Antes de Jair Bolsonaro tomar posse como presidente da República, o professor da Universidade de Harvard Scott Mainwaring, que estuda política brasileira há mais de 30 anos, previu que o ex-deputado teria dificuldades na relação com o Congresso Nacional, que sua coalizão poderia sofrer divisões e manifestou preocupação com a proteção de diretos de minorias a partir de janeiro de 2019.
Após 100 dias de governo, o americano avalia que essas três previsões se confirmaram, mas destaca que os últimos três meses também trouxeram uma "surpresa positiva".
Em entrevista à BBC News Brasil, o professor da Kennedy School of Government diz que se surpreendeu com a atuação dos militares que ocupam cargos-chave no Executivo, em particular com a do vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB).
"Durante a campanha, Mourão fez declarações que indicavam que ele era cético em relação à democracia. Mas, desde que assumiu a Vice-Presidência, ele aderiu de maneira consistente a um discurso e comportamento democráticos. Isso foi uma surpresa positiva", afirma.
Mainwaring é autor de dezenas de livros premiados sobre política da América Latina, entre os quais Democracies and Dictatorships in Latin America: Emergence, Survival and Fall (Democracias e Ditaduras na América Latina: Surgimento, Sobrevivência e Queda), e Party Systems in Latin America: Institutionalization, Decay and Collapse (Sistemas Partidários na América Latina: Institucionalização, Decadência e Colapso).
Além de fazer um balanço do início de governo Bolsonaro, ele arrisca novas previsões. Em política externa, o professor de Harvard acha que a proximidade de Bolsonaro com o presidente americano, Donald Trump, pode trazer benefícios para o Brasil, se o governo brasileiro souber manter, ao mesmo tempo, uma boa relação com a China.
Na política doméstica, Mainwaring afirma que Bolsonaro possivelmente terá que mudar a estratégia de negociação com o Congresso Nacional, se quiser ver a reforma da Previdência e outras propostas importantes aprovadas.
Desde que assumiu o governo, o presidente tem se recusado a usar mecanismos tradicionais de negociação com deputados e senadores, como emendas parlamentares e nomeação para cargos, além de não abrir um canal de diálogo com líderes de partidos.
"Se a economia está crescendo e há apoio popular, um presidente pode usar a própria popularidade como um instrumento eficiente para aprovar propostas no Legislativo", observou.
"Mas a aprovação de Bolsonaro caiu fortemente e rapidamente, e a economia não se recuperou ainda. As condições favoráveis não estão presentes para usar esse mecanismo na votação da reforma da Previdência."
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'Durante a campanha, Mourão fez declarações que indicavam que ele era cético em relação à democracia. Mas, desde que assumiu a vice-presidência, ele aderiu de maneira consistente a um discurso e comportamento democráticos. Isso foi uma surpresa positiva', diz Scott Mainwaring |
Veja os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil – Após 100 dias de governo, qual a sua avaliação sobre o desempenho de Bolsonaro como presidente? Algo te surpreendeu em relação ao comportamento apresentado na campanha?
Scott Mainwaring – Estava claro desde o início que uma coalizão muito heterogênea apoiava o governo Bolsonaro. Algumas divisões eram previsíveis. Alguns dos grupos que apoiavam Bolsonaro provavelmente estão surpresos com a magnitude das divisões e o fato de terem ocorrido já no início do governo. Mas algo que eu acredito que foi uma surpresa positiva é o comportamento do vice-presidente. Durante a campanha, Mourão fez declarações que indicavam que ele era cético em relação à democracia. Mas, desde que assumiu a Vice-Presidência, ele aderiu de maneira consistente a um discurso e comportamento democráticos.
Imaginava que Bolsonaro perderia parte do apoio popular, mas a rapidez com que isso ocorreu surpreendeu um pouco. E não estou surpreso em ver que a reforma previdenciária está andando lentamente. Parte da coalizão de Bolsonaro é formada por políticos clientelistas que fizeram a carreira usando recursos do Estado e, para eles, a reforma da Previdência não é necessariamente algo bom. Há interesses poderosos que querem proteger o sistema atual e há políticos ligados a esses interesses.
Uma grande reforma da Previdência é essencial para o Brasil. Mas algumas pessoas estavam excessivamente otimistas com a possibilidade de aprová-la rapidamente.
BBC News Brasil – Bolsonaro nos primeiros meses de governo se recusou a usar os modelos tradicionais de negociação com o Congresso e entrou em atritos com o presidente da Câmara. É possível manter essa estratégia e aprovar projetos impopulares, como a reforma da Previdência?
Scott Mainwaring – Acho que ele terá que mudar de estratégia. O exemplo anterior de presidente que usou uma estratégia parecida com a de Bolsonaro é Fernando Collor, que tentou não negociar com o Congresso. Você pode tentar convencer a população e os membros do Congresso por meio de discurso e pressão popular.
Se a economia está crescendo e há apoio popular, um presidente pode usar a própria popularidade como um instrumento eficiente para aprovar propostas no Congresso. Mas o fato de a aprovação de Bolsonaro ter caído forte e rapidamente pode dificultar o uso desses mecanismos para aprovar a reforma da Previdência. Essas condições extremamente favoráveis não estão presentes no momento.
BBC News Brasil – As últimas pesquisas de opinião mostram Bolsonaro com o pior percentual de aprovação popular nos primeiros três meses de governo que todos os presidentes eleitos após 1985. O que explica esse resultado?
Scott Mainwaring – As pessoas que votaram no Bolsonaro queriam uma mudança profunda. Mas você não consegue reverter tão rapidamente o cenário de corrupção, crime e de crise econômica. Essas coisas levam tempo. E Bolsonaro não é uma pessoa particularmente impressionante. Ele foi eleito com votações expressivas tanto no primeiro quanto no segundo mandato. Então, havia grandes expectativas. Mas agora que ele está no papel de presidente algumas de suas fraquezas estão mais aparentes.
BBC News Brasil – Por outro lado, a última pesquisa Datafolha mostra que 60% aprovam que militares ocupem postos estratégicos no governo. De onde vem esse crescimento no prestígio dos militares?
Scott Mainwaring – Em parte isso se deve a uma rejeição à classe política. Além disso, as Forças Armadas brasileiras têm algumas qualidades significativas. É uma instituição num país afetado por grandes escândalos de corrupção. Que eu saiba nenhuma grande liderança militar está sendo processada por corrupção. (Em 2016, o almirante da Marinha Othon Luiz Pinheiro da Silva foi condenado a 43 anos de prisão na Lava Jato após denúncias de corrupção referentes ao programa nuclear brasileiro.)
E alguns líderes militares, entre eles o vice-presidente Mourão, têm demonstrado capacidade técnica e expressado visões coerentes e inteligentes do mundo atual. Eu não estou, com isso, defendendo uma expansão da participação militar nos governos. Mas esses são alguns dos fatores que garantiram o aumento do prestígio dos militares no Brasil.
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Scott Mainwaring afirma que visão de mundo dos militares é muito diferente da defendida pelos seguidores de Olavo de Carvalho. Segundo o professor de Harvard, quando há divisões entre integrantes do governo, com o tempo, uma ala costuma se sobrepor a outra |
BBC News Brasil – Parece haver no governo Bolsonaro uma diferença clara entre o modo de pensar da ala militar do governo e a chamada ala olavista, de ministros que seguem as ideias de Olavo de Carvalho. O senhor conhece Olavo de Carvalho?
Scott Mainwaring – Não conheço. Conheço a reputação dele, mas nem mesmo em detalhes. Alguém aqui nos Estados Unidos me disse que ele é equivalente a um Alex Jones (apresentador de rádio famoso nos EUA por defender posições de extrema-direita e difundir teorias da conspiração) brasileiro. Ou seja, alguém que acredita em teorias da conspiração e que não aceita muito a ciência.
BBC News Brasil – O senhor observa uma divisão no governo quanto à forma de pensar políticas públicas e relações internacionais?
Scott Mainwaring – Sim, os militares brasileiros têm uma visão muito racional e, na maioria dos casos, científica do mundo. Costumam observar evidências, com exceção de uma parcela que parece acreditar nas teorias da conspiração de que ONGs internacionais de defesa do meio ambiente são uma ameaça na Amazônia.
Mas a maioria dos militares tem uma visão racional e age diferente dos seguidores de teorias da conspiração. O setor olavista tem uma visão muito diferente da dos militares e da ala econômica do governo. Esse é o tipo de racha profundo que estava claro na coalizão de Bolsonaro mesmo durante a campanha.
BBC News Brasil – E como resolver esse racha entre grupos com cargos no Executivo?
Scott Mainwaring – Claro que todos os governo em democracias são, em alguma medida, heterogêneos. O que é diferente no caso Bolsonaro é que existem divisões profundas em questões fundamentais, inclusive na política externa. O que costuma ocorrer é que ao longo do tempo há vencedores e derrotados.
Ou seja, uma ala ganha maior controle sobre o governo que a outra. Com a recente mudança no Ministério da Educação, me parece que o setor olavista sofreu uma derrota. Se isso vai significar uma derrota da facção olavista em outros setores ainda estamos por ver.
BBC News Brasil – O que a agenda internacional de Bolsonaro nos primeiros 100 dias, com as visitas aos Estados Unidos e a Israel, indica sobre os rumos das relações exteriores do Brasil?
Scott Mainwaring – Está claro que ele vai se aliar, principalmente, com governos conservadores e do Ocidente. Israel não está geograficamente localizado no Ocidente, mas está na órbita do Ocidente. Netanyahu e Trump têm semelhanças com Bolsonaro.
Uma aliança forte com os Estados Unidos pode ser positiva para o Brasil, embora o relacionamento com a China também seja muito importante economicamente. Se Bolsonaro conseguir se tornar um aliado próximo do governo Trump sem estremecer as relações com a China, será uma ótima estratégia de política externa.
BBC News Brasil – O PT parece continuar focado na defesa da liberdade de Lula e em manifestar forte oposição a partidos de centro-direita e direita, sem buscar alianças com partidos de centro e esquerda. Essa é a melhor estratégia para reconquistar espaço e votos nas próximas eleições?
Scott Mainwaring – Podemos dividir a resposta entre o que pode ser bom para o Brasil e bom para o PT. Para o Brasil, essa postura intransigente do PT é ruim. Ela reforça a polarização e torna mais difícil para o PT dialogar com alas democrática de centro e centro-esquerda.
O PT tem que ser capaz de dialogar com pessoas como Ciro Gomes (PDT) e também com setores do PSDB. Mas o partido permanece atrelado a uma visão problemática, de que o PT era tão importante para o Brasil que a corrupção era aceitável. Claro que não era uma lógica dita abertamente. Mas a lógica silenciosa era a de que o PT era necessário para o futuro do Brasil a ponto de justificar engajar em corrupção. Mas esses crimes não são desculpáveis para a maioria da população brasileira e da elite brasileira.
Para o partido, é improvável que essa estratégia de polarização seja eficaz em capturar uma maioria de votos, mas certamente é uma maneira eficaz de restabelecer o perfil da legenda como oposição radical. De certa maneira, o partido está retornando a 1982, com uma grande diferença: nos primeiros anos de PT, ele tinha uma reputação merecida de ser um partido honesto. Agora ele tem a reputação de praticar corrupção.
BBC News Brasil – Antes da eleição, o senhor classificou Bolsonaro como representante de uma direita autoritária e afirmou que havia risco de que alguns aspectos da democracia fossem afetados, como respeito a direitos de minorias. Após 100 dias de governo, o senhor está mais pessimista ou otimista?
Scott Mainwaring – Eu diria que nenhum dos dois. Minha preocupação sobre direitos se verificou correta. Não estou surpreso. O que o discurso em âmbito nacional faz é que ele legitima grupos que acreditam que podem atacar gays ou pessoas com características A ou B.
Esse tipo de discurso de defender mais armas nas ruas e maior impunidade para assassinatos cometidos por policiais legitima ataques à imprensa, gays, jornalistas, ativistas e também legitima o uso de força indiscriminada contra negros, pobres, pessoas que vivem nas favelas. Eu não estou tão preocupado quanto à possibilidade de uma completa quebra democrática. Os perigos à democracia no Brasil dizem respeito ao contínuo exercício de direitos, não em relação a uma erosão completa do sistema democrático.
BBC News Brasil – Bolsonaro determinou que houvesse comemorações pelo 31 de março de 1964 e o governo quer rever o entendimento de que o regime militar foi uma ditadura. Como estudioso de democracias e ditaduras na América Latina, o que acha dessa posição?
Scott Mainwaring – É absurdo dizer que não houve golpe em 1964. O governo, claro, não pediu meu conselho, mas a declaração mais forte que ele poderia ter feito é a de que se tratou de um golpe militar, mas um golpe justificável. Eu não acho, pessoalmente, que era justificável.
Mas aquele era um período de grande temor em relação ao comunismo. Era Guerra Fria e a revolução cubana inspirou a esquerda a acreditar que a revolução era possível e desejável. E inspirou a direita a acreditar que uma tomada de poder comunista era possível e preocupante. Então, o Brasil era parte de uma tendência generalizada. Agora, a ideia de que não houve golpe militar em 1964 é um absurdo completo.