João José Oliveira
A aviação está em crise no Brasil, registrando os piores indicadores de tráfego desde 2003, mas o segmento de manutenção dessa indústria está aquecido. Enquanto as companhias TAM, Gol e Azul aprovam projetos de expansão em hangares e oficinas da ordem de R$ 250 milhões para 2016, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) negocia um acordo bilateral com o órgão regulador dos Estados Unidos, maior mercado aéreo do mundo, que deve ampliar o universo de potenciais clientes para o país.
"O dólar mudou substancialmente a competitividade dos centros de manutenção no Brasil", diz Ruy Amparo, vice presidente de operações da TAM, maior companhia aérea do Brasil, dona de 36% do mercado.
Como as peças usadas na aviação são cotadas em moeda americana, a desvalorização do real em mais 50% desde 2014 reduziu em proporção similar os custos dos serviços de vistorias e trocas de equipamentos no Brasil.
Isso explica porque hoje o grupo Latam, que opera 349 aeronaves nas frotas das controladas TAM e LAN, realiza hoje no Brasil 65% da manutenção do grupo. Apenas 25% das checagens são realizadas em Santiago, no Chile, e 10% fora da América do Sul. Há dois anos, os hangares brasileiros da holding respondiam por 40% da manutenção da Latam.
Essa tendência vai ser acentuada a partir de 2016. O grupo Latam já tomou a decisão de investir R$ 10 milhões no centro de manutenção de São Carlos (SP), onde está o maior parque industrial da holding, que vai crescer em 25% a capacidade.
Mas o principal projeto está orçado em R$ 100 milhões, que serão aportados no complexo de hangar, oficinas e depósitos que a Latam vai erguer no aeroporto de Guarulhos (SP).
Lá, serão realizadas as vistorias leves de rotina – os chamados checks A – de grande parte da frota de aviões de dois corredores (wide body) do grupo, além de parte das revisões leves dos aviões menores, de um corredor (narrow body) que passam por Guarulhos como destino final ou para conexões.
"Até meados do ano teremos concluído o projeto executivo. Então começam as obras, depois chegam os equipamentos e, na sequência tem o processo de certificação", adiantou ao Valor o vice presidente da TAM, Ruy Amparo.
Mas esse ganho de competitividade proporcionado pelo câmbio é conjuntural e apenas estimulou uma tendência que já é estrutural no Brasil desde os anos 1990. "Diminuição de custos é uma característica marcante da globalização. E não há setor mais engajado na globalização do que o da aviação há muito tempo", afirma Fulvio Delicato, sócio e presidente da Aerospace Brazil Certifications, empresa brasileira especializada em certificações. Delicato atua há três décadas nesse setor, tendo passado por grupos como Vasp, Transbrasil, Embrear e Accenture.
Segundo ele, nas décadas de 1980 e 1990 as empresas brasileiras enviavam quase todos os itens para manutenção no exterior – Estados Unidos, Alemanha e Canadá principalmente – por causa do baixo desenvolvimento tecnológico do paí então.
"Mas a coisa mudou muito nos últimos anos", conta Delicato. Segundo ele, foram protagonistas nesse processo além da fabricante de aviões Embraer – ao redor da qual se formou um cluster aeronáutico -, a nova geração de aéreas do país, TAM, Gol, Azul e Avianca, que substituiu as finadas Varig, Vasp, Transbrasil.
Desde meados dos anos 1990, o Brasil passou a desenvolver competência em centros de manutenção para revisões mais complexas, de grandes motores a complexos rádios e computadores de bordo, por exemplo. Assim, mesmo a chamada "heavy-maintenance" – ou manutenção pesada, realizada a cada dois anos e que dura de uma a duas semanas – passaram a ser feitas em solo brasileiro.
Centros de manutenção pesada foram construídos em Belo Horizonte, pela Gol, e aperfeiçoados em São Carlos, sede de manutenção da TAM. Oficinas de empresas multinacionais, como Parker, Honeywell, GE e Rolls-Royce foram estabelecidas aqui.
"No início da operação, não faz sentido investir em indústria [centro de manutenção]. Mas na medida em que o negócio ganha escala, faz sentido econômico e operacional ter uma estrutura própria", diz o diretor-executivo de operações da Gol, Sérgio Quito. "A Gol, por exemplo, passou a ser a principal operadora de Boeing na América do Sul".A Gol investiu em 2006 mais de R$ 30,5 milhões no centro de manutenção de Confins, em Belo Horizonte, onde construiu uma infraestrutura de 17,3 mil metros quadrados. Desde então, vem economizando R$ 2 milhões ao ano por fazer em casa a manutenção das aeronaves.
A empresa se prepara agora para voltar a aportar recursos, dessa vez no Rio de Janeiro, o aeroporto do Galeão. O plano é atender a demanda por manutenção das aeronaves da Delta Air Lines, a companhia americana que também é sócia minoritária da aérea brasileira.
Para aproveitar o investimento na estrutura, a Gol está buscando ampliar as certificações junto a órgãos reguladores estrangeiros para começar a fazer outros tipos de revisões, como alguns procedimentos de motores, evitando custos relacionados à necessidade de levar equipamentos para fora do país. Também poderemos ampliar nosso escopo de atendimento a terceiros", diz Quito, que já atende revisões de empresas como Copa e Aerolineas Argentinas.
O mesmo caminho está sendo percorrido pela Azul, que começa em 2016 o projeto de R$ 120 milhões que serão investidos em um centro de manutenção no aeroporto de Viracopos, em Campinas, principal hub (terminal de conexões) da empresa criada em 2008 pelo empresário David Neeleman, hoje a terceira maior do país, dona de 17% do mercado.
"No início da operação da empresa, não há volume que justifique uma área própria de manutenção, ainda mais se existem no país oficinas que atendem demanda e são certificadas, caso da TAP ME", diz o vice presidente técnico operacional da Azul, Flavio Costa.
Hoje, grande parte da manutenção pesada da Azul é feita nos centro de manutenção localizados no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro – que pertenciam à Varig e que foram compradas pela portuguesa TAP.
"Na medida em que fomos crescendo o valor da contratação de manutenção foi subindo. Além disso, esses centros de terceiros não estão necessariamente nos nossos hubs e ainda atendem outras empresas. Precisamos cada vez mais de prioridades e logística favorável. A Azul chegou a esse ponto em que faz sentido econômico ter o próprio centro de manutenção", diz Costa.
A obras do centro de manutenção da Azul em Campinas começam em janeiro. Depois que a infraestrutura estiver pronta, a companhia vai em busca das certificações, locais e estrangeiras. "Plano é buscar certificação para as três frotas, de Airbus, Embraer e ATRs", disse o vice presidente da Azul sobre os modelos que formam a frota de 140 aeronaves.
Presente em 102 aeroportos, a Azul faz as revisões leves de rotina, os checks A, nesses terminais, com uma equipe de 1,2 mil técnicos. Esses processos continuarão sendo realizados nos terminais por onde trafegam os aviões da companhia.
Anac começa a negociar com EUA
A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) tem agendados encontros em janeiro com a Federal Aviation Administration (FAA), órgão regulador dos Estados Unidos, com objetivo de chegar ainda este ano a um acordo bilateral que deve aumentar a demanda potencial para as oficinas brasileiras na aviação.
"É um processo longo, mas que começamos a caminhar de forma mais efetiva a partir de janeiro, quando vamos ter reuniões com a equipe do FAA", disse ao Valor o gerente de coordenação da vigilância continuada da Anac, Henri Salvatore Bigatti.
No mundo, a certificação para manutenção de aeronaves é de responsabilidade dos órgãos reguladores de cada país. Assim, aviões que têm matrículas brasileiras devem ser vistoriados em oficinas certificadas pela Anac; aeronaves dos Estados Unidos pela FAA; modelos que voam na Europa pela Easa – European Aviation Safety Agency – e assim por diante.
Aviões americanos podem passar por oficinas de outros países desde que elas tenham sido certificadas pelo FAA – que tem 700 centros autorizados fora dos Estados Unidos. Da mesma forma, a Anac tem 152 oficinas certificadas fora do Brasil.
Mas a fiscalização desses centros fora dos respectivos países custa recursos e horas/trabalho públicos de cada governo. Por exemplo: toda vez que uma companhia aérea vai repassar uma aeronave, após anos de uso, a outra companhia, para uma firma de leasing ou mesmo para a fabricante, todos os milhares de itens do avião precisam ser checados por uma oficina certificada no país de destino.
Ou seja, um avião da Gol fabricado pela Boeing precisa passar por uma oficina certificada pela FAA, antes de ser devolvida para outra companhia nos Estados Unidos. Se o avião for da Airbus, destinado à Europa, passaria pela Easa.
A Gol tem suas oficinas certificadas pela FAA, dos Estados Unidos. E o processo de fiscalização dessas oficinas é bancado pelo governo americano.
Além disso, toda peça que não tenha sido revisada por uma oficina certificada pela FAA tem que ser trocada por um item que tenha o selo desta antes de o avião ser devolvido aos Estados Unidos.
Por isso, acordos bilaterais entre as agências reguladoras de diferentes países tendem a tornar esse processo mais ágil e menos custoso. A Anac já tem esse tipo de acordo com a Easa, da Europa, o que tem sido proveitoso para empresas que usam principalmente aviões da Airbus, fabricados na França, como é o caso da TAM, e da Azul, que usa os ATRs, feitos na Itália.
"Esse acordo vai ter um impacto positivo no redelivery de aeronave, que tem um custo elevado por causa da necessidade de levantar o histórico e o tempo de vida dos componentes. Isso demanda auditoria dos componentes", diz o vice-presidente técnico operacional da Azul, Flavio Costa.
O vice-presidente da TAM, Ruy Amparo, observa que o acordo entre Anac e FAA, dos Estados Unidos, vai abrir oportunidades de negócios para o novo centro de manutenção que o grupo terá em Guarulhos, por exemplo. "A Latam já tem uma solução muito competitiva para atender aviões estrangeiros que ficam o dia inteiro em Guarulhos, entre manhã, quando pousam, e a noite, quando decolam para o exterior. Lá podemos fazer o check A, disse, Amparo, referindo-se à manutenção leve de rotina. "Como temos alguns custos fixos que já estão lá, na hora em que você provê serviços no meio do dia isso dilui custos", disse o executivo.
Para Amparo, ao fechar acordos com Easa e FAA, a Anac vai atrair outros órgãos nacionais. "Tendo acordos com FAA e Easa, o resto do mundo segue", afirmou Amparo, projetando que haverá demanda por manutenção de aéreas asiáticas e do Oriente Médio também.