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Lei sancionada por Temer já tirou mil ações da Justiça comum, de ameaça a tortura

 

Vinicius Sassine


BRASÍLIA – A Asa Sul, em Brasília, é um dos espaços mais nobres e caros da capital. Ali, mais especificamente na região da quadra 310, a presença de um homem causava incômodo aos moradores. Usuário de drogas e suspeito de tráfico, Ronniely de Souza não era bem-vindo. Três policiais militares decidiram, então, castigá-lo. E com crueldade, como concluiu o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).

Primeiro, Ronniely foi detido de forma ilegal, algemado, colocado no "cubículo" de um carro da polícia e levado para um matagal. Depois, levou chutes no rosto, nas costas e um pisão no pescoço. Choques com uma pistola a laser foram aplicados no pescoço e no braço. Por fim, ele teve o pé perfurado por uma barra pontiaguda de ferro. A tortura está descrita na denúncia. Cinco anos após o crime, o caso chegou a uma reta final.

No dia 20 de março, os promotores entregaram as alegações finais, em que reiteram o pedido de condenação de dois dos três PMs, Sidney Gomes Pereira e Hamilton Castro da Silva. Segundo a defesa de Hamilton, o que tinha de ser informado está nos autos. A de Sidney não deu retorno à reportagem. O caso já poderia ir à sentença, não fosse um detalhe: o MPDFT pediu a transferência do processo da Justiça comum para a Justiça Militar.

O pedido dos promotores não foi aleatório. Em 13 de outubro de 2017, o presidente Michel Temer sancionou a lei 13.491, que amplia as possibilidades de militares suspeitos de crimes cometidos no exercício da função deixarem a Justiça comum e serem julgados na Justiça Militar, em caso de crimes contra civis. Os promotores do DF se basearam na nova lei para pedir o declínio de competência.

A lei vem resultando em diversos casos de conflito de competência e numa indefinição sobre a quem cabe julgar esses PMs, o que pode atrasar o andamento das ações. Em dezembro, O GLOBO mostrou que as divergências já haviam começado com a aprovação da lei. Uma solução definitiva ficará a cargo do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que já analisa os primeiros conflitos de competência, ou mesmo do Supremo Tribunal Federal (STF), provocado com ações diretas de inconstitucionalidade.

A 4ª Vara Criminal de Brasília, por exemplo, ainda não se decidiu sobre o que fazer com o processo da suposta tortura a Ronniely. Outras varas, em todo o país, já tomaram essa decisão. Seis meses depois de começar a valer, a lei 13.491 levou a um deslocamento de mais de mil processos que antes investigavam PMs na Justiça comum, em 14 estados, e que agora estão abrigados na Justiça Militar, como mostra um levantamento inédito feito pelo GLOBO. Uma decisão do STJ ou do STF, no entanto, pode voltar a embaralhar esses processos.

ENTIDADES CRITICAM "IMPUNIDADE E BLINDAGEM"

Somente em Goiás, por exemplo, o Tribunal de Justiça (TJ) espera um deslocamento de 3 mil processos envolvendo PMs. Os processos já transferidos nos estados investigam PMs por tortura, abuso de autoridade, ameaça, lesão corporal, organização criminosa, corrupção, concussão, peculato e até mesmo crimes como estupro, posse ilegal de arma e de trânsito.

A predominância é de casos de abuso de autoridade. Além dos deslocamentos, a lei fez aumentar a quantidade de procedimentos abertos pela PM – e não pela Polícia Civil – em casos de crimes de militares contra civis: são 2,5 mil procedimentos novos desde outubro, em 11 estados.

Se o caso de Ronniely mudar de mãos, por exemplo, o juiz da Auditoria Militar do DF pode optar por refazer a instrução do processo, levando-se em conta o princípio da identidade física do juiz: o magistrado que faz a instrução é o que julga. Ele pode, no entanto, manter o processo como está, ler e proferir uma sentença. O caso estará, porém, eivado de insegurança jurídica: o STJ pode decidir posteriormente que situações como essa deveriam ser mantidas na Justiça comum.

Além das incertezas, integrantes do MP e da Justiça que criticam a lei elencam basicamente três efeitos críticos: 1) a transferência de investigações de crimes cometidos por PMs, especialmente tortura, o mais emblemático, da esfera da Polícia Civil para as Corregedorias da própria PM, onde inquéritos historicamente sofrem com atrasos, corporativismo e ausência de instrumentos de apuração; 2) uma sobrecarga inédita de processos em varas e promotorias militares (o mais comum é o estado ter uma única vara e uma só promotoria); e 3) a saída de militares federais dos tribunais de júri em caso de crimes dolosos contra a vida, outra inovação da lei 13.491.

Já promotores e juízes militares sustentam que há espaço para o recebimento desses novos processos e que não haverá alívio aos PMs. Casos com penas menores, como abuso de autoridade, podem inclusive levar esses militares a perderem possibilidades de transformação da pena em medidas alternativas, como serviços comunitários, prevista em juizados especiais e inexistente na Justiça Militar, segundo promotores e juízes ouvidos pela reportagem.

Um entendimento prevalecente é que já há um desequilíbrio de forças entre polícias. Uma vítima de tortura de um PM, por exemplo, se verá obrigada a procurar a Corregedoria da própria PM. Na interpretação que se vem fazendo da lei nos estados, a investigação desses casos é exclusiva agora das corregedorias, e não mais da Polícia Civil.

– A lei faz com que os casos não sejam da Polícia Civil, para que tudo vire inquéritos policiais militares (IPMs). Aí não adianta dizer que o MP vai investigar – afirma a subprocuradorageral da República Luiza Frischeisen, coordenadora da 2ª Câmara de Revisão da Procuradoria Geral da República (PGR).

Entidades que atuam na defesa dos direitos humanos, como a Anistia Internacional, criticam a nova legislação, por enxergarem "impunidade" e "blindagem" aos militares. A lei é alvo de ações diretas de inconstitucionalidade no STF, uma de autoria da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol) e outra do PSOL.

Desde 27 de outubro de 2017, um pedido semelhante está no gabinete da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Esse pedido foi formulado por colegiados da própria PGR. Dodge vem encontrando dificuldades jurídicas para propor a ação.

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