O conflito era previsível. Desde que Jair Bolsonaro venceu as eleições, o discurso oficial cubano acirrou a retórica contra o presidente eleito e preparou a opinião pública nacional para a ruptura que se avizinhava. A gota d'água que fez transbordar o copo na Praça da Revolução de Havana foram as declarações de Bolsonaro de que mudaria as condições do acordo pelo qual mais de 8.300 profissionais da ilha trabalham no programa Mais Médicos.
Na quarta-feira passada (14/11), a tensão alcançou seu ápice, quando o Ministério da Saúde Pública de Cuba anunciou que abandonava o contrato e retiraria seus médicos do Brasil.
A nota oficial, que todos os noticiários repetiram, falava de não tolerar as ameaças de Bolsonaro, mas evitava habilmente citar partes de sua declaração.
Especialmente aquela em que o líder direitista afirmava que os profissionais deviam receber o salário integralmente e poder trazer suas famílias pelo tempo em que estivessem no programa.
O governo cubano tem feito das missões médicas um negócio lucrativo. Com profissionais mobilizados para mais de 60 países, o dinheiro arrecadado pela prática é a principal fonte de divisas do país, calculando-se que supere os 11 bilhões de dólares anuais.
No caso do Brasil, Havana embolsa 75% do salário de 3.300 dólares correspondente a cada um dos médicos, que só recebem os 25% restantes. Na ilha, numa conta bancária a que não têm acesso, vai se acumulando uma quantia mensal equivalente a cerca de 60 dólares, que só poderão cobrar se regressarem. Quem abandona o programa por sua própria vontade é considerado "desertor" e tem entrada proibida em Cuba por oito anos.
Durante o governo do PT, os que escapavam do contrato eram perseguidos pela polícia e podiam ser devolvidos a Cuba caso fossem presos. Nenhum podia trazer sua família para acompanhá-lo durante a missão, e muitas vezes eles passavam a temporada no Brasil em hospedagens lotadas, que compartilhavam com outros médicos, enfermeiras e técnicos hospitalares.
Mesmo com tantas dificuldades e vencimentos tão baixos, as missões eram muito cobiçadas pelos médicos, permitindo-lhes comprar bens em falta nos mercados da ilha e fazer contatos para obter um contrato futuro com alguma clínica e retornar ao país sul-americano em regime privado.
Para além do alívio na área de saúde que a existência do Mais Médicos significou para muitos brasileiros das zonas mais pobres, por trás do programa se escondia uma operação politica para apoiar o PT e garantir-lhe os votos das classes mais baixas. Estava claro que esse tipo de apoio não se prolongaria com Bolsonaro. Assim, era apenas uma questão de tempo até o castrismo retirar seus profissionais da saúde do território brasileiro. Agora cabe perguntar quantos deles realmente regressarão.
O presidente eleito anunciou que outorgará asilo político a todos os médicos cubanos que o solicitarem, e é de se prever que um número considerável recorrerá a esse benefício. Quem o fizer perderá o direito de regressar a seu país por longos anos, será chamado de traidor e provavelmente sua família em Cuba sofrerá pressões. A batalha dos jalecos brancos apenas começou.