos, 187 desertores entraram no Brasil. Isso significa que, em média, mais de um desertor entra por dia no país.
Esse movimento ganhou corpo no momento do fechamento da fronteira, determinada por Maduro para impedir a entrada de alimentos e remédios enviados por países que dão suporte a seu rival, Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional e autodeclarado presidente em exercício da Venezuela.
Em fevereiro, uma série de conflitos na fronteira deixou mortos e feridos, a partir da repressão empreendida pelas forças militares de Maduro. Integrantes dessas forças passaram a desertar.
Fronteira movimentada
A fronteira foi reaberta em maio. Os dados mostram que o movimento de desertores continuou intenso. Nos dez dias seguintes à entrada do coronel, por exemplo, outros sete militares deixaram seus postos e buscaram abrigo no Brasil.
O Exército brasileiro, responsável pela acolhida dos venezuelanos em Roraima e pela transferência dos imigrantes para outros estados, afirma tratar os desertores de forma idêntica aos outros refugiados.
Isso porque, na visão do Exército, eles são desertores para as forças militares do regime de Maduro, não para as forças brasileiras.
A deserção de militares de alta patente, como o coronel, não é a regra. A maioria dos que desertam é composta por praças, soldados e sargentos, segundo fontes ouvidas pelo GLOBO.
O principal efetivo é da Guarda Nacional Bolivariana, uma estrutura existente na Venezuela que funciona como uma polícia militar federal. Cabe ao próprio imigrante, ao chegar aos centros de triagem, declarar se é um desertor e se deseja refúgio ou residência temporária no Brasil.
Muitos vão ao encontro de suas famílias, que já estavam no país. Outros dependem dos abrigos de refugiados administrados pelo Exército brasileiro.
O abrigo em Pacaraima, a primeira porta de entrada para quem vem ao Brasil, já chegou a ter 27 desertores. No fim de julho, eram três, entre eles um primeiro-sargento da Guarda Nacional, que havia buscado o processo de interiorização, em que refugiados são levados para outros estados.
O GLOBO conversou com um dos três desertores, jovem que atuava numa unidade do aparato de segurança de Maduro responsável por investigações que se aproximam de uma espionagem oficial, segundo ele. O órgão para o qual trabalhava se chama Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminalísticas (CICPC). A exemplo dele, muitos dos desertores são provenientes de Caracas, e chegam de carona ao Brasil.
‘Não posso mais voltar’
Juan (nome fictício) ainda teme ser perseguido pelo regime de Maduro e pediu para não ser identificado. Ele tem conhecimento de outros dois colegas que também desertaram, com destino à Colômbia. Juan conta ter trabalhado como detetive privado e, a partir dessa atividade, ter ingressado no curso de formação para o CICPC. Uma das primeiras missões que recebeu foi ajudar em investigação sobre militares que decidiram engrossar as fileiras da oposição a Maduro.
— Averiguei coisas que não convinham, como, por exemplo, a participação de militares do regime em corrupção.
Juan afirma ter investigado também desvios das chamadas “caixas CLAP”, nome do programa oficial de distribuição de alimentos à população carente. Ainda conforme o relato de Juan, ele passou a receber recados sobre não ser mais desejável sua permanência em Caracas. Ele diz ter levado a família para um lugar seguro e até ter inventado que a mãe e a irmã haviam morrido. Há seis meses, decidiu deixar a Venezuela.
— Não posso mais voltar. Decidi viver no Brasil. Quero qualquer tipo de trabalho.
Ao menos um dentre os 187 desertores que entraram no Brasil atua na representação diplomática de Guaidó no país. O ex-major do Exército venezuelano José Gregorio Basante vive em Brasília e deve ser o adido militar de Guaidó. Ele já trabalha com a embaixadora do opositor de Maduro, María Teresa Belandria.
Basante foi, até maio, o responsável pela base militar de Escamoto, no estado de Bolívar, que faz fronteira com Roraima. Refugiados que vivem em Boa Vista, expulsos pelo regime de Maduro, afirmaram que o militar, antes de desertar, quando estava em função de comando no Exército venezuelano, teve participação em episódios controversos, como a entrega irregular de armas a civis para ataques a indígenas que tentaram garantir a entrada da ajuda pela fronteira em fevereiro.
Os pemones entraram em choque com as forças de segurança de Maduro. Três morreram, 12 se feriram e quase mil fugiram para o Brasil.
A reportagem fez contato com a assessoria de Belandria, para saber a posição a respeito da atuação do ex-major quando ele ainda integrava as fileiras de apoio a Maduro. Não houve resposta até o fechamento desta edição.