Aiuri Rebello
O governo brasileiro tenta sem sucesso, desde 2016, o encerramento de uma empresa binacional entre Brasil e Ucrânia criada para lançar foguetes produzidos no país do Leste Europeu a partir do CLA (Centro de Lançamento de Alcântara), no Maranhão. Os ucranianos não concordam com o fim das atividades da binacional e prometem cobrar uma multa que pode chegar a R$ 2 bilhões se o Brasil seguir em frente com o rompimento do acordo de forma unilateral.
A empresa binacional ACS (Alcântara Cyclone Space) foi criada em 2003 e custou R$ 483 milhões aos cofres públicos brasileiros sem nunca ter lançado um foguete ao espaço — esse era o único objetivo da iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações supervisionada pela AEB (Agência Espacial Brasileira). A empresa fica dentro nas instalações do CLA.
m 2015, no governo da então presidente Dilma Rousseff (PT), o Brasil denunciou o acordo firmado 12 anos antes à Ucrânia. No jargão diplomático, a "denúncia" é o ato de um país informar ao outro que não concorda com os termos de algum tratado em vigor e pede para que a parceria em questão seja encerrada ou reformada. Após a denúncia brasileira, chegou-se a um impasse.
"Sobre a empresa Alcântara Cyclone Space, o governo federal procura meios para a dissolução da mesma, porém o governo ucraniano não aceita a proposta", afirma o Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio de sua assessoria de imprensa em resposta ao UOL. "Uma vez decidido terminar o acordo entre os dois países, a ACS deveria ser automaticamente dissolvida", afirma a pasta –mas não foi o que aconteceu.
Uma vez que o Brasil havia comunicado que queria encerrar a parceria, a dissolução da binacional deveria ter começado um ano depois, em 2016. Para tanto, precisava da anuência do outro sócio, no caso, o governo ucraniano –que se recusa a aceitar o fracasso da iniciativa e insiste que ela é viável.
A pasta da Ciência e Tecnologia afirma que as negociações continuam e que o governo brasileiro estuda meios jurídicos de forçar o fim da empresa –mas, na prática, ela já não funciona mais.
Procurada pelo UOL para se posicionar oficialmente acerca da questão, por e-mail e telefone, a embaixada da Ucrânia não respondeu até a publicação desta reportagem. Em carta publicada no jornal "Valor" em janeiro de 2017, o embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko, afirmou que a denúncia do tratado "causou decepção e tristeza" ao governo de seu país.
"Sem as posições transparentes e sem diálogo, sem a disposição de cumprir as obrigações determinadas nos acordos internacionais, quaisquer que sejam as perspectivas, expectativas e parceiros, a realização dos projetos estratégicos dessa envergadura sempre tem o risco de decepcionar", afirmou na ocasião o embaixador do país do Leste Europeu.
Para ele, a responsabilidade pelo malogro da parceria foi do Brasil. "Todas essas dificuldades poderiam ser superadas, se não fosse rejeitada a proposta da parte ucraniana de realizar as consultas e intensificar o diálogo, na necessidade dos quais insistiam as instituições e autoridades da Ucrânia desde quando surgiram os problemas com o projeto Cyclone-4 – Alcântara", diz em outro trecho de sua carta.
TCU avalia projeto como "frágil e otimista"
O TCU (Tribunal de Contas da União) estudou o projeto da binacional. Na conclusão, o órgão avalia que o projeto de parceria entre Brasil e Ucrânia era "frágil e otimista" e foi um "ato de diplomacia sem planejamento".
No acórdão, os ministros do tribunal afirmam que optaram por não propor uma Tomada de Contas Especial no próprio órgão –o que poderia levar à punição de gestores do projeto na esfera administrativa ou a um inquérito junto ao MPF (Ministério Público Federal)– por se tratar de um projeto longo e que passou por várias gestões: surgiu no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), há 20 anos, e passou pelos mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Dilma e Michel Temer (MDB). O órgão de controle limita-se a recomendar "mais qualidade" e seriedade do governo federal da próxima vez que iniciativa do gênero aparecer.
Inicialmente orçado em pouco mais de US$ 100 milhões (cerca de R$ 330 milhões) em investimentos conjuntos dos dois países, um ano antes do cancelamento o projeto teve seu orçamento recalculado para pouco mais de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 3,3 bilhões).
Na época em que foi determinado o rompimento, o Brasil já havia investido quase R$ 500 milhões na criação da empresa binacional. O objetivo era entrar no competitivo mercado mundial de lançamento de veículos espaciais (para a alocação de satélites em órbita, por exemplo) oferecendo viagens com o foguete ucraniano Cyclone-4 a partir do CLA, controlado pela AEB e pela FAB (Força Aérea Brasileira) no Maranhão, além de garantir a independência do Brasil no lançamento de seus satélites –até hoje o país contrata os serviços de empresas e países estrangeiros para essa finalidade.
De acordo com relatório de auditoria do Tribunal de Contas sobre o caso, a ideia era inviável economicamente e superestimava o horizonte de receitas. O dinheiro investido nunca seria recuperado. Além disso, a capacidade de carga reduzida do foguete ucraniano limitava o tamanho do tipo de equipamentos e satélites que poderiam ser levados a órbita, diminuindo o número de potenciais clientes.
Falta de acordo com os EUA prejudica
Segundo o TCU, a empresa binacional nunca poderia ter sido criada sem antes o Brasil assinar um acordo de salvaguardas tecnológicas com os Estados Unidos –o que não aconteceu até hoje. O instrumento jurídico internacional serve para instituir garantias legais para proteger o acesso e direitos sobre tecnologias de ponta de um país ou empresa em parcerias internacionais.
Como cerca de 80% de todos os foguetes e satélites produzidos no mundo possuem tecnologias norte-americanas –incluindo os foguetes ucranianos–, a falta de um acordo com os norte-americanos inviabiliza a parceria brasileira com praticamente qualquer empresa ou governo que use tecnologia dos EUA.
Outro problema apontado pelo TCU é que o foguete ucraniano já seria considerado ultrapassado desde a contratação do projeto. De acordo com o órgão, o veículo usa uma tecnologia de combustível antiga e altamente tóxica. Em caso de acidente, queda dos tanques de propulsão no mar ou manipulação equivocada dos materiais, o risco ambiental seria grande. A base fica próxima a áreas de conservação e, em sua área de influência, há uma comunidade quilombola.
Agora, a área técnica do tribunal de contas vai até a base de Alcântara para verificar de que forma foram gastos os quase R$ 500 milhões que o Brasil investiu na criação da ACS. Por meio de sua assessoria de imprensa, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações afirma que recebeu o relatório do TCU e "está preparando os argumentos para as indagações feitas pelo órgão".
A reportagem procurou, por e-mail e por telefone, a AEB e o Ministério das Relações Exteriores, por meio de suas assessorias de imprensa, para comentar o teor da reportagem e prestar informações adicionais. Não houve resposta.
Tragédia marca Programa Espacial Brasileiro
Em 2003, uma tragédia marcou o Programa Espacial Brasileiro e, de acordo com análise dos ministros do TCU, fez com que o Brasil abandonasse (pelo menos naquele momento) a pretensão de colocar no espaço um foguete com capacidade de chegar à órbita geoestacionária com tecnologia nacional.
No dia 22 de agosto daquele ano, uma explosão no CLA destruiu o foguete brasileiro VLS e matou 21 pessoas que trabalhavam na montagem do equipamento no local. As vítimas preparavam o veículo experimental para seu primeiro voo, no qual levariam a bordo um satélite geoestacionário (que fica em órbitas mais altas e que precisam de veículos mais potentes para serem alcançadas) com tecnologia nacional.
Após a tragédia, foi assinada a criação da ACS com os ucranianos e o Brasil nunca mais tentou lançar um foguete que fosse tão alto no céu.
Alcântara, na região metropolitana de São Luís, fica próximo à linha do Equador. A localização é estratégica para lançamentos espaciais, pois oferece um caminho mais curto para os foguetes saírem da atmosfera e serem colocados em órbita –a economia de combustível pode chegar a 30% em relação a outros pontos de lançamento nos EUA e na Europa, por exemplo.
Apesar disso, o Brasil nunca conseguiu aproveitar o potencial aeroespacial do lugar. A falta do acordo de salvaguardas tecnológicas com os Estados Unidos é apontada como principal empecilho. O esboço do acordo original, enviado para o Congresso Nacional em 2000, quando começou a aproximação com a Ucrânia, não havia sido aprovado até 2016, quando foi retirado da pauta a pedido do governo.
No ano passado, o governo brasileiro enviou uma contraproposta para o governo norte-americano. Ainda não houve resposta. Caso os EUA aceitem a proposta, ela tem de ser aprovada pelo Congresso de lá e, depois, ser aprovada no Congresso Nacional.
Nota DefesaNet
DefesaNet publicou com exclusividade a nota de Denúncia do Acordo com a Ucrânia
Exclusivo – Brasil Rompe com a Ucrânia na ACS
A matéria acima do UOL contém várias incorreções Os valores mencionados estão muito aquém do realmente dispendido.
O Editor
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