Pedro Paulo Rezende
Exclusivo DefesaNet
Brasília — O presidente Michel Temer faz sua estreia internacional na reunião do G20, grupo formado pelas 20 maiores economias do mundo. A viagem para a cidade chinesa de Hangzhou ocorre em um momento delicado. O Brasil necessita reencontrar o caminho do crescimento e aposta nas exportações para deter a redução do setor industrial e ampliar a oferta de emprego, que ainda se encontra em queda livre — chegou a 11,6% da força de trabalho — apesar da injeção de recursos garantida pela expansão do déficit fiscal de R$ 94 bilhões, meta prevista pela ex-presidente Dilma Rousseff, para R$ 175 bilhões. Com este objetivo explícito, o senador José Serra (PSDB-SP) assumiu o cargo de ministro das Relações Exteriores.
A chegada de Serra ao Itamaraty coincidiu com uma série de acontecimentos que conspiraram contra seus projetos. Ele apostava em um acordo com a União Europeia e na reaproximação com os Estados Unidos para ajudar na recuperação da economia brasileira. Ao chegar ao Itamaraty, anunciou que poderia iniciar negociações diretas para a realização de acordos de livre comércio, o que é vedado pelas normas do MERCOSUL. No entanto, a saída do Reino Unido da União Europeia, o chamado BREXIT, impôs um duro choque de realidade ao novo chanceler, o que foi exposto pelo seu colega uruguaio Rodolfo Nin Novoa.
Em reunião fechada da Comissão de Relações Exteriores do Congresso de seu país, Novoa disse a deputados uruguaios que o ministro José Serra tentou "comprar" o voto do Uruguai no imbróglio que envolve a presidência da Venezuela no MERCOSUL. Argentina, Brasil e Uruguai não aceitam que o presidente Nicolás Maduro assuma a direção do bloco. O presidente uruguaio, Tabaré Vásquez, insiste na manutenção das regras. A presidência é rotativa e a vez é de Caracas.
Segundo Novoa, Serra teria oferecido ao Uruguai um lugar nas negociações com países da África e do Irã, uma volta importante na estratégia inicial de centrar esforços nos Estados Unidos e na União Europeia, inclusive com o fechamento de algumas embaixadas no continente negro.
Estados Unidos
O namoro com os Estados Unidos não é coisa nova — há uma longa associação e uma parceria estratégica natural entre os dois países, que foram prejudicadas com a revelação do site Wikileaks, feita em 2014, de que a Agência Nacional de Segurança estadunidense (NSA na sigla em inglês) espionava a presidente Dilma Rousseff.
Os EUA insistem que a vigilância da NSA não extrapolou os limites da legislação internacional e só examinou correspondência eletrônica relacionada a grupos terroristas e de organizações criminosas que ameaçam a segurança dos Estados Unidos. Segundo os estudos desenvolvidos pelo Brasil, a ação da NSA concentrou-se em ações relacionadas a projetos estratégicos do Governo Brasileiro na área de defesa, de produção de energia e de levantamento de reservas minerais, de maneira a beneficiar empresas norte-americanas em concorrências públicas.
Apesar disto, a ex-chefe de Estado brasileira, ao iniciar seu segundo mandato, colocou como prioridade normalizar as relações entre os dois países. O projeto visava, em um primeiro momento, ampliar as trocas comerciais, que iam bem, mas foi colocado em segundo plano diante de um Congresso decidido em afastar a presidente do poder.
Com o processo de impeachment de Dilma, o vice-presidente Michel Temer assumiu o cargo e voltou a colocar a aproximação com os Estados Unidos e a União Europeia em primeiro plano.
Alta tecnologia e barreiras comerciais
Os Estados Unidos são os principais compradores de produtos de alta tecnologia brasileiros, principalmente aviões comerciais da Embraer. O fluxo de comércio bilateral no ano passado foi de US$ 50,5 bilhões, uma queda expressiva diante dos US$ 59 bilhões obtidos em 2014. Os Estados Unidos continuam como o país com maior estoque de Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) no Brasil.
As exportações para o mercado norte-americano terão um crescimento importante com a autorização dada aos produtores de carne in natura brasileiros para colocar seu produto nos Estados Unidos. Em relação à União Europeia, as barreiras econômicas impostas aos produtos agrícolas sulamericanos são o principal empecilho ao fechamento de um acordo. Há outro agravante: o bloco passa por uma forte recessão, com índices de desemprego altíssimos em vários países, principalmente na Espanha, França e Itália.
Apesar da redução do intercâmbio comercial (o volume de exportação continua alto, mas o preço das commodities sofreu expressiva queda), os países do BRICS (bloco informal formado por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul) ainda são uma alternativa válida para movimentar a estagnada economia brasileira. Ao contrário da Europa, as economias do bloco, em sua maior parte, apresentam um crescimento sólido. Além disto, vale lembrar que, na visita do presidente Xi Jiping a Brasília, a República Popular da China disponibilizou uma linha de crédito de US$ 175 bilhões, US$ 30 bilhões dos quais para investimentos em projetos bilaterais de alta tecnologia.
Ideologia à parte
Recentemente, o presidente em exercício, Michel Temer, defendendo a aproximação com a Europa e os Estados Unidos, disse que as relações comerciais cm o Brasil não deveriam ser limitadas pela ideologia. Obviamente, ele desconhece a realidade do mercado. A aproximação com a África e a América do Sul, desenvolvida durante a gestão de Celso Amorim à frente do Itamaraty, foi pragmática. Os produtos brasileiros possuem forte apelo nesses continentes e são adequados para as condições climáticas dos países em vias de desenvolvimento.
A relação com o BRICS também não é ideológica e oferece amplas possibilidades de intercâmbio. Muito do noticiário alarmista divulgado no Ocidente, dirigido contra o bloco, vem de uma falta de percepção do funcionamento da economia da República Popular da China. Ao contrário da noção difundida popularmente, o país está longe de ser capitalista e adepto do livre mercado. O regime é socialista, tem um forte planejamento centralizado e a maioria das indústrias estratégicas tem maioria de capital estatal.
A redução dos índices históricos de crescimento anual, de 10% para a casa dos 7%, não foi uma decisão tomada de supetão. Quem acompanha as decisões do Partido Comunista da China sabe que isto estava previsto desde 1998, quando o centro de estudos mantido pelo PCC divulgou um estudo sobre a sustentabilidade do modelo de crescimento do país, fortemente embasado na produção industrial.
Alguns pontos foram destacados no trabalho:
1. O modelo embasado no crescimento industrial estava causando um abismo de renda entre a cidade e o campo, o que não era desejável. Além disto, a exploração agrícola excessivamente intensiva afetava, de maneira acelerada, as reservas dos aquíferos, cada vez mais necessárias para consumo humano;
2. O crescimento anual de 10% embasado na produção industrial estava causando forte pressão nos recursos naturais do país, principalmente nos hídricos, e, em longo prazo, também se refletiria nos fornecedores internacionais de commodities;
3. O consumo interno era menor que o desejável em função do caráter chinês, extremamente poupador (o país conta com uma poupança interna equivalente a US$ 24 trilhões).
As soluções propostas incluíam:
1. Apostar na urbanização do país. Hoje, 40% da população chinesa vivem no campo. A ideia é reduzir este total para 20%. Ao mesmo tempo, a produção agrícola seria limitada a 80% da média atual;
2. Reduzir gradualmente o crescimento anual do país para 5% ao ano e implantar uma economia de serviços capaz de absorver os contingentes rurais;
3. Acabar com a política de filho único para ampliar o consumo.
Em virtude da crise econômica internacional, a China retardou a implantação das medidas previstas pelo estudo, que já deveriam ser aplicadas em 2012, mas elas estão previstas no Plano Quinquenal vigente. Elas afetam a exportação brasileira de minerais e metais semiacabados, mas abre excelentes possibilidades para o setor agrícola e de serviços. Ao longo dos últimos anos, o mundo viu, atônito, a construção de cidades e bairros no meio do nada. Especulou-se sobre uma possível bolha imobiliária, como a que vivemos agora, mas, dentro do que está previsto pelo planejamento do país, elas fazem sentido. A questão principal é que elas não são suficientes para abrigar um contingente de 260 milhões de pessoas. Novos empreendimentos serão necessários e o país pretende abrir o setor para empreiteiras de outros países.
Substituição de importações
Para se analisar a situação da Rússia é necessário voltar ao final de 2013, quando milhares de manifestantes se reuniram na Praça Maidan, em Kiev, para exigir que o presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, se associasse à União Europeia e rompesse os laços com a Comunidade de Estados Independentes. Em lugar disto, e depois que as autoridades da UE afirmaram que ainda não existiam os pré-requisitos para a entrada do país no bloco, o governo firmou um acordo econômico extremamente vantajoso com Moscou, rejeitado pela multidão.
Atos de violência agravaram a situação e levaram à queda do governo e à fuga de Yanukovych, gerando insatisfação e um movimento separatista na região da Bacia do Rio Don, terra natal do presidente deposto, e na Crimeia. É preciso lembrar que as duas regiões, com forte identidade russa, foram incorporadas à Ucrânia nos tempos da União Soviética: a Novarrúsia (nome dado à região da Bacia do Don pela tzarina Catarina a Grande) em 1920 e a Crimeia, onde estava a principal base da Esquadra do Mar Negro da Marinha da Federação Russa, em 1956.
Influenciado por um forte viés nacionalista que se implantou no Parlamento, o novo governo ucraniano, chefiado por Petro Poroshenko, impôs a proibição do ensino de russo. Ao mesmo tempo, a população da Bacia do Don, região de indústria pesada desde os tempos soviéticos, foi tomada pelo medo de uma onda de desemprego a partir do início da incorporação do país à União Europeia. As fábricas da região são de concepção antiga e os operários temiam sua desativação por falta de produtividade, a exemplo do que ocorreu durante a incorporação da República Democrática da Alemanha à República Federal da Alemanha.
Estes movimentos terminaram com a eclosão de um movimento armado para a independência da Novarrússia e a reincorporação da Crimeia à Federação Russa depois de um referendo, contestado pelos países que integram a Organização do Tratado do Atlântico Norte. Os países europeus, os Estados Unidos e o Canadá, depois de acusarem Moscou de patrocinar os separatistas, impuseram sanções econômicas à Moscou, praticamente interrompendo as trocas comerciais.
O quase rompimento das relações com a Ucrânia, principal rota do gás e petróleo russos para a Europa, trouxe sérios problemas para a Rússia. Nos tempos da União Soviética forjou-se uma forte simbiose entre as regiões do país. Era normal que produtos manufaturados tivessem componentes fabricados em diversas repúblicas. As turbinas a gás são um bom exemplo. Elas usavam peças ucranianas e russas. Ao mesmo tempo, o país se incorporou com entusiasmo ao processo de globalização, importando de alimentos a equipamentos aeronáuticos e maquinário moderno de controle numérico para suas fábricas. Neste processo, o país sofreu uma forte retração econômica de 5%, agravada com a queda internacional do preço do petróleo.
A resposta russa pegou as nações europeias de surpresa. Sob o comando do presidente Vladimir Putin, a Rússia se aproximou da América Latina, principalmente do Brasil e da Argentina, e da China para garantir sua segurança alimentar e de bens de alta tecnologia (empresas brasileiras supriram a necessidade de equipamentos para as fábricas, inclusive de robôs). Ao mesmo tempo, reativou áreas agrícolas e fábricas paradas por falta de competitividade foram remodeladas e colocadas para produzir. Hoje, depois de dois anos de recessão, o país já apresenta crescimento de 2%. Suas reservas, ao contrário do que esperavam as autoridades ocidentais, não pararam de crescer e atingiram US$ 393 bilhões em moedas estrangeiras e US$ 64 bilhões em ouro.
Obviamente, vários programas importantes, inclusive o do caça furtivo Sukhoi T-50, sofreram atrasos enquanto componentes ucranianos eram nacionalizados. A Rússia tinha acesso total aos projetos e, em teoria, poderia fabricar todas as peças, mas a divisão de trabalho impôs um processo longo de readaptação das linhas de montagem, que inclui a homologação de processos e de produto final.
Possibilidades imediatas
Uma área que promete forte cooperação dentro do BRICS é o setor ferroviário. China e Rússia possuem um profundo conhecimento operacional que pode ser transmitido ao Brasil, que se ressente de um sistema centralizado de tráfego de cargas, a exemplo do que já existe no setor elétrico com o Organizador Nacional do Sistema (ONS), que gerencia toda a transmissão de energia do país.
Em troca, o Brasil pode suprir as necessidades de segurança alimentar da Federação Russa e da China. Eventuais superávits a seu favor na balança comercial poderiam ser compensado por meio de importações ou desenvolvimento conjunto de produtos de alta tecnologia de origem russa. Poderiam ser incluídos nesta hipótese supercomputadores, servidores e roteadores de alta potência para uma rede própria e fechada a ser mantida pelo Governo Federal; o desenvolvimento de produtos na área nuclear para geração de energia e de derivados para uso médico; projetos conjuntos de lançadores e satélites; equipamentos militares que atendam carências das Forças Armadas brasileiras e que possam ser colocados no mercado latino-americano e helicópteros de uso civil e militar.
Índia e África do Sul
O Brasil ainda não atingiu todo o potencial de intercâmbio com a África do Sul e a Índia. Antes de tudo, dentro de um quadro de crise, é preciso ressaltar que os dois sócios brasileiros no BRICS e no IBAS, dois blocos geopoliticamente importantes, apresentam economias em crescimento. Além disto, são parceiros em projetos de alta tecnologia, inclusive militares.
Em 2016, a Índia terá um crescimento de 7,1% (o maior das grandes economias) e a África do Sul de 2,1%.
Durante os governos do PT, as relações comerciais deram um salto. Com a Índia, saltou de US$ 1 bi para US$ 11,4 bi, o que é pouco quando se analisa o tamanho da população indiana, superior a 1 bilhão de habitantes e com um produto interno bruto de US$ 1,9 trilhão. Há muito espaço para crescimento, principalmente no setor de serviços. O governo central desenvolve um esforço importante na melhoria da infraestrutura de áreas mais carentes, o que pode abrir mercado para empresas brasileiras, principalmente na área de energia. Outra área atrativa é o agronegócio. Há uma preocupação em garantir a segurança alimentar das camadas mais pobres, que correspondem a mais de 60% dos habitantes.
Segundo o Itamaraty, o intercâmbio comercial com a África do Sul constituído por produtos primários e industrializados, cresceu aproximadamente 300% em pouco mais de uma década, passando de US$ 659 milhões, em 2002, para US$ 2,6 bilhões, em 2012. Cabe igualmente registrar a diversificação e o crescente volume dos investimentos de empresas sul-africanas no Brasil (comunicações, mineração, aviação) e de grupos brasileiros naquele país africano (produção de veículos e autopeças, mineração, alimentos e de resseguro).
Temos de lembrar que parte do intercâmbio entre a África do Sul e o Brasil envolve alta tecnologia militar. Os dois países colaboram no desenvolvimento do A-DARTER, míssil ar-ar de quinta geração, que se encontra pronto para industrialização.
Conclusão
Abrir novas frentes de negócios é uma atitude recomendável. Durante a gestão de Celso Amorim, o Itamaraty abriu novas frentes de atuação, no sentido de reduzir a dependência brasileira dos mercados norte-americano e europeu. A proposta trouxe excelentes frutos para o Brasil, em termos econômicos e geopolíticos. Uma das falhas do governo de Dilma Rousseff foi o abandono desta linha de atuação. De proativo, o país passou a reativo, abandonando um protagonismo diplomático que nos rendeu postos importantes no Fundo Monetário Nacional, no Banco Mundial e no sistema ONU, principalmente na Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
Ao se reaproximar dos Estados Unidos e Europa, o presidente Michel Temer precisa ter em mente que a ampliação de parcerias não deve implicar no abandono de mercados consolidados e em crescimento. O país precisa, além disto, retomar o espaço que lhe pertence para influenciar no panorama global, que trouxe contribuições importantes para a paz e a segurança mundial por meio do softpower. O Itamaraty teve participação importante ao evitar conflitos na América do Sul e na África e precisa retomar seu protagonismo com José Serra.
A melhor oportunidade para isto será a cúpula do BRICS, marcada para os dias 15 e 16 de outubro em Goa — cidade indiana construída pelos portugueses e que tem fortes laços afetivos com o Brasil. A criação de uma ordem multipolar é importante para o equilíbrio global, afetado pela Pax Americana que favoreceu a explosão de conflitos ao redor do mundo.