Carla Araújo, Daniel Rittner
e Fabio Murakawa
"Aqui não", diz taxativamente o vice-presidente Hamilton Mourão, de volta de uma viagem oficial à China, sobre a possibilidade de o Brasil banir tecnologias da gigante Huawei para a quinta geração (5G) de telefonia móvel.
Nesta entrevista ao Valor, pela primeira vez uma alta autoridade brasileira reconhece publicamente que o tema foi levantado pelo americano Donald Trump na conversa com o presidente Jair Bolsonaro, em março, durante visita do brasileiro à Casa Branca.
"O presidente Trump alertou o presidente Bolsonaro, naquela visita, sobre a Huawei. E, quando eu tive a oportunidade de conversar com o presidente da Huawei, lá na China, disse para ele: 'Olha, vocês têm que criar um ambiente de confiança na empresa. De modo que nenhum país que vá receber a empresa e a tecnologia que vocês vão instalar fique preocupado se os dados em seu poder pertencerão também ao governo [chinês]'."
E o Brasil? "No nosso governo não tem receio", disse o vice, explicando que ainda há muitas carências tecnológicas. "Somos um país pouco integrado digitalmente. Você sai daqui de Brasília, anda 50 km na estrada e não fala mais no telefone." Por pressão americana, países como Austrália e Japão já vetaram o uso de equipamentos e serviços da Huawei nas redes 5G.
Mourão fez um relatório por escrito de sua viagem para Bolsonaro, que deve ir a Pequim em outubro, e descreveu os chineses como "muito agressivos" nas negociações. Para o vice, se o Brasil for "flexível e pragmático", pode extrair vantagens da guerra comercial Estados Unidos-China.
Sem reclamar, ele conta com bom humor a quantidade de escalas técnicas que precisou fazer até chegar ao destino final a bordo de um Legacy da FAB, enquanto o avião presidencial com suíte permanecia à disposição de Bolsonaro. "Ele tem cinco horas, cinco horas e meia de autonomia, então eu fui num pinga-pinga. A ida foi Brasília-Recife, Recife-Cabo Verde, Cabo Verde-Marrocos, Marrocos-Líbano, Líbano-Cazaquistão, Cazaquistão-Pequim. Na volta foi Pequim-Cazaquistão, Cazaquistão-Ancara, Ancara-Florença, Florença-Madri, Madri-Cabo Verde, Cabo Verde-Recife, Recife-Brasília". Ufa!
Mesmo como presidente da República em exercício, por causa da viagem ontem de Bolsonaro à Argentina, Mourão fez questão de receber a reportagem em seu gabinete de vice, no edifício anexo do Palácio do Planalto, e disse que não usa o gabinete presidencial quando está interino no comando do país porque lá a "cadeira é do chefe, é do patrão". "Ele é o capataz, eu sou o sota-capataz", explica, com a expressão gaúcha que significa secretário.
Leia trechos da entrevista:
Valor: Quais os principais objetivos da viagem do senhor à China?
Hamilton Mourão: Primeiro que a Cosban [Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação] voltasse a funcionar, porque estava há quatro anos parada. A ideia é realmente colocá-la como mecanismo de mais alto nível, em que haja um filtro de todo esse relacionamento, porque os chineses são muito agressivos. Eles vão em governo estadual, vão em ministério e muitas vezes a gente não tem controle e não sabe o que está acontecendo. Essa era uma grande finalidade. E também a gente propôs uma reorganização da comissão, que tem muitas sub-comissões e acaba virando clube de debate em vez de produzir algo que interesse. Nós propusemos essa reorganização, eles aceitaram, estamos tratando isso. Eu mandei um documento para todos os ministérios para que os ministros apresentem planejamento para cumprir tudo que foi acordado lá.
Valor: O senhor foi recebido pelo líder chinês, Xi Jiping, como chefe de Estado, mesmo após rusgas no começo da relação com o governo de Jair Bolsonaro…..
Mourão: Eles nos concederam um tratamento muito acima do normal para a minha posição de vice-presidente. Foi um tratamento de chefe de Estado, eles quiseram demonstrar toda a boa vontade para com o governo brasileiro.
Valor: Acha que os chineses estão preocupados em fazer essa deferência por causa da relação próxima do presidente Bolsonaro com os EUA?
Mourão: Isso faz parte do jogo internacional. Mas a China tem sido um parceiro confiável do Brasil desde 2009. São dez anos de parceria estratégica. Nesse período, multiplicamos praticamente por dez o nosso fluxo comercial, que ficou em mais de US$ 100 bilhões no ano passado. É um fluxo realmente significativo, apesar de a qualidade ainda deixar a desejar.
Nós exportamos muito mais produtos in natura do que produtos com valor agregado. Foi uma das conversas que eu tive com eles. Se a gente entrega a soja em estado puro, a taxação é mínima. Se entrega o óleo de soja, a China me taxa lá em cima.
Valor: O Brasil vai aceitar o convite dos chineses de entrar na Nova Rota da Seda?
Mourão: Os chineses hoje estão muito impositivos em cima dessa questão da "Belt and Road Initiative" [conhecida também como Nova Rota da Seda]. É quase uma laçada que eles te dão para te deixar, vamos dizer assim, alinhados às necessidades chinesas. A orientação do presidente era que a gente não desse um sinal positivo, ficasse com um sinal de que nós consideramos a "Belt and Road", mas queremos que ela se adapte às nossas necessidades, e não única e exclusivamente às da China.
"Em uma guerra comercial, a gente tem que explorar as oportunidades, temos que ser flexíveis e pragmáticos''
Valor: Alguns países tomaram investimentos baratos e acabaram se endividando. Quais armadilhas o Brasil deve evitar?
Mourão: O que a gente tem que evitar é o seguinte: quero emprego gerado aqui, não aquele [projeto] que o cara traz 100 mil chineses para trabalhar no Brasil. O que queremos nessa questão? Vamos falar especificamente de investimento. Nós precisamos de investimento em infraestrutura. Aquilo que for de infraestrutura e que vai beneficiar o comércio com a China é um investimento bom que atende o interesse dos dois países.
Valor: Mas com o ritual brasileiro de licitação, que eles não estão acostumados….
Mourão: Exatamente, não pode fugir da nossa legislação e daí a diferença.
Valor: O Brasil precisa escolher um lado na guerra comercial entre China e EUA? A mensagem nos primeiros dias de governo foi de um quase alinhamento com os EUA…
Mourão: Eu conversei muito com o Otávio Brandelli [secretário-geral do Itamaraty] e nós acordamos que temos que ser flexíveis e pragmáticos. O nosso posicionamento é de flexibilidade e pragmatismo. Porque, em uma guerra comercial dessa natureza, a gente tem que saber explorar as oportunidades.
Valor: E o Brasil tem como sair ganhando?
Mourão: Tem. Por exemplo: agora o Trump está taxando, em nível muito mais elevado, parcela das importações da China, em torno de US$ 250 bilhões. Esse produto vai chegar mais caro ao mercado americano. E nós temos o mesmo produto aqui, que nós podemos vender para o mercado americano e acrescentar US$ 5 bilhões, US$ 6 bilhões, US$ 7 bilhões nas nossas exportações.
Valor: E para a China também, não?
Mourão: Sim. A China está em uma situação complicada por causa da questão de proteína animal. O rebanho dela está praticamente exterminado por causa da peste suína africana e ela pode comprar daqui. O mundo inteiro não tem como abastecer a China em termos de carne suína. Pode juntar toda a produção do mundo que não abastece. Vai ter que substituir essa proteína. Vai ter que ir carne de gado ovino, carne de boi, de frango. São oportunidades para a gente. É uma guerra que está sendo travada no mundo, a gente não sabe até onde vai. Eu enxergo que o chinês é um cara de bastante paciência.
Valor: E o americano?
Mourão: O americano, não. E outra coisa, o americano é um cara do sistema democrático ocidental. Trump ganhará a eleição ano que vem? Vamos dizer que ele ganhe: em 2024, tchau para ele. Em 2024, o Xi Jinping continua no governo.
Valor: O sr. não acha que, mais do que uma guerra comercial, há uma guerra tecnológica definindo o grande protagonista deste século?
Mourão: Você olha o 5G. As quatro empresas que detêm a tecnologia são duas chinesas e duas finlandesas. Cadê a americana?
Valor: Alguns países, por influência dos EUA, decidiram banir a Huawei. O sr. acha que essa é uma conversa pertinente para o Brasil?
Mourão: Eu sei que o presidente Trump alertou o presidente Bolsonaro, naquela visita [a Washington em março], sobre a Huawei. Alertou-o sobre a Huawei. E, quando eu tive a oportunidade de conversar com o presidente da Huawei lá na China, disse para ele: "Olha, vocês têm que criar um ambiente de confiança na empresa. De modo que nenhum país que vá receber a empresa e a tecnologia que vocês vão instalar fique preocupado com que todos os dados que estarão no seu poder pertencerão também ao governo[ chinês]". Esta é a discussão.
Valor: O sr. particularmente tem esse receio? Porque a gente vai ter a licitação do 5G em 2020..
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Mourão: Hoje eu não tenho esse receio. Eu não tenho dados para lhe dizer que estão cometendo isso. Seria uma leviandade minha dizer que isso está acontecendo.
Valor: Então, não há nenhuma ideia por ora de banir a Huawei?
Mourão: Não, não. Aqui não. No nosso governo não tem. O presidente não falou isso para mim em nenhum momento.
Nós somos um país que precisa, somos um país muito pouco integrado digitalmente. Você sai daqui de Brasília, anda 50 km na estrada e não fala mais no telefone. Temos um marco de telecomunicações que é da década de 1990. Ele não atende mais. As operadoras têm que expandir a rede, mas elas são obrigadas a investir em telefonia fixa, orelhão. Tem que mudar o marco.
Valor: O Brasil assume a presidência do New Development Bank [NDB, o banco do Brics] em 2020. Como vê a atuação do banco até aqui?
Mourão: O que acontece é que nós não estamos usando o banco. Vai inaugurar um escritório do banco em São Paulo. Eu acredito que em novembro, na reunião do Brics, inaugure o escritório. Aí talvez, com um escritório aqui, o pessoal passe a usar o banco. Nós temos hoje US$ 600 milhões de projetos lá. Nós temos direito a US$ 2 bilhões. Nós não estamos atrasados com os pagamentos. Também se conversou lá para atrair outros parceiros para o banco do Brics. É um pacote que está na mão do Itamaraty. Temos que usar esses recursos. O problema é ter projetos.
"A questão da Venezuela não se resolve da noite para o dia. Botaram o carro na frente dos bois, e aí a coisa não funciona''
Valor: Mas o acordo para a abertura do escritório regional do NDB em São Paulo está parado aqui no Planalto. Vai ser enviado para o Congresso votar a tempo?
Mourão: Está nas mãos do Onyx [Lorenzoni], mas vai. Tem que ir. Fiz um relatório por escrito ao presidente, com todos os detalhes e minhas observações. Um relatório pessoal meu para o presidente.
Valor: O sr. acha interessante o NDB se abrir para mais países?
Mourão: Acho interessante que outros países entrem, aportando a quantidade de recursos prevista para cada um.
Valor: Já foi definida a data da viagem do presidente à China?
Mourão: Eles cobraram isso, e eu falei com ele. O presidente decidiu ir em outubro porque coincide com a abertura dos Jogos Mundiais Militares, na China. Eu solicitei a ele que informasse logo ao governo chinês. Eles estão ansiosos.
Valor: O sr. conversou com os chineses sobre a crise na Venezuela?
Mourão: Em nenhum momento tocamos nisso. Até porque a China tirou o manche [da crise] da Venezuela. Não está pressionando como a Rússia. Está com um olhar crítico porque quer o dinheiro dela.
Valor: E a pressão para troca do regime deu uma esfriada, não?
Mourão: Deu… Porque botaram o carro na frente dos bois, e aí a coisa não funciona. Aquilo lá é complicado. A questão da Venezuela não se resolve da noite para o dia.
Valor: O sr. vê alguma solução?
Mourão: Não, solução no horizonte não tem porque há atores externos que precisam ser neutralizados. Enquanto não se neutraliza esses atores externos, fica difícil.
Valor: Quais são esses atores?
Mourão: Cuba e Rússia.
Valor: Cuba também?
Mourão: Tremendamente. Tem 20 mil cubanos lá dentro que controlam os serviços de inteligência e controlam as milícias. Está nas mãos deles. Cuba recebe da Venezuela em torno de 120 mil barris de petróleo por dia, que ela não usa, que ela vende no mercado spot em Roterdã e em outros lugares. É daí que Cuba tira dinheiro. Então, alguém precisa chegar nos cubanos e dizer: "Olha, meu amigo, você vai continuar a receber teus 120 mil barris de petróleo, mas tira a sua turma de lá". A negociação tem que ser nessa linha.
Valor: Mas o Trump está fazendo o contrário, apertando Cuba…
Mourão: Então… Dessa forma não vai resolver. O que acontece na Venezuela? Parcela das Forças Armadas está comprometida com a corrupção e com o narcotráfico. A banda boa dos militares está vigiada pelos cubanos. Fica difícil sair desse pacote. Se os países que têm poder realmente não sentarem e organizarem isso, a Venezuela vai terminar virando um não Estado.
Valor: Sobre as eleições na Argentina, o presidente Jair Bolsonaro tem sido muito duro com a possibilidade de volta do kirchnerismo. Se voltar mesmo, não fica um climão?
Mourão: Vai ser um problema, mas o presidente está exercendo o papel dele.
Valor: De interferir em eleição externa, o que é inconstitucional?
Mourão: Ele não está interferindo. Interferir é quando você bota dinheiro lá dentro, como Hugo Chávez fez nas eleições anteriores que ocorreram na Argentina, em que mandou dinheiro para lá. Aí considero uma interferência. Agora, você, como Estado soberano dizer: 'Eu considero que seria melhor a eleição do Macri….'. Acho que o presidente está no papel dele.
Valor: O sr. também considera?
Mourão: Que o Macri seria melhor? Considero. O kirchnerismo não foi bom para Argentina.
Valor: Tem alguma novidade de programa espacial com a China?
Mourão: Estamos com um satélite que está sendo construído, está sendo terminada a parte brasileira e até novembro vai estar na China para ser lançado. Eles estão com um programa de exploração da face oculta da Lua e ofereceram para a gente praticamente de graça participar disso aí. Ele [Xi] fez uma oferta genérica… Mas acho ótimo. Coloquei no relatório.
Valor: E o presidente falou o que depois do relatório?
Mourão: Até agora, nada.
Valor: Deve ser porque estão definindo quem no governo vão mandar para a face oculta da Lua, não?
Mourão: Olha, tem bastante gente para mandar [risos]