Melina Costa
Em milhares de anos de civilização há pouca margem para dúvida: países que tornam-se grandes potências econômicas acabam virando gigantes militares. Foi assim da Roma antiga aos Estados Unidos de hoje.
Esse fim inescapável traz um grande desafio para o Brasil. Se tudo der certo, o País será a quarta maior economia do mundo em 2050 – o que vai exigir o renascimento da indústria local de defesa, até agora marcada pela presença de empresas sobreviventes em um cenário de decadência. "A ideia não é preparar o Brasil para sair atacando por aí, mas criar uma imagem que impeça eventuais ofensivas contra seus recursos naturais", diz um executivo com longa experiência na área que pediu para não ser identificado.
No fim de 2008, o governo definiu as bases para o crescimento do setor ao criar a Estratégia Nacional de Defesa, um conjunto de diretrizes que dá prioridade para as companhias nacionais e, no caso de compras do exterior, exige a transferência de tecnologia para o Brasil. No ano passado, foram alocados R$ 60 bilhões para a defesa (a maior parte dos recursos teve como destino o pagamentos de salários).
Trata-se de um valor modestíssimo perto do mais de R$ 1 trilhão investido pelos EUA, mas representa um aumento de quase 17% na comparação com 2009 e de 148% em relação ao início da década. É difícil medir com precisão o total a ser despejado nos próximos anos, mas três grandes projetos – vigilância das fronteiras, da costa e do espaço aéreo – devem consumir R$ 180 bilhões. A primeira etapa começa agora e vai durar seis anos.
A articulação para receber tudo isso já começou. Como as empresas mais experientes da defesa são de porte médio – portanto, sem condições de arcar com o volume de investimentos necessário -, grandes grupos brasileiros, alguns sem experiência na área, decidiram entrar no jogo. Um deles é o Andrade Gutierrez, que controla uma das maiores construtoras do País e tem participação relevante na operadora Oi. O conglomerado mantém negociações com a francesa Thales, que fabrica de sistemas de tráfego aéreo a estações espaciais e fatura 13 bilhões.
"Estamos discutindo, mas o modelo deve caminhar para uma joint venture", diz Giovanni Foragi, vice-presidente de desenvolvimento de negócios da Andrade Gutierrez. "Nós temos competência de gestão e experiência em telecomunicações, que pode ser usada para conceber sistemas de satélites. Já a Thales é uma líder mundial em defesa e segurança."
Outra gigante nacional habituada a lidar com o governo, a Camargo Corrêa, também nutre planos de entrar na área de defesa. O grupo contratou um executivo para comandar o negócio e, segundo o Estado apurou, conversa com grupos estrangeiros para costurar uma possível parceria. Procurado, o conglomerado não deu entrevista.
Compras. A Embraer é, provavelmente, o nome mais conhecido – mas também começa a investir fortemente só agora. Em 2006, a área de defesa representava 5% da receita. Hoje já é 13% e a expectativa é que, no ano que vem, o segmento alcance receita de US$ 1 bilhão. Diante dessa meta, a companhia criou, no fim do ano passado, a Embraer Defesa e Segurança – uma unidade autônoma, com seu próprio presidente executivo – e foi às compras.
Em março, a empresa adquiriu o controle da divisão de radares da OrbiSat, fabricante de sistemas de monitoramento e de defesa antiaérea. No mês seguinte, comprou metade do capital da Atech, que foi responsável pelo desenvolvimento do sistema de controle aéreo brasileiro. Na semana passada, anunciou a compra de 25% da AEL (subsidiária da israelense Elbit Systems), com a qual formalizou a parceria em uma nova empresa, a Harpia, para investir no mercado de veículos aéreos não tripulados.
Hoje, a Embraer já trabalha em um projeto do governo de US$ 2 bilhões: a construção do avião cargueiro KC 390. Agora, a ideia é participar de outro megainvestimento: o Sisfron, Sistema de Segurança das Fronteiras. "Essa área é altamente estratégica porque lida com informações sensíveis. Normalmente, os governos contratam empresas nacionais para não entregar esses dados a estrangeiros", diz Luiz Carlos Aguiar, presidente da Embraer Defesa e Segurança.
Menos popular que a Embraer, porém a mais antiga do setor, a Avibrás Aeroespacial acaba de receber R$ 45 milhões em encomendas do Exército. Embora o pacote seja formalmente destinado à reposição de suprimentos, como novos foguetes, e de avançados blindados sobre rodas de comando, controle e comunicações, para servir ao sistema Astros-II – seu maior sucesso comercial -, os recursos servirão para dar inicio à compra do ambicioso Astros 2020, a próxima geração do equipamento. O presidente do grupo, Sami Hassuani, estima em US$ 3 bilhões, em dez anos, o tamanho do mercado internacional para o novo produto.
O conjunto em desenvolvimento na fábrica de São José dos Campos precisa de R$ 1,2 bilhão do Ministério da Defesa para ser executado. Como a empresa está em recuperação judicial, a forma como o governo fará esse aporte implica participação direta da União, que deve ter de 15% a 25% da Avibrás.
A Odebrecht foi a primeira novata a enxergar o potencial das compras militares. Em meados do ano passado, formou uma joint venture com a EADS, segundo maior grupo de defesa e segurança do mundo. No início do ano, adquiriu o controle da brasileira Mectron, fabricante de mísseis e radares. Mais recentemente, o conglomerado criou a Odebrecht Defesa e Tecnologia (ODT), para centralizar os investimentos na área. Essa companhia já trabalha em um dos mais ambiciosos projetos em andamento no País: a construção de cinco submarinos, um contrato de 6,7 bilhões.
"Gato escaldado". Apesar disso, o grupo ainda encara o negócio de defesa com cautela. "Essa é uma grande aposta. Mas não temos a menor convicção se esse é um plano de Estado ou de governo", diz Roberto Simões, presidente da ODT. "Gato escaldado tem medo de água fria." Entre executivos do setor, não há dúvidas de que existe a intenção do governo de fortalecer a indústria local. O problema é saber se o desejo sobreviverá às turbulências políticas. Só neste ano, a área de defesa teve corte de R$ 4 bilhões – como parte de uma tentativa de promover ajuste fiscal – e trocou de ministro. Nelson Jobim criticou colegas; caiu no início de agosto.
"O grande problema é que não há um plano plurianual para esse setor. Em defesa, não se faz investimentos de um ano para ou outro. É necessário um horizonte de 15, 30 anos para fomentar o investimentos das empresas", diz Marcelo Gonçalves, diretor da consultoria KPMG. O Ministério da Defesa não concedeu entrevista, mas informou que está em discussão um novo marco regulatório para que os projetos de defesa não sejam mais suscetíveis a contingenciamentos.
OS PLANOS DAS EMPRESAS
1. Embraer
Adquiriu e criou empresas na área de defesa. Seu objetivo é atingir receita de US$ 1 bi em 2012
2. Odebrecht
Firmou joint venture com a EADS e comprou a brasileira Mectron, de mísseis e radares
3. Andrade Gutierrez
Negocia com a francesa Thales, que faz de sistemas de tráfego aéreo a estações espaciais
4. Camargo Corrêa
Contratou executivo para tocar o negócio e discute parceria com grupos estrangeiros
5. Avibrás
Empresa estima que o mercado para o novo Astros 2020 seja de US$ 3 bilhões
6. Cassidian
A empresa do grupo EADS vai abrir no Brasil seu primeiro centro de engenharia fora da Europa