DA PÁTRIA
Vania Leal Cintra
Não sei exatamente quem tu és. Nem estou bem certa de por que agora te atreves a vir à minha presença. Será, porventura, porque me vês erguer-me tão furiosa? Isso te surpreende? Sabes quem sou? Crês que me conheces?
Do que, sim, estou sabendo é que, já há algum tempo, andas enviando-me recados de que tens vergonha de ti – subterfúgio com o qual, após ver-me suportar tantos ultrajes, deves estar pretendendo abrandar e controlar a minha ira. Não, não os considerei.
E não te concederei a oportunidade de dizer-me outras mentiras mais, além das já pude ouvir tão pacientemente. Sentisses vergonha, não procurarias ainda hoje justificar, sem qualquer traço de arrependimento, como se tivesses sido desde sempre um inocente e inocente ainda fosses, tudo aquilo que, de muito errado e muito estúpido, até ontem tu fazias.
Sim, vergonha deverias sentir. Mas não sentes. Porque não tens consciência, nem sequer noção tens do que seja sentir vergonha. O que sentes é apenas o pavor que acompanha o espírito de todos os covardes. Aterroriza-te perceber que teus bens se puseram tão vulneráveis, tal como tentaste provocar que os meus restassem, que poderão transformar-se em não mais que nuvens de fumaça a qualquer momento, que poderá faltar-te alento, que o frágil teto sob o qual pensas estar bem protegido poderá desabar e te esmagar.
Nada mais que isso. E, para chamar minha atenção, porque bem sabes de que sempre te fui pródiga, dissimulas, lamentas uma desgraça que tu mesmo provocaste tentando atribui-la apenas à responsabilidade de alguém mais, mentes – o que tão bem sabes fazer.
Quem sente a vergonha de ti sou eu, miserável! E pouco me importa quem sejas tu! Sim, eu sinto uma abissal vergonha de ti, vergonha que nos afasta em definitivo, uma vergonha imensa, extraordinariamente maior que aquela que, por ignorância e também por má-fé, no passado longínquo e no bem recente, foste capaz de insinuar muitas vezes, ao mundo inteiro, que éramos nós, eu e os meus, quem te causava.
Tivesses, de fato, tal como argumentas, educado pelo menos parte de teu povo, batalhado sempre pela justiça, compactuado com a honestidade, primado pela verdade, e ele, esse povo, deveria ser-te e ser-me grato, e nunca teria enveredado pelo caminho da desonra. O que fizeste, querendo ignorar-me, foi vislumbrar facilidades e vantagens para ti mesmo, foi disseminar entre os meus de espírito mais inerme as tuas promessas loucas e vãs, foi agir com lassidão e leviandade tal como ages agora.
Tua tentativa hipócrita de atribuir excelência intelectual e moral à intenção que, conforme alegas, estimulava-te a cometer teus erros mais crassos e cruéis somente ainda mais faz aumentar a descomunal vergonha que sinto de ti. E me provoca o único arrependimento, que me vejo forçada a declarar, em toda a minha vida soberana quase duplamente centenária – o de ter-te abrigado entre os meus, em meu amplo e generoso seio, e ter-me proposto a, gentilmente, sem qualquer cautela, aplacar tua voracidade insana e deletéria, que muito custei a compreender o quanto é violenta e desenfreada.
Não só todos os meus como eu mesma, ainda que apenas por força de minha real e incontroversa existência, delatamos teus intentos pérfidos tão logo os percebíamos, acusamos tua irresponsabilidade, apontamos teus desvios todos e procuramos corrigi-los.
De mim e deles mesmos, nenhuma vergonha eu permitiria que os meus sentissem! Em nenhum momento, em nenhuma hipótese! Solidamente unidos há quase quatro séculos, em ferozes, incansáveis e sucessivos confrontos travados no sentido de, cada vez mais, consolidar-me e impor-me como fato consumado e inconteste, os meus enfrentaram valorosamente as vicissitudes, sendo, por isso, muitas vezes menosprezados, aviltados, marginalizados, muitas vezes punidos com a morte e até mesmo ridicularizados por ti e pelos teus, esses tão sombrios e execráveis vultos que se infiltram por todas as brechas que conseguem abrir em minhas defesas.
Se alguma vez me senti entristecida ou com algum receio, essa sensação não terá sido provocada por qualquer falha minha ou, muito menos, qualquer falha dos meus, por faltar-lhes vigor ou persistência ou faltar, a mim e a eles, dignidade, mas sim pelas dores que tuas investidas devastadoras nos causavam. Tantas vezes tão profundamente ferida, sabendo-me amparada por meus bravos, nunca me senti frágil, sempre reagi da forma mais correta e mais altiva às ameaças e às adversidades, e permaneci desafiando-te e desafiando os teus, tal como hoje faço. Sim, sofremos derrotas, perdemos batalhas, mas nos levantamos em seguida porque não perderemos a guerra que tu mesmo nos obrigas a enfrentar. Aqui estamos, presentes, atentos, plenos! Não contes, pois, com que tuas lágrimas me abalem, que uma tarja negra em tuas vestes me comova e que de ti eu me apiede.
Porque, de ti, sinto eu vergonha, uma colossal vergonha. De ti, que não lamentas senão por ti mesmo – o que me causa também o asco, não apenas a vergonha – e dos teus, que contigo aprenderam a fazer o mesmo.
E tua desfaçatez é tamanha que, com um ricto de desprezo, chegas-te a mim – a Pátria – querendo dizer-me que consideras pecaminosas as manifestações de nacionalidade de meus filhos, quaisquer que sejam elas, manifestações essas que são exatamente o que permanentemente reitera e estreita nossos vínculos, o deles comigo, o meu com eles. Quem pensas que és para tentar prosseguir afrontando-me dessa forma?
Pois que ardas em um inferno qualquer, desprezível despudorado! Que ardas em um inferno muito mais tenebroso que aquele em que quiseste, e muitas vezes permitiste quando não provocaste, que ardessem aqueles que muito honro e muito me honram! Os fortes ventos, despertados pelo calor das chamas que te hão de consumir, ainda mais alto elevarão a minha Bandeira. E, nela envolta, elevarão a minha sofrida e heroica gente brasileira, que bem me conhece e tanto me enternece.