Jarbas Passarinho
Coronel reformado, foi governador, senador e ministro de Estado
A esquerda parece estar, pela primeira vez, convencida de que a anistia votada em 1979 abrange também o terrorismo. O projeto da Comissão da Verdade, que dormita na Câmara dos Deputados há mais de um ano sem tramitação, pode chegar a ser votado logo após o recesso de julho do Congresso. A resistência deriva dos debates da Constituinte em que a esquerda foi vencida depois de tenaz oposição a considerar tortura e terrorismo igualmente crimes hediondos. O texto original trai essa posição ao escrever que se destina a avaliar casos de violação de direitos humanos ocorridos "no período da ditadura militar" e não "ocorridos no período da luta armada, de 1966 a 1975".
Dos conceitos que conheço sobre a verdade, usei no meu livro de memórias, como emblemático, o que colhi de Leão XIII: "A primeira lei da história é de não ousar mentir; a segunda, de não temer exprimir toda a verdade". A literatura da esquerda, no que toca à luta armada por ela desencadeada, sofre dessa cegueira. Desfigura a verdade como nos mitos a seguir. Restrinjo-me às mais comuns afirmações utilizadas, pela esquerda, visando a tornar justificada a sua responsabilidade na luta armada.
1. Não havia a ameaça comunista em 1964. Havia. Sirvo-me preferentemente de fontes de autores da esquerda, a começar pelo livro O combate nas trevas, do comunista histórico Jacob Gorender, que fez parte do Comitê Central do PCB. Intelectual renomado, narra a história com isenção. Rompido com Prestes, que discordava da luta armada, fez parte dela, no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, o que lhe valeu a prisão e a condenação. A honestidade com que narra os acontecimentos revela-a a objetividade de pesquisador à busca da verdade.
O capítulo 8º do livro, Gorender intitulou-o "Pré-revolução e o golpe preventivo". A pré-revolução, ele a descreve detalhadamente: as centenas de greves, de cunho leninista, não mais de reivindicação econômica, mas políticas e preparatórias da insurreição; as passeatas do movimento estudantil no auge da agitação; e a sublevação de sargentos, em Brasília, e dos marinheiros, no Rio. Em entrevista à TV Tupi de São Paulo em 3 de janeiro de 1964, Prestes declarou seu apoio à prorrogação do mandato de Jango e, para isso, uma reforma constitucional, o que, para Gorender, é prova da participação: "Açodamento que não escondia o quanto o poder parecia próximo ao secretário-geral. Não poderia estar mais próximo e seguro, uma vez que o PCB tinha um aliado no próprio presidente da República". E mais: no dia 27, afirmou no auditório da ABI, comemorando aniversário do PCB, que não havia condições favoráveis a um golpe reacionário, mas, se esse viesse, "os golpistas teriam as cabeças cortadas", o que repetiu no dia 29, a milhares de pessoas, no Estádio do Pacaembu.
A ligação íntima de Prestes e seu partido ainda ilegal mostrava o perigo no campo interno. No externo, viria a dizer Prestes, em seu livro Prestes: lutas e autocríticas: "Jango é o melhor dos políticos importantes com quem estive, chegando inclusive a compreender o papel que a União Soviética desempenhava". A ameaça confirma Gorender: "Houve a possibilidade de vencer, mas foi perdida".
2. A luta armada foi consequência do AI-5. Falso. Prova o livro A esquerda armada de 1965 a 1973, premiado em Cuba em 1973, composto de depoimentos dos exilados comunistas. Em 1965 cobre "o começo da crise das organizações da esquerda brasileira". Nas páginas finais há um cronograma das intervenções revolucionárias e terroristas, no qual consta: "Em outubro de 1967 começam as primeiras ações armadas da guerrilha urbana em São Paulo, onde operam a ALN e a VPR". Iniciava-se a luta armada, mais de um ano antes do AI-5, desencadeada pelas duas facções mais expressivas em desdobramento do atentado terrorista em 1966, no aeroporto de Guararapes, em Recife, usando bomba-relógio. Graças ao esvaziamento do aeroporto, pouco antes da explosão, que seria uma tragédia, ainda assim mutilou vários civis não combatentes e matou cinco inocentes. Um ato terrorista, pois, em 1966, e a atuação das guerrilhas a partir de outubro de 1967 são anteriores a dezembro de 1968, data da edição do AI-5.
3. A guerrilha lutava pela democracia contra uma ditadura. Mentira. Os guerrilheiros diziam lutar contra a ditadura, mas eram partidários de outra ditadura, a do proletariado. A democracia, como definida por Marx, seria uma consequência futura da ditadura do proletariado, "uma classe dominante temporária". O que as guerrilhas prescreviam, desde logo, era a ditadura. Testemunha-o o insuspeito Daniel Aarão Reis, do MR-8, guerrilheiro preso e exilado, hoje professor universitário: "Não compartilho da lenda de que fomos o braço armado de uma resistência democrática, mito surgido na campanha pela anistia. O projeto das organizações de esquerda armada era revolucionário, ofensivo e ditatorial. Não existe um só documento em que elas se apresentassem como instrumento de resistência democrática. (O Globo,23/9/2001). "Mito e lenda", para ajudar na anistia de 1979. Fernando Gabeira afirma o mesmo.