Magne Cristine Cabral Da Silva
Criado no final de fevereiro, pela Medida Provisória nº 821/2018, o Ministério Extraordinário da Segurança Pública (MESP) passou a ser responsável por coordenar e promover a integração da segurança pública em todo o território nacional, em cooperação com os demais entes federativos.
O novo ministério foi anunciado em meio ao clamor social por medidas de combate à violência e à criminalidade, que deixaram um saldo recorde de 61.283 homicídios em 2016, segundo o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017”. Em estados como o Rio de Janeiro, o poder bélico do crime organizado supera o aparato policial e a audácia dos bandidos vem gerando pânico na sociedade e exigindo a intervenção federal.
Com o novo modelo organizacional, a segurança pública foi elevada para a cúpula administrativa do governo federal, o que vai permitir a formulação, implantação e coordenação de políticas públicas nacionais, de forma condizente com a arquitetura constitucional definida para o setor.
Com status de ministério, a segurança pública passa a ter autonomia técnica, financeira e administrativa para estabelecer estratégias, diretrizes e prioridades na aplicação de recursos públicos, bem como para criar normas, acompanhar e avaliar programas federais e executar ações nas suas áreas de competência.
O Ministério Extraordinário da Segurança Pública representa um avanço na gestão pública da segurança, mas se espera que seja “extraordinário”, no sentido de ser “notável”, e não no de ser “transitório”. É que para enfrentar a demanda reprimida de toda complexidade de problemas da segurança pública são necessárias medidas que não se limitem a mero plano de governo, mas que sejam políticas de Estado que edifiquem estruturas sólidas e perenes para o País.
A segurança pública na CF
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a incluir em seu texto um capítulo sobre a segurança pública, trazendo importantes avanços na legitimação da atuação estatal na formulação e execução de políticas de segurança. Contudo, após quase 30 anos, o modelo de segurança pública ainda está muito aquém de garantir a efetiva proteção da sociedade e precisa de profundas reformas.
O texto constitucional dispõe que segurança é um direito fundamental e garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à segurança (art. 5º). Define ainda que “são direitos sociais, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Note-se que, dentre os direitos sociais, somente a segurança não estava contemplada em um ministério, até que foi criado o MESP.
O Supremo Tribunal Federal definiu que “o direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo.” (RE nº 559.646/PR-AgR, Segunda Turma, Relatora Ministra Ellen Gracie, DJe 24/6/11).
No capítulo que trata da segurança pública, a CF dispõe no art. 144 que ela é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares.
Porém, o legislador constitucional foi econômico ao dispor nos seus cinco incisos apenas das instituições policiais da União e dos Estados, sem abordar o papel de outros órgãos governamentais e da sociedade na prevenção à violência e criminalidade.
A segurança pública é um sistema complexo que contempla várias ações de caráter preventivo (educação, saúde, emprego, policiamento preventivo, etc); a legislação penal (definição de crimes e penas); a persecução penal (atuação dos órgãos policiais de investigação e o Ministério Público); o processo penal (julgamento do acusado pelo juiz); a execução penal (cumprimento da pena pelo condenado) e a ressocialização (reintegração do preso à sociedade).
Esses elementos do sistema de segurança pública são interdependentes e interagem entre si, formando um conjunto que precisa ser administrado em sua integralidade e em cada uma de suas partes, uma vez que todas as variáveis, internas e externas, influenciam todo o sistema e os seus resultados.
Para os especialistas Arthur Trindade e Renato Sérgio de Lima, “a segurança pública constitui um campo formado por diversas organizações que atuam direta ou indiretamente na busca de soluções para problemas relacionados à manutenção da ordem pública, controle da criminalidade e prevenção de violências”.
O MESP precisa gerir a segurança pública de forma sistêmica, com ações simultâneas e coordenadas, para que haja sinergia e efetiva interação de todos os seus segmentos no País. Além disso, a segurança pública é responsabilidade de todos e precisa contemplar políticas sociais integrais, com a participação da administração pública da União, Estados e Municípios, da sociedade, associações e terceiro setor.
As polícias civis e militares no novo ministério
A maioria das demandas nacionais por segurança pública envolve a atuação das polícias civis e militares estaduais, responsáveis pela maior parte das ocorrências criminais do País. No entanto, essas polícias não foram contempladas diretamente na estrutura organizacional do novo ministério.
Os órgãos policiais possuem organização, estrutura, quadro funcional e remuneração diferentes nos Estados, assim como formas de atuação independentes e às vezes conflitantes entre si. A ausência de leis nacionais que regulamentem as polícias civis e militares, federais e estaduais, produz um quadro de diversos ordenamentos para a solução de problemas similares de segurança no País.
Nas polícias civis e militares falta estrutura para o desempenho de suas atividades. As corporações estão em geral sucateadas, com instalações antigas, equipamentos obsoletos, armamentos e viaturas em precárias condições de uso. O efetivo reduzido e a ausência de políticas de recursos humanos que promovam a valorização, a segurança e o incentivo para o trabalho, gera um quadro de sacrifício dos policiais, que têm que fazer um esforço sobre-humano para atender à sociedade. Esse cenário tem deixado a polícia acuada e vitimado centenas de policiais.
A média nacional de elucidação de homicídios varia de 5 a 8%, segundo estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O arcaico inquérito policial, criado em 1871, burocratiza a investigação e impede que haja celeridade, que é fundamental para o êxito da investigação policial. A escassez de dados e de estatísticas criminais dificulta o diagnóstico mais preciso, que certamente irá revelar um cenário ainda mais caótico.
É imperioso definir a competência e os limites de atuação do MESP na gestão das polícias em todo o País, em especial as polícias civis e militares, para que haja efetividade na adoção de políticas integradas, sob pena do novo ministério representar, somente, a duplicação do anterior Ministério da Justiça e Segurança Pública.
O artigo 144, § 6º da CF dispõe que as polícias civis, militares e corpos de bombeiros militares subordinam-se aos governadores dos estados e do Distrito Federal. Mas é preciso compreender o que significa diferenciar a subordinação das polícias estaduais aos governadores dos Estados dos limites de atuação do novo ministério.
O texto constitucional estabelece que é competência privativa da União legislar sobre “normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares” (art. 22, XXI). Assim, o MESP como órgão superior de gestão da segurança pública, tem a competência privativa para dar início ao processo legislativo que defina as normas gerais das polícias militares e corpos de bombeiros militares em todo o País, apesar de estarem subordinados hierarquicamente aos governadores dos respectivos estados.
No que se refere às polícias civis, a Constituição Federal dispõe que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre “organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis” (art. 24, XVI). Dessa Forma, compete ao MESP a iniciativa do processo legislativo que estabeleça normas gerais para as polícias civis dos estados (art. 24, §1º).
Nota-se que a CF diferencia nitidamente a competência para legislar sobre a organização do serviço das polícias civis, militares e corpos de bombeiros militares, da atribuição de gerir seu funcionamento, subordinando esses órgãos aos governadores que têm conhecimento da realidade específica para a operacionalização das atividades de policiamento nos Estados e municípios.
Essa diferença entre competência para legislar e subordinar o desenvolvimento do serviço pode ser vista nitidamente quando se analisa a disciplina constitucional sobre a polícia civil, polícia militar e corpo de bombeiros militar do Distrito Federal. Apesar de também estarem subordinados ao governador do DF (art. 144, § 6º), a CF dispõe que compete à União organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio (art. 21, XIV).
O MESP possui competência constitucional para organizar e estruturar as polícias civis e militares do País, a partir de uma política integrada de segurança pública que contemple a prevenção e o controle da criminalidade, fenômenos que não respeitam fronteiras estaduais ou nacionais. Nesse regramento, o art. 144, §7º define que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”.
A exclusão da Polícia Ferroviária Federal
A estrutura organizacional do MESP foi transferida do Ministério da Justiça. Com isso, o novo ministério passou a conter o Departamento de Polícia Federal, o Departamento de Polícia Rodoviária Federal, o Departamento Penitenciário Nacional, o Conselho Nacional de Segurança Pública, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, a Secretaria Nacional de Segurança Pública e uma secretaria.
A Medida Provisória 821/2018, ao criar o MESP alterou a Lei nº 13.502/2017, que disciplina a estrutura dos ministérios do Governo Federal e revogou o art. 47, IV, que dispunha que a polícia ferroviária integrava a área de competência do Ministério da Justiça. Com isso a Polícia Ferroviária Federal (PFF) deixou de fazer parte da estrutura organizacional da União, mesmo estando contemplada na CF, dentre os órgãos de segurança pública do País.
Dispõe a CF no art. 21, “d”, que compete à União os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território. Diz ainda que a União tem a competência privativa de legislar sobre a competência da polícia federal e das polícias rodoviária e ferroviária federais (art. 22, XXII).
Criada pelo constituinte originário para ser uma das polícias federais do Brasil, juntamente com a PF e a PRF, a PFF nunca foi efetivamente estruturada. A Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) foi uma empresa estatal nacional de transporte ferroviário que cobria boa parte do território brasileiro, mas acabou sendo extinta em 1999, com a política de desestatização do governo federal, que promoveu a concessão dos serviços para a iniciativa privada.
O transporte ferroviário no Brasil possui uma rede de 30.129 quilômetros de extensão, espalhados por todo o País, possuindo ligações ferroviárias com Argentina, Bolívia e Uruguai. Além do transporte de passageiros, passa pelas ferrovias 25% de tudo o que é transportado no País, que representaram 464 milhões de toneladas de carga no ano de 2014, segundo os dados da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários.
O policiamento insuficiente da malha ferroviária do Brasil permite que uma infinidade de crimes, como contrabando, descaminho, tráfico de drogas e armas, sejam perpetrados pelos trilhos. O MESP precisa incluir a Polícia Ferroviária Federal na sua estrutura e disciplinar seu funcionamento, de forma a promover a segurança no transporte ferroviário nacional e cumprir o mandamento constitucional.
Desafios do novo Ministro do MESP
O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, tem conhecimento dos problemas dos órgãos policiais do País, desde que atuava como deputado federal e realizava audiências públicas com os órgãos de segurança e categorias policiais. Na época, já defendia a reformulação do modelo de policiamento, como a implantação do ciclo completo de polícia, e lidava com muitas resistências e corporativismos.
Vindo do Ministério da Defesa, responsável pela direção superior das Forças Armadas, constituídas pela Marinha, Exército e Aeronáutica, o ministro tem experiência na gestão de instituições de defesa da lei e da ordem, que atuam de forma integrada e articulada no território nacional, especialmente nas fronteiras do País.
A organização e padronização de procedimentos de trabalho das instituições militares são modelos de excelência que podem ser usados como referência para a organização e reestruturação dos órgãos policiais, bem como na padronização dos procedimentos policiais, visando uma atuação com maior segurança jurídica, respeito aos padrões internacionais de direitos humanos e efetiva cidadania.
O desafio do Ministério Extraordinário da Segurança Pública é condizente com as dimensões continentais do Brasil. Mas apesar de todas as adversidades, inclusive do prazo de gestão do atual governo, nunca houve condições mais propícias e cenário mais favorável para a promoção das necessárias reformas. O compromisso conjunto de todos os segmentos da sociedade pode tornar realidade a implantação de um modelo de segurança pública eficiente, eficaz e efetivo no Brasil.