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Rejeição ao Brasil aflora em protesto indígena na Bolívia

Fabio Murakawa

A glorificação dos indígenas, a repulsa ao Brasil e uma grande decepção com o presidente Evo Morales marcaram o desfecho da mobilização indígena ontem em La Paz. À tarde, os índios desmontaram o acampamento que mantinham havia uma semana na praça Murillo, em frente ao palácio presidencial e ao Congresso. Eles caminharam mais de 500 km por dois meses para impedir que a estrada, com financiamento brasileiro, atravessasse seu território. Voltam para casa com a missão cumprida.

Pressionado por milhares de pessoas na praça, o presidente Morales sancionou na madrugada de ontem uma lei que diz que nenhuma rodovia poderá atravessar o Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), classificado como "intangível". A medida foi resultado de quatro dias de negociações no Palácio Quemado. Com isso, o trecho 2 da estrada, que cortaria o território, terá que passar por outro lugar.
Ontem, enquanto se preparavam para partir, os indígenas eram saudados pela população. Moradores de La Paz se aproximavam para oferecer comida e parabenizá-los pela vitória. Alguns de seus líderes viraram celebridade, mais notadamente o presidente da Subcentral Tipnis, Fernando Vargas, indígena da etnia moxenha e que foi a cara visível dos protestos.

Enquanto tentava coordenar a saída, ele mal conseguia andar. A cada dois passos, era parado por um boliviano para tirar fotos e receber abraços e saudações. Para entrevistá-lo, o Valor precisou levá-lo da praça a uma lanchonete a poucos metros dali, tamanho o assédio. Mesmo assim, clientes e funcionários interrompiam a entrevista a todo momento para cumprimentar o líder indígena. "Eu esperava ser bem recebido em La Paz, mas não dessa maneira", disse ele.

Vargas explicou que a população se voltou a favor de sua causa após uma violenta repressão policial, no último dia 25 de setembro. Os bolivianos ficaram chocados ao ver, na TV, indígenas sendo arrastados por policiais com as mãos atadas por fita adesiva, enquanto outros eram atacados com bombas de gás lacrimogêneo e cacetetes.

Esse episódio marcou também, segundo Vargas, o fim da confiança no presidente Morales, um líder cocaleiro que se elegeu com uma ampla base de apoio entre os povos indígenas amazônicos.

Durante os encontros com Morales no palácio, Vargas disse ter cobrado o governante pela repressão. "Para mim, está claro que a ordem partiu dele", afirmou.

Sobre a estrada, disse que o presidente estava tentando "pagar a fatura" aos cocaleiros, pois essa havia sido uma promessa de campanha ao setor mais fiel a Morales. "Nós, indígenas, não precisamos da estrada para atravessar o parque. Nossa forma de nos locomover são os rios. A estrada só vai frear o nosso desenvolvimento", disse. "Essa estrada se presta para duas coisas: para ampliar o plantio de coca, destinada à produção de droga, e para atender aos interesses do Brasil, que quer atravessar seus produtos rumo ao Oceano Pacífico usando a Bolívia como ponte."

A rodovia, orçada em US$ 415 milhões, tem US$ 332 financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e está sendo executada pela construtora brasileira OAS. As obras estão em andamento nos trechos 1 e 3, mas eles devem sofrer modificações, agora que o traçado não passará mais pelo parque.

Os indígenas temem que a estrada facilite o avanço do plantio da coca, que já ocorre em áreas marginais do parque. Morales autorizou o início dos trabalhos e recorreu ao financiamento brasileiro sem antes consultar os nativos, que, pela Constituição boliviana, têm o direito de decidir sobre a destinação de seus territórios.

Segundo Vargas, os indígenas vêm tentando dialogar com Morales desde 2007, quando começaram os rumores sobre a estrada. "O governo nunca nos escutou, nunca nos deu importância. E, quando as obras começaram, nós decidimos marchar", afirmou.

Ignorados por Morales, os indígenas chegaram a procurar o governo brasileiro para tentar sensibiliza-lo sobre sua causa, disse ao Valor Adolfo Chávez, presidente da Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia (Cidob). Ele afirmou ter enviado uma carta à Embaixada do Brasil em La Paz pedindo um encontro em Brasília. Obteve a promessa de ajuda, mas o encontro acabou não saindo.

Para Chávez, a estrada traria uma série de problemas sociais para os povos nativos do Tipnis. "Não queremos uma estrada para levar mendigos às cidades para pedir esmola, para abrir espaço para caminhões de alta tonelagem. Não estamos acostumados com isso. Vivemos da pesca, da caça, da coleta de frutas. E, quando isso ocorrer [a estrada], haverá devastação da terra, desmatamento, pirataria e uma zona muito perigosa de plantio de coca vai se expandir", disse. "Vocês brasileiros se queixam muito da cocaína que vem da Bolívia, mas isso é contraditório, porque querem seguir abrindo caminho para que a droga continue sendo produzida com maior facilidade", afirmou.

Esse sentimento negativo em relação ao Brasil fica mais exacerbado nas palavras do líder indígena Rafael Quispe, presidente do Conselho Nacional de Ayllus e Marcas do Qullasuyu (Conamaq). Abordado pelo Valor, e ciente de que se tratava de um jornal brasileiro, ele disse: "A empresa dos brasileiros é que está metida [na obra], quebrou a lei, e os brasileiros não fazem absolutamente nada. Vocês [brasileiros] estão f… a Bolívia. E não é só com estradas. Vocês estão f… a gente com termelétricas. Como a Bolívia, como cidadão boliviano, como posso eu, com capital boliviano, f… o seu país?"

Questionado sobre como fica a relação dos indígenas com o presidente, ele manteve o tom. "Por que você quer saber? Se você é brasileiro, pergunte ao governo. Capital brasileiro, empresa brasileira. O banco que está emprestando é brasileiro. E o que você quer que eu te diga? Vocês vieram f… o país."

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