Search
Close this search box.

Como grupos bolsonaristas tentam minar a influência da ala militar que atua no Planalto

Robson Bonin e Marco Grillo

Epoca

Edição 06 Maio 2019

No começo de abril, o deputado federal Marco Feliciano (Podemos-SP) viajou aos Estados Unidos para se reunir com o ideólogo do governo Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho. Naquele momento, Olavo e o pastor Silas Malafaia, adversário de Feliciano, trocavam ataques nas redes sociais em razão de críticas feitas pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) a imigrantes brasileiros na ilegalidade em solo americano.

Feliciano enxergou na disputa virtual uma oportunidade de fazer de Olavo seu aliado. O deputado percebera que a união de setores evangélicos e olavistas poderia abrir caminho, no governo Bolsonaro, para o avanço do que Feliciano chama de “força conservadora”, uma aliança entre os seguidores do ideólogo e os religiosos alinhados com o pastor em busca de poder na administração federal.

 

A união, ao menos retórica, deu-se num momento em que o círculo militar do Palácio do Planalto se via acuado pela indisposição, até então velada, entre o presidente Jair Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão. Abriu-se, portanto, um espaço de poder com potencial de ser preenchido.

 

O primeiro passo do plano ensaiado nos Estados Unidos visava explorar supostas fragilidades dos generais palacianos — e, como se verá adiante, acabaria dando prestígio a Feliciano junto ao núcleo ideológico: tratava-se da assinatura de um manifesto de três páginas no qual deputado e guru afirmavam o desejo de “impedir o sequestro do governo” pelo “estamento burocrático”, termo cunhado para se referir aos militares do Palácio que, na opinião da dupla, movimentavam-se para impedir a agenda de costumes do grupo conservador.

 

“A base de Bolsonaro são os conservadores e os evangélicos. Os militares vêm a reboque. São os conservadores, liderados por Olavo, e a base evangélica, que é muito grande no país, os responsáveis pela sustentação do governo”, disse Feliciano a ÉPOCA.

 

“A única saída é o presidente apoiar-se no povo que o ama e impor sua autoridade por igual a civis e militares. Ou isso, ou já estamos numa atmosfera de golpe não declarado”, escreveu Olavo nas redes, ao aderir ao manifesto.

 

No texto, a dupla implicitamente se refere aos militares como “chupins da nação” que “continuarão a ser denunciados”, e avisa que “os conspiradores serão vergastados”. Algumas frases do manifesto foram proferidas pelo guru de Bolsonaro em um vídeo replicado, dias mais tarde, no canal do presidente no YouTube.

 

 

Na filmagem, Olavo vestia os mesmos trajes que usava quando recebeu Feliciano. Disse ainda que os militares teriam entregue o país aos “comunistas” e acusou as Forças de “traidores do povo” de olho nas mordomias do poder. “Qual a última contribuição das escolas militares à alta cultura nacional? As obras de Euclides da Cunha. Depois de então, foi só cabelo pintado e voz impostada. E cagada, cagada.

Esse pessoal subiu ao poder, destruiu os políticos de direita e sobrou o quê? Os comunistas. Daí os comunistas tomaram o poder. E eles vêm dizer: ‘nós livramos o Brasil do comunismo’. Não, nós entregamos o país ao comunismo. Se tivessem vergonha na cara, confessariam seu erro. Mas é só vaidade”, afirmou Olavo.

Além da aliança, a conversa entre Feliciano e Olavo, na casa do guru bolsonarista na Virgínia, serviu para definir o primeiro alvo da nova coalizão. O flanco mais exposto dos militares no governo, o vice, com seu habitual contraponto às ideias de Bolsonaro, foi o escolhido.

“Eu falei para ele ( Olavo ) que tinha visto umas atitudes do Mourão. Perguntei o que tinha de ser feito. Ele falou: ‘tem de neutralizar’”, relembrou Feliciano. Olavo teria, segundo o deputado, questionado o que poderia ser feito “dentro das vias parlamentares” para abater o vice em seu suposto voo conspiratório. Surgiu então o plano do pedido de impeachment, num intento otimista da dupla de achar que, num Congresso irado contra Bolsonaro, haveria clima para tal investida. “Ele (Olavo) disse: tem de fuzilar (Mourão). Claro que ele não está falando literalmente”, disse Feliciano.

O deputado voltou ao Brasil disposto a propor a perda do mandato do vice. Foi o que fez. No documento, listou “traições” ao presidente que justificariam seu impedimento. Mas sua investida foi freada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que arquivou o pedido. Feliciano, contudo, jamais foi desencorajado pelo presidente em sua cruzada contra Mourão.

 

No dia em que protocolou o pedido de impeachment, o deputado o fotografou e enviou a imagem a Bolsonaro, via WhatsApp. Embora diga que esperava uma reação contrária ou uma “bronca” presidencial, nenhuma reprimenda sucedeu. Segundo ele, o presidente teria apenas visualizado o conteúdo, sem emitir comentários. “Ele ficou em silêncio. Ele sabe de tudo que está acontecendo. Ele não me chamou a atenção. Não veio puxão de orelha. Sou vice-líder do governo ainda”, disse.

 

O apoio de Carlos Bolsonaro, o 02, nos ataques a Mourão nas redes sociais mostra a coesão do núcleo ideológico e foi lido como um aval da família presidencial contra o vice. “O filho dele pegou tudo que eu denunciei no pedido de impeachment e colocou no perfil do Twitter dele. E todo mundo sabe que o filho não faz nada sem que o pai saiba. Tem um versículo na Bíblia que diz: ‘Ninguém vai ao pai se não for pelo filho’. Então, quando esse filho faz, é porque o pai dá anuência”, disse o deputado.

Outro momento simbólico aconteceu na terça-feira. Em edição extraordinária do Diário Oficial , Jair Bolsonaro concedeu a Olavo de Carvalho o mais alto grau da Ordem de Rio Branco, condecoração dada pelo governo do Brasil para “distinguir serviços meritórios e virtudes cívicas, estimular a prática de ações e feitos dignos de honrosa menção”. A condecoração já havia sido concedida também a Mourão e ao ministro Sergio Moro.

 

“Marco Feliciano protocolou o pedido de impeachment de Mourão e enviou uma foto do documento a Bolsonaro. O presidente ficou quieto. Dias depois, Feliciano pegava carona no avião presidencial”

 

A conspiração que Feliciano acredita haver no núcleo militar teria outros atores além de Mourão: o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz, e o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Floriano Peixoto. A razão para a desconfiança, segundo os cálculos de Olavo e Feliciano, é a seguinte: os generais do Palácio nunca teriam se dedicado a combater as falas do vice.

“Mourão é só a ponta do iceberg, ele não está sozinho. Eu fico pensativo sobre o porquê de os generais não terem dado um puxão de orelha no Mourão. No mínimo, coloca todos ali sob suspeição. Você está vendo o camarada fazer uma coisa. Se (os generais) não falaram, por que não falaram?”, questionou.

 

Feliciano não só jamais foi reprimido pelo presidente, como contou com certa nota de orgulho que, desde seu encontro com Olavo, foi convidado a voar no avião presidencial e até despachou com Bolsonaro no Planalto — sem contar as fotos postadas ao lado do presidente que inundaram as redes sociais do deputado.

 

Bolsonaro tem dado sinais de preferir lidar com questões da pauta conservadora defendida pelo núcleo ideológico a liderar as articulações pela aprovação de projetos mais objetivos, como a reforma da Previdência. Seu partido, o PSL, segue desarticulado — e o tamanho do apoio do centrão é incapaz de assegurar um movimento pró-reforma no Congresso. Bolsonaro tem gastado boa parte de seu tempo dando opiniões sobre questões ideológicas e culturais em entrevistas e postagens nas redes sociais.

 

O presidente menosprezou publicamente turistas homossexuais que procuram o Brasil como destino de férias, afirmando que prefere a vinda de outros tipos de viajante. Disse o presidente: “O Brasil não pode ser um país do mundo gay, do turismo gay”. E prosseguiu: “Temos famílias”. Contudo, caso o turista opte pelo turismo sexual, que seja com mulheres, não homens. “Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”, pregou, para ojeriza das feministas.

 

Em um tropeço, Bolsonaro demonstrou desconhecer a Lei das Estatais ao vetar uma propaganda do Banco do Brasil por considerar inadequado o filme protagonizado por homens e mulheres negros, com tatuagens e visual moderno. “O pessoal sabe que eu tive uma agenda conservadora”, disse Bolsonaro ao explicar o veto. Ao desautorizar a intervenção do Planalto no banco, citando leis que garantem a integridade das estatais para decidir questões mercadológicas, o ministro Santos Cruz, general da reserva, voltou a ser alvo da militância bolsonarista e olavista nas redes sociais.

 

"Auxiliares da segurança de Mourão fizeram uma varredura nas salas do vice no Planalto e no Jaburu em busca de grampos. A suspeita de espionagem não se concretizou. Serve, no entanto, para ilustrar o clima na cúpula governista”

Em outro aceno à base evangélica e conservadora, Bolsonaro desmentiu publicamente o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, que defendeu a criação de um imposto sobre transação financeira que incidiria, inclusive, sobre o dízimo pago pelos fiéis das igrejas.

 

“Prezados amigos da frente evangélica. Vou dizer a vocês que não existe novo imposto para igrejas. Eu reconheço o trabalho social que vocês fazem. Reconheço o patriotismo de vocês e o interesse de fazer o Brasil melhor e lutar contra o aborto, a ideologia de gênero, pelos valores familiares, entre tantas outras coisas. Frente evangélica, meus irmãos, estamos juntos”, disse Bolsonaro, ao lado de Feliciano, em um vídeo gravado e distribuído pelo deputado.

 

Na ofensiva conservadora, Bolsonaro também publicou um vídeo em que uma aluna (filiada ao PSL) filmava sua professora criticando Olavo de Carvalho. Elogiou a atitude da garota e criticou a “doutrinação”. Também atacou escolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra por serem “ideológicas”, falou em promover uma limpa no Ministério do Meio Ambiente e deu aval para que o filho Carlos utilizasse as redes sociais para atacar os adversários de evangélicos e olavistas.

 

O vice Hamilton Mourão tem experimentado um clima de “guerra fria”, segundo aliados relataram a ÉPOCA. Recentemente, com a desculpa de executar um “procedimento de rotina”, auxiliares da segurança do general fizeram uma varredura em busca de grampos nas salas do gabinete da Vice-Presidência, no anexo do Palácio do Planalto, e no Palácio do Jaburu. A suspeita de espionagem, no entanto, não se confirmou. Mas serve para ilustrar a que ponto chegaram as tensões entre presidente e vice, ainda que, em público, haja uma tentativa de demonstrar harmonia.

 

Mourão entrou pela primeira vez na mira da ala ideológica e dos evangélicos quando deu uma declaração favorável ao aborto. A “traição” do vice à plataforma dos conservadores se deu em uma entrevista ao jornal O Globo, em fevereiro. Questionado sobre como os temas de gênero poderiam ser tratados pelo governo, o vice disse que o “aborto deveria ser uma decisão da mulher”.

 

A mudança de tom em relação à campanha é lembrada com irritação por quem hoje o critica. No período eleitoral, Mourão dava sinais em outra direção: admitiu a hipótese de um presidente dar um “autogolpe” com o apoio das Forças Armadas; afirmou que uma nova Constituição poderia ser redigida sem, necessariamente, passar pelo Congresso; criticou o 13º salário; e incorreu no preconceito ao dizer que o povo brasileiro havia herdado a “indolência” dos índios e a “malandragem” dos africanos. Em mais de uma ocasião, Bolsonaro precisou ir a público amenizar as declarações do companheiro de chapa.

 

A versão moderada do vice, hoje dissonante do bolsonarismo, foi inventariada no pedido de impeachment. Um dos pontos listados é a disposição de Mourão em dialogar com adversários de Bolsonaro. Uma declaração favorável à saída do ex-presidente Lula da prisão para ir ao velório do neto e o convite para palestrar a um público supostamente crítico ao presidente seriam exemplos de atitude desleal.

No início de abril, o vice aceitara convite para comparecer a um evento do Brazil Institute, no Wilson Center, em Washington. O convite continha um texto que classificava os primeiros 100 dias do governo Bolsonaro como “paralisia política” e destacava Mourão como a “voz da razão e moderação”, capaz de prover direcionamento em assuntos domésticos e exteriores. “Se não visse, não acreditaria que aceitou tais termos”, reclamou Carlos Bolsonaro nas redes, ao investir contra Mourão abertamente pela primeira vez, no dia 19.

 

Os adversários de Mourão também acusam o vice-presidente de seguir os passos de Michel Temer, que atuou nos bastidores pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016. O sinal mais claro das supostas más intenções do vice, segundo o núcleo ideológico, seria o entusiasmo de Mourão em desautorizar o presidente em todas as suas colocações, no intuito de minar sua autoridade.

Bolsonaro anunciou a mudança da embaixada brasileira de Israel para Jerusalém? Mourão afirma que a transferência não ocorrerá. Quando Bolsonaro vetou a nomeação da cientista política Ilona Szabó num conselho do governo, Mourão disse que “perde o Brasil todas as vezes que você não pode se sentar numa mesa com gente que diverge de você”.

A medida mais festejada por Bolsonaro na área da segurança pública, o decreto da flexibilização da posse de armas de fogo virou ação eleitoral nas palavras de Mourão: “Não vejo como uma medida de combate à violência”. Trata-se, disse Feliciano, de uma atitude de “jogador de xadrez”. “Comecei a notar as atitudes do vice. Comecei a ler o que Mourão fez desde o primeiro dia de governo e pensei: já vi esse filme. Isso aconteceu com Temer. Eu vi Temer articular a queda de Dilma”, disse o deputado.

 

Os “contrapontos” de Mourão a Bolsoanro ganharam eco no momento em que o presidente perdia popularidade. Segundo o Ibope, 35% dos brasileiros consideram o governo bom ou ótimo, o pior patamar para um início de governo desde a redemocratização. Até então, o menos popular havia sido Fernando Henrique Cardoso, com 41% nos primeiros 100 dias.

Na segmentação do eleitorado por renda, a insatisfação se aprofunda nas faixas mais pobres. Entre os que ganham até dois salários mínimos e que apoiavam o governo em janeiro, um terço já mudou de opinião. Nas faixas de renda maior, a proporção é de um quinto. No Nordeste, de cada dez eleitores que consideravam o governo bom ou ótimo, quatro já mudaram de ideia.

 

A ala militar tem se mostrado desconfortável com as investidas do núcleo ideológico. Não à toa, o general Augusto Heleno tem procurado, a cada oportunidade, reafirmar que não há um grupo militar no governo e que os generais do Planalto não se reúnem em reservado, distantes dos membros civis.

A ideia é dissipar os rumores de conspiração apontados por olavistas. Com o tensionamento dos ânimos, a orientação agora é evitar a troca de farpas públicas e as críticas a Olavo de Carvalho — que haviam se tornado uma constante nas entrevistas dadas pelos generais à imprensa. A nova estratégia, portanto, é ignorar.

 

Bolsonaro e Feliciano se aproximaram durante o primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, quando Feliciano vencera a disputa pela presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara contra deputados do PT. Os embates com petistas asseguraram a Feliciano um espaço na imprensa e uma visibilidade que só Bolsonaro ocupava ao polemizar com os parlamentares de esquerda. Na última eleição, a lealdade de Feliciano a Bolsonaro foi testada.

O deputado evangélico não quis se filiar ao PSL. Preferiu o Podemos, que lançaria ao Planalto o senador Álvaro Dias. Entre a cruz e a espada, Feliciano foi mais político que religioso. Dizia, nos bastidores, que ajudaria Bolsonaro, mas que, oficialmente, apoiaria o candidato de seu partido. Só migrou de vez para o lado do capitão depois da facada, quando viu que sua vitória seria iminente.

 

Convidado pela deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) para ser um dos vice-líderes do governo na Câmara, o deputado assumiu a articulação das pautas caras ao governo perante a bancada evangélica. Como o grupo parlamentar ainda está longe da coesão, (outras lideranças evangélicas, como Silas Malafaia e Samuel Ferreira, não comungam da amizade do deputado) o sucesso do plano de Feliciano ainda não foi consumado.

Ao se aproximar de Olavo de Carvalho, o deputado fornece afagos ao presidente e ao núcleo ideológico do governo enquanto o próprio partido de Bolsonaro tem insinuado maior fidelidade a Rodrigo Maia do que ao mandatário. O apoio ao presidente é uma avenida que Feliciano percorre, hoje, praticamente sozinho. “Minha função é blindar o governo e criar pontes com a frente evangélica. Já estão me chamando de 05”, disse.

 

 

Compartilhar:

Leia também
Últimas Notícias

Inscreva-se na nossa newsletter