Luiz Carlos Azedo
Jornalista, colunista do Correio Braziliense
De todas as solenidades já realizadas no governo Bolsonaro, com exceção da posse do próprio presidente da República, talvez nenhuma outra mereça mais atenção como a passagem de comando da Força Terrestre, hoje, no Clube do Exército, ocasião em que o general Eduardo Villas Boas passará o bastão de comando do Exército para seu colega Edson Leal Pujol.
Não deveria ser assim, mas é o que a realidade nos mostra, em razão da presença hegemônica de generais de quatro estrelas no novo ministério e do próprio papel que Villas Boas desempenhou nos últimos quatro anos, como discreto fiador do impeachment de Dilma Rousseff e, sabe-se agora, de decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante o processo eleitoral, entre as quais a manutenção do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na cadeia.
Villas Boas encerra sua carreira militar em precárias condições físicas, em razão de uma grave doença degenerativa, mas em pleno gozo de suas faculdades mentais. O que parecia ser um fator de desgaste e enfraquecimento de sua liderança, a deterioração de sua saúde, que o levou à cadeira de rodas, com o passar do tempo, aliada ao esforço de se fazer presente nos momentos mais importantes, se comunicar diariamente com a tropa e a sociedade pelas redes sociais e se manter em permanente diálogo com as principais autoridades do país, acabou aumentando o seu carisma na tropa e lhe reservou um lugar de honra na galeria de líderes militares reconhecidos e respeitados pela sociedade.
Por duas vezes, teve a História do país nas mãos. A primeira, durante a campanha do impeachment, quando impediu que a então presidente Dilma Rousseff decretasse o estado de sítio para reprimir a oposição; a segunda, mais recentemente, durante a campanha eleitoral, em pelo menos dois episódios que poderiam ter gerado insubordinação nos quartéis, o habeas corpus concedido ao ex-presidente Lula e a facada em Jair Bolsonaro. Nos bastidores da crise econômica, ética e política que o país enfrentou, reiterou o papel dos militares na manutenção da estabilidade, da legalidade e da legitimidade, bem como a defesa da Constituição Federal.
Entretanto, a história ainda julgará as consequências de sua intervenção no episódio do julgamento do habeas corpus de Lula, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 3 de abril do ano passado, quando deixou os bastidores para se manifestar publicamente sobre aquele momento político nas redes sociais: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, escreveu no Twitter oficial de comandante do Exército brasileiro. Depois, completou: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
Ovo da serpente
Essas declarações foram repudiadas pelo decano do Supremo, Celso de Mello, que comparou Villas Boas a Floriano Peixoto, o segundo presidente da República, que ficou conhecido como “marechal de ferro” por governar em regime de estado de sítio. Em seu voto a favor da concessão do habeas corpus, que acabou rejeitado pela maioria, o ministro disse que as declarações eram “claramente infringentes do princípio da separação de poderes” e pareciam “prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional”.
“A nossa própria experiência histórica revela-nos — e também nos adverte — que insurgências de natureza pretoriana, à semelhança da ideia metafórica do ovo da serpente (República de Weimar), descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas, ao mesmo tempo em que desrespeitam a autoridade suprema da Constituição e das leis da República!”, disse Celso de Mello, que completou: “As intervenções pretorianas no domínio político-institucional têm representado momentos de grave inflexão no processo de desenvolvimento e de consolidação das liberdades fundamentais”.
O general Leal Pujol, o mais antigo do Alto-Comando, assumirá o Exército num contexto completamente diferente. Entretanto, manifestações recentes dos demais comandantes militares e do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, sobre a reforma da Previdência, revelam um ativismo político preocupante, nem tanto pela defesa de privilégios, mas porque sinalizam certa tutela sobre o próprio governo e demais poderes, a partir de interesses corporativos. Historicamente, esse costuma ser o primeiro degrau da anarquia nas Forças Armadas.