Jorge Pontes
Delegado da Polícia Federal
e foi Diretor da Interpol no Brasil
Fui Agente de Polícia Federal durante alguns bons anos, Delegado de Policia Federal por duas décadas, ocasião em que desempenhei missões como Superintendente Regional, Coordenador Geral, Adido Policial e membro do Comitê Executivo da INTERPOL, em Lyon, função essa para a qual fui eleito pela Assembleia Geral daquele organismo internacional, ocorrida em Cingapura.
Trabalhei e fui lotado em diversos estados da federação, no Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, e nunca testemunhei o que hoje testemunhamos no cenário nacional, em termos do comprometimento e incriminação das elites políticas, do alto empresariado e de autoridades públicas de elevadíssimo escalão.
Hoje não mais enfrentamos criminosos marginais, mas sim malfeitores nucleares, pessoas que estão no núcleo do poder central.
Essa nova modalidade organizacional de criminalidade, esse novo animal na floresta da Criminologia, o crime institucionalizado, desloca e redefine o próprio conceito de marginal.
O crime, então, subiu ao último andar e alcançou a cobertura. E do alto dessa penthouse oficial, anacronicamente comanda o país, indicando e nomeando ministros, liberando verbas para isso e aquilo.
A sociedade brasileira assiste a tudo boquiaberta e tem bradado, por intermédio de movimentos de rua e das redes sociais, um sonoro NÃO, o CHEGA, o BASTA, para a corrupção, para as elites políticas que representam as velhas oligarquias e tudo mais.
E esse brado pela negação, pelo BASTA, se deve ao conhecimento geral do que veio à luz pelas mãos da Operação Lava Jato, gestada e pilotada pela Polícia Federal.
A Lava Jato, obra de policiais federais de todas as matizes e carreiras, revelou os intestinos da política e a feiúra do crime sistêmico institucionalizado, aquele fenômeno da criminologia que, levado a cabo pelos – e para – os integrantes do governo, com o estamento público como plataforma, tem a capacidade de sequestrar a nação e comprometer seu desenvolvimento, colocando em risco a própria democracia.
Contudo, se tivéssemos de escolher alguma bandeira que não fosse a negação da política e dessas elites, se tivéssemos de pedir positivamente alguma coisa, eu abraçaria e exortaria a sociedade a encampar a causa da Autonomia da Polícia Federal.
Não restam dúvidas de que o Governo Federal, a quem a Polícia Federal se submete umbilical e hierarquicamente, está fortemente empenhado em atingir a Lava Jato. Em suma, nós estamos investigando os chefes dos nossos chefes, aliás, aqueles que escolhem e nomeiam nossos próprios chefes e, também, que liberam ou não as verbas para as nossas operações.
O trabalho da polícia judiciária é eminentemente técnico e não admite quaisquer reparos ou interferências de cunho político. Nós trabalhamos na inarredável busca pela "verdade real" dos fatos investigados, matéria prima e objeto do Direito Penal, tema central de nossa atividade fim.
Não diria que a Polícia Federal está “dormindo com o inimigo”, mas estamos sim, literalmente, “despachando com o inimigo”. E como não fazê-lo, se somos subordinados administrativamente ao Ministro da Justiça?
Por isso a Autonomia se impõe. Temos que ter um Diretor-Geral com mandato (sem nenhuma possibilidade de recondução) e a instituição com autonomia financeira e orçamentária. Isso nos blindaria de ameaças reais como as atuais.
Vale lembrar que no Brasil a persecução penal é levada a cabo por três instituições: a Polícia Judiciária, o Ministério Público e a Justiça. A Polícia Judiciária é a perna mais vulnerável desse tripé, justamente pela sua subordinação ao Executivo, que por sua vez conta com o ingrediente político, hoje, infelizmente, sinônimo de bandalheira.
Sem autonomia a Polícia Judiciária torna-se passível de sofrer violências e correções de rumo viciados, sabotagens maquiadas como “medidas de gestão”.
Isso sem falar nos detestáveis "vazamentos hierárquicos", sobre os quais já tratei em recente artigo que titulei "Alguém vazei e não sei quem fui".
O maior sintoma de que estamos em perigo é que a cada troca de Ministro da Justiça, a escolha – ou confirmação – do Diretor Geral da Polícia Federal se torna a grande dor de cabeça do ministro que entra.
Por que escolher um chefe de Polícia Federal pode ser algo tão complicado na realidade brasileira? Alguém imaginaria Emmanuel Macron ou Angela Merkel enfrentando uma encruzilhada para escolher um chefe para, respectivamente, a Police Nationale ou a BKA? Claro que não!
E por que aqui no Brasil tal escolha é algo tão complicado? Ora, muito simples, porque quem tem o poder de escolha pertence a um projeto criminoso e, futuramente, poderá certamente entrar na mira do próprio subordinado. A Polícia Federal é um cachorro que morde o dono. Morde e deve morder.
E nunca – em toda a existência do DPF – nós policiais federais nos sentimos tão constrangidos com a nossa linha hierárquica administrativa. É aviltante termos acima de nós uma sequência de governos tão descaradamente corruptos.
Com permissão da má palavra, qualquer outro termo para definir essa situação seria puro eufemismo. É finalmente chegada a hora de assumir uma posição pois tivemos alguns ministros que funcionavam mais como consiglieri da Cosa Nostra do que como titulares da pasta da Justiça…
Há em curso uma campanha pela Autonomia da Polícia Federal. E há também uma triste campanha de desinformação, contrária à concessão da nossa Autonomia.
Sem querer esmiuçar maiores detalhes, só há dois tipos de indivíduos que não desejam conceder constitucionalmente a Autonomia para a Polícia Federal. Há aqueles mal intencionados que sentem receio de uma polícia ainda mais forte, que não poderá mais ser torpedeada por governantes comprometidos com o crime institucionalizado.
E há também aqueles que, infelizmente, apequenados, são movidos por sentimentos e intenções mesquinhas, as quais não merecem sequer serem expostas no presente texto, de tão diminutas que são. Afinal, a hora é de juntar forças para o combate ao inimigo comum, que é a corrupção.
Dizem, os detratores da nossa campanha, que não há polícia no mundo com Autonomia. Saibam que o FBI conta com Autonomia orçamentária e com mandato de 10 anos concedido ao seu Diretor-Geral.
Dizem os nossos detratores que nenhuma polícia no mundo é independente, o que igualmente não atinge nossa campanha, pois ninguém está clamando por independência e sim por Autonomia.
Dizem também os nossos detratores que a Autonomia é apenas para os delegados, o que igualmente não nos atinge pois a Autonomia não é tampouco para os policiais, mas para a sociedade, representada pela instituição Polícia Federal.
Dizem, ainda, nossos detratores que não se concede Autonomia para organismo armado, o que é um tremendo sofisma pois a Polícia Federal conta apenas com 11.000 homens e mulheres em seus quadros policiais e, a bem da verdade, hoje em dia, nossa maior arma não são pistolas e revólveres, mas computadores, plataformas de dados e a expertise dos nossos policiais. Essa de querer nos pintar como grande contingente armado chega a ser cômico.
E dizem os nossos detratores que a Autonomia da Polícia Federal nos fará um organismo sem freios, o que não condiz com a realidade pois a Policia Judiciária seguirá tendo sua atuação vinculada às leis penais, processuais penais e, principalmente, balizada pela Constituição Federal, e, ainda, continuará submetendo-se à salutar fiscalização do Ministério Público Federal.
A Autonomia da Polícia Federal será positiva para todos, para o Judiciário e para o Ministério Público, mas, principalmente para a sociedade brasileira.
Só há uma forma de combater o crime institucionalizado: blindando as instituições.
Contudo, temos que entender bem a gravidade do momento nacional e evitarmos construir um projeto de PEC da Autonomia que encerre qualquer outro assunto. Mesmo que haja pontos importantes, esses não devem embarcar junto com a autonomia.
A situação do país exige grandeza e não pequenez.
A PEC da Autonomia deverá ser construída por um consenso entre as carreiras da Polícia Federal.
Nós Delegados de Polícia Federal temos o comando da Polícia Federal. Somos os dirigentes, mas não estamos sozinhos. Há outras carreiras, há Agentes, Escrivães, Papiloscopistas e Peritos, cujo trabalho é igualmente fundamental para o sucesso da nossa instituição.
Por isso nunca defendi a PEC x ou a PEC y, mas sim a Autonomia da Polícia Federal, que certamente fortalecerá a instituição como um todo, e por essa razão deverá ser construída e apresentada por todas as categorias da Família Polícia Federal.
Um dia destes, não faz muito tempo, conversando com um deputado federal conhecido, soube que um grupo de delegados tinha ido ao seu gabinete pedir o apoio e o voto em determinado projeto. Segundo esse parlamentar, aproximadamente duas horas depois que os delegados deixaram a sua sala, um grupo de agentes federais visitou o mesmo deputado e, ali, no mesmo gabinete, solicitaram apoio e voto em iniciativa totalmente contrária à sugerida pelo grupo de delegados. Detalhe: ambos os grupos de policiais, segundo o deputado, falavam em nome do interesse da Polícia Federal…
Desta feita, a hora é muito grave para qualquer movimento de cunho classista, seja de que classe for.
Ou a Polícia Federal inteira se une em torno desta iniciativa de fortalecimento institucional ou essa empreitada estará condenada ao fracasso.
A Autonomia que concebo é a financeira-orçamentária e administrativa, com a concessão de um mandato (absolutamente improrrogável, isto é, não há possibilidade de recondução) de quatro anos ao Diretor Geral, sempre iniciando-se no meio do mandato do Presidente da República, de forma que seu termo atravesse duas gestões de chefes do Executivo Federal.
Só isso e mais nada.