Editorial
Jornal Gazeta do Povo
Se a economia brasileira já perdeu algo entre R$ 15 e 75 bilhões com a greve dos caminhoneiros, a depender da estimativa, e alguns analistas já estejam prevendo um crescimento de menos de 2% do PIB neste ano em razão da patriotada nas estradas, e isso sem falar nos impactos indiretos da derrubada da confiança, grande parte das lideranças brasileiras não fica atrás em matéria de déficit de bom senso.
Premidos pelo radicalismo, pela obtusidade de algumas lideranças da sociedade civil e por um misto de inépcia e oportunismo da classe política, os brasileiros razoáveis tornaram-se, nestes dias, a Cassandra a que ninguém dá ouvidos. Desde o início da paralisação já havia vozes moderadas na imprensa e nas redes sociais alertando que a revolta da boleia tinha traços do velho corporativismo brasileiro – cuja conta para a arrecadação ainda nem chegou por completo – e adotava uma postura fortemente autoritária, incompatível com a convivência democrática.
O primeiro a ser atropelado pela paralisação foi o governo federal, que subestimou todos os alertas, depois se revelou incapaz de lidar com a chantagem dos caminhoneiros, anunciando duas vezes em vão o fim da greve, e comprometeu ainda mais sua autoridade falando grosso com a voz de Forças Armadas que não pareciam dispostas a bancar a aposta que Michel Temer fez na sexta-feira (25), ao assinar o decreto de Garantia da Lei e da Ordem.
Enquanto o bufão da corte, Carlos Marun, fazia pouco da gravidade da situação a cada aparição pública, o governo entregou tudo e mais um pouco, e a sociedade teve de comemorar seu próprio descaminho: subsídio ao diesel, reserva de mercado e redução de pedágios por decreto. Se o governo encontrou seu desmoronamento moral com o caso da JBS, seu fim político com o abandono da agenda de reformas, a administração chegou perto de sua derrocada operacional neste maio turbulento – e o maior culpado disso, para o governo, era o WhatsApp.
O Congresso não ficou atrás em matéria de irresponsabilidade. O primeiro a aderir ao oba-oba populista, certamente pensando em capitalizar politicamente sobre o sofrimento da nação, foi o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que logo anunciou em vídeo cheio de papagaios de pirata – incluindo o presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE) – a proposta de zerar a Cide.
Depois, liderou a votação para zerar o PIS/COFIN com base em cálculos ginasianos, quiçá feitos em papel de pão. O presidente do Senado, quando se deu conta da patuscada, preferiu se resguardar da falta de combustíveis e voar de volta para seu reduto em plena quinta-feira (24). Enquanto isso, deputados e senadores se refestelavam na pantomima democrática, manifestando no plenário e em redes sociais uma compreensão pedestre das contas públicas e do funcionamento da economia, pedindo a cabeça do presidente da Petrobras, Pedro Parente. Não à toa, a empresa perdeu mais de R$ 120 bilhões em valor de mercado durante a greve.
Os brasileiros acreditaram que faziam ofertas ao altar da democracia, quando na verdade prestavam culto ao corporativismo, ao intervencionismo e ao populismo rasteiro
Do governo e do Congresso Nacional que estão aí, talvez já não se esperasse nada, mas assusta que os pré-candidatos à Presidência tampouco tenham se revelado à altura do momento dramático que o país enfrentou. Jair Bolsonaro (PSL) foi o primeiro a sair do armário, abandonando qualquer flerte com o liberalismo, esquecendo-se oportunamente de sua oposição aos métodos autoritários de reivindicação política – contra os quais, aliás, ele mesmo apresentou um projeto de lei – e só na undécima hora pedindo a “volta à normalidade”. Álvaro Dias (Podemos) e Ciro Gomes (PDT) aderiram à mesma mentalidade populista e irresponsável.
Este último, inclusive, aproveitou para desfiar o rosário do estatismo intervencionista mais tacanho, somando equívoco sobre equívoco em rede nacional no programa Roda Viva. Marina Silva (Rede), Henrique Meirelles (MDB) e Geraldo Alckmin (PSDB) mostraram alguma preocupação com a independência da política de preços da Petrobras, mas falharam, certamente pelo incentivo do calendário eleitoral, ao não demonstrarem a clareza moral, em suas posições, contra os métodos autoritários do movimento paredista. Entre mortos e feridos, difícil enxergar quem se salvou. Já a FUP, movimento ligado ao PT, não traiu seu oportunismo atávico e arrumou uma greve para chamar de sua, a dos petroleiros: afinal, primeiro como tragédia, depois como farsa.
Também surpreendente foi a falta de visão estratégica e de espírito democrático de lideranças empresariais. Muitas associações – e não estamos falando das entidades patronais que tiveram papel no locaute, o que já rendeu a abertura de ao menos 54 inquéritos pela Polícia Federal – manifestaram apoio aos grevistas nos primeiros dias de paralisação, quando já estava clara a temeridade do cenário. Várias mantiveram esse apoio, mesmo quando já eram evidentes o caos e o risco de ruptura democrática.
Nisso há um misto de visão estreita de alguns, de oportunismo de outros que viram ganhos financeiros vultosos nas pautas dos caminhoneiros, e de certa simpatia pelo espírito jacobino que tomou conta do país, como se a revolta da boleia fosse finalmente nos livrar da opressão de um Estado paquidérmico conduzido por uma classe política corrupta. Até agora, o resultado do movimento foi precisamente o oposto.
Não é exagero dizer que, nestes dias que passaram, grande parte da sociedade brasileira foi tomada por um surto coletivo. Os brasileiros acreditaram que faziam ofertas ao altar da democracia, quando na verdade prestavam culto ao corporativismo, ao intervencionismo e ao populismo rasteiro, e descobriram que eram eles próprios o Isaac sob a faca de um Abraão que Deus algum mandaria parar no último instante. A faca entrou e a sociedade cuida agora de suas dores.
Que este momento de convalescença possa servir a uma reflexão – de cada cidadão, liderança política e empresarial – que recoloque a todos no caminho da razoabilidade, do diálogo e da moderação.
Fora desse caminho, as dores serão ainda maiores.