Eduardo Wolf
Professor e Tradutor
Publicado no Caderno PrOA de Zero Hora
Creio que não será exagero dizer que o ano de 2015 foi o ano do terror. Sob formas variadas e em níveis de violência surpreendentes, originando-se de uma pletora de razões e eclodindo com a mesma intensidade destruidora em partes do mundo tão desiguais quanto indissociáveis como a França, o Quênia e a Turquia, o terrorismo foi a linha mestra da narrativa deste ano que nos parece fazer o favor de terminar enquanto contabilizamos as vidas que perdemos e enfrentamos as perplexidades que nos consumiram e nos consumirão.
O que testemunhamos em 2015 foi a mudança de patamar nas práticas do terrorismo – algo apenas comparável ao que vivemos com os episódios dos atentados de 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos.
Uma singela evidência disso é que esta coluna iniciou o ano, em 10 de janeiro , com a triste tarefa de tentar articular em palavras as várias perplexidades que então nos assaltavam a todos de surpresa naquela manhã do dia 7, quando homens armados de fuzis e teologias assassinas chacinaram os membros da revista satírica francesa Charlie Hebdo aos berros de Allahu Akbar, expressão que tristemente não carece mais de tradução.
O ciclo macabro do terror islâmico que nos acompanhou com indesejada constância neste ano continuou na sexta-feira 13 de novembro, novamente em Paris, a capital da nação que é um dos berços das democracias modernas e que representa tudo o que o obscurantismo sanguinário jihadista mais abomina: a laicidade, a democracia e o republicanismo, as liberdades individuais e os prazeres mundanos, elevados ou não, que configuram filosófica, política e culturalmente parte de nossas melhores tradições ocidentais.
Minha lista de perplexidades pessoais com os atentados do Estado Islâmico em Paris e seus impressionantemente trágicos mais de 130 mortos e outra centena mais de feridos não cabe em texto algum, meu ou de quem quer que seja. As notícias iam aparecendo na iluminação azulada de brilho moderno e familiar das telas planas e dos smartphones, e eu pensava nos amigos e parentes que por lá vivem. Todos bem, vou sabendo, e assim o terror se distancia minimamente de mim, e posso esboçar alguma reflexão. Pensar é uma maneira muito nossa, ocidental, de revidar o terror islâmico.
Pois foi justamente a incapacidade de pensar, somada à vocação para uma abjeta combinação de mentira com ilusão (ambas ideologicamente informadas, destaque-se) dos acadêmicos e intelectuais progressistas de sempre, que deu um toque melancólico às minhas já perturbadoras perplexidades. Em janeiro, depois dos atentados contra a equipe do Charlie Hebdo, esses intelectuais progressistas empolgadamente culparam os assassinados pelos seus assassinatos.
Não foi muito diferente na sexta-feira 13 de novembro: o capitalismo mundial, os interesses americanos, o preconceito francês – tudo isso havia causado a morte daquelas 130 pessoas em cafés, restaurantes e casas de espetáculo parisienses. Só uma causa era falsa, apenas uma motivação não poderia ser mencionada: o islamismo radical, o jihadismo islâmico.
Ocorre que, desta vez, a mentira era flagrante, e a empulhação ideológica ganhou contornos de mau gosto. Um bom exemplo ocorreu, por puro acaso, neste caderno PrOA, em entrevista com o professor de filosofia da USP e entusiasta do “terror que emancipa”, Vladimir Safatle. Disponível já no sábado 14 de novembro, mas realizada obviamente antes dos atentados do dia 13, na entrevista Safatle mente – essa é a única palavra correta – para o público leitor de Zero Hora.
A título de exemplo de como as perversas democracias ocidentais manipulavam nossos “medos” (tese de um seu triste e confuso livro de louvor à violência que já resenhei ) para exercer seu poder sobre nós, conta que, havia dois anos, na Inglaterra, uma pessoa com problemas mentais evidentes saiu à rua com uma machadinha gritando Allahu Akhbar e acabou acertando um soldado e matando-o, episódio isolado e da ordem do absurdo.
A reação de David Cameron, ao afirmar que os terroristas “não nos derrotariam”, seria a coroação da manipulação das terríveis democracias em que vivemos. O problema é que Michael Adebolajo e Michael Adebowale, estudantes de sociologia da Universidade de Greenwich que se radicalizaram no islamismo, passaram por grupos extremistas na Inglaterra e fora dela (Al-Mahoujiron e Al-Shabaab) e não praticaram ato algum de loucura isolada: agiram motivados por uma ideologia assassina na qual têm fé inabalável, o islamismo em suas variedades mais radicais.
As mentiras do professor Safatle partilham de algo dessa fé inabalável – não no islamismo, claro. Mas no desprezo pelos nossos melhores valores democráticos e humanistas, liberais e republicanos. Vendendo mentira por ilusões, progressistas ocidentais e jihadistas islâmicos vão matando o que temos de melhor naquilo que somos.