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Militares – Dos quartéis para o dia a dia ao lado dos cariocas


LUDMILLA DE LIMA

 
A ditadura dava seus últimos suspiros quando uma turma de intelectuais engajada no movimento Diretas Já resolveu ocupar as ruas da cidade. Fez isso com instrumentos na mão e ginga no pé. E o fundamental: sem medo. Para essa galera, que saiu pela orla de Ipanema pela primeira vez em 1984, empunhando o estandarte do Simpatia É Quase Amor, os desfiles deste ano têm um quê de flashback. Isso porque os foliões do Simpatia, assim como os dos outros blocos, voltam a sambar sob os olhares de homens de farda verde-oliva.
 
A história do relacionamento entre cariocas e as Forças Armadas é marcada por contradições.

— Confesso que ainda não me habituei com os militares perto da gente. Eu via o Exército na rua para nos prender e defender o golpe. Agora, eles estão nas ruas para nos defender da falta de policiamento — comenta o cineasta Dodô Brandão, um dos fundadores do bloco. — É bom que estejam aqui para nos proteger. Mas o motivo que os trouxe é ruim. Fora que não combinam com a paisagem carioca. O cara que chega de fora vai ver e se perguntar: o que está acontecendo?
 
Parece a Palestina
 
A Rio-92, conferência da ONU sobre meio ambiente e desenvolvimento, inaugurou uma era de apoio das Forças Armadas ao policiamento no estado. Este será o segundo carnaval da cidade a “fazer continência”. O primeiro foi em 2003, mas não foi registrada redução dos índices de criminalidade, apesar do reforço. Antes desta nova passagem pelas ruas, os militares já tinham marcado presença em 20 ações na cidade nos últimos 25 anos. Seja para dar cobertura em grandes eventos, seja para ajudar em momentos de violência aguda.
 
Nenhum estado brasileiro tem histórico comparável: fora das divisas fluminenses, a atuação das três forças na segurança é pontual. As convocações acontecem para ocupar o vácuo da PM em situações de greve, como a que ocorreu no Espírito Santo — e que chegou a se insinuar no Rio.
Na cidade fundada num contexto de guerra por um militar português, Estácio de Sá, e cujo padroeiro foi um soldado romano, São Sebastião, a ligação entre a população e os quartéis é de intimidade. O arquiteto e historiador Nireu Cavalcanti conta que, quando o Rio era uma capitania subserviente a Portugal, todo morador acima de 18 anos era convocado para a tropa auxiliar:
— Havia um sentimento militarista. As pessoas tinham interesse em participar dessas tropas por causa dos privilégios. Era um passo para ter um título de nobreza, mesmo que fosse de cavaleiro da Ordem de Cristo, ganhar acesso a cargos públicos. Representava um avanço social.
 
O professor de história Rodrigo Rainha, um dos responsáveis pelo projeto Rolé Carioca, volta ao passado para explicar a conjuntura atual. Ele conta que a tradição militar tem suas origens no combate aos franceses. Após fundada, a cidade vê alguns de seus morros serem ocupados e é iniciada a construção de uma muralha a partir da Fortaleza da Conceição. Em 1809, Dom João cria a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, nossa atual PM, com função de limpeza das ruas.
 
Ainda no Império, uma guarda passa a proteger a capital: na prática, capturava negros fugitivos.
 
— O carioca, historicamente, confunde as forças miliares com as de policiamento. A gente viu isso com as operações Rio 1 e Rio 2 (em 1994 e 1995). A mentalidade nos quartéis mudou, somos notórios em missões de paz, mas ainda ansiosos por um pulso forte de um militarismo antigo e idealizado — ressalta Rainha.
 
A Guerra do Paraguai é um marco. Após a vitória, militares do Exército viraram os antagonistas do Império. O auge vem com o golpe de 1889, que derruba Dom Pedro II. O professor de história Daniel Aarão Reis Filho, ex-guerrilheiro, diz que a relação da cidade com os militares se altera ao longo do tempo.
 
— Os militares já assumiram posições muito diferentes. A partir da Primeira República, a imagem era de corporação progressista. Eles apoiaram o Estado Novo, que promoveu muitas reformas e direitos sociais. Havia entre eles gente que lutava pela democracia e que apoiava a ditadura — diz o professor, destacando a pluralidade de pensamento na instituição, que refletia a própria sociedade.
 
MUDANÇAS NA IMAGEM
 
Essa realidade, de acordo com Daniel, muda a partir do golpe de 1964. Centenas de militares idealistas são expulsos. Mas o fracasso do modelo econômico, sem contar a repressão brutal, leva o regime ao descrédito.
 
— De 20 anos para cá, eles passam a ser chamados sistematicamente para manter a ordem. Isso tem feito com que as Forças Armadas recuperem a credibilidade perdida na ditadura. A sociedade passa a ver os milicos como salvadores da pátria. Particularmente, acho um desserviço. A função dos militares não deveria ser essa, mas a de defender fronteiras — afirma Daniel.
 
O general da reserva Fernando Sardenberg guarda uma imagem muito nítida da sua carreira no Exército: em novembro de 2010, viu um comboio de 300 veículos ser aplaudido no percurso entre a Vila Militar e o Complexo do Alemão. Ele comandou as tropas na fase inicial da ocupação das favelas da Penha e do Alemão. Para o oficial, o comprometimento com a defesa da pátria e com os pilares hierarquia e disciplina toca a população. Ele diz que a lógica das Forças Armadas é estar sempre pronta para colaborar com a sociedade, mas também critica o seu emprego recorrente no Rio. Na raiz da questão, diz Sardenberg, está um estado falido e uma polícia mal remunerada, na qual a política se sobrepõe à meritocracia.
 
— Virou rotina. Os militares entram no Rio por duas semanas, mas e depois? É necessária uma discussão profunda sobre um novo modelo de polícia, de regime de trabalho, que envolva a defesa e o Ministério da Justiça — opina o general.
 
Nas ruas, o apoio de uma boa parte da população aos militares é visível. Selfies, inclusive de turistas, ao lado de soldados já viraram modinha.
 
— A população aplaude porque sentiu na pele que estava um caos. É inadmissível alguém dizer que não está gostando — diz Raphael Pazos, presidente da Comissão de Segurança no Ciclismo do Rio.

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