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Qual a geopolítica por trás da morte do bebê sírio?

Por Gustavo Chacra
Texto do blog Guga Chacra

 

Sabemos que o bebê (menino) sírio Aylan al Kurdi, de três anos, foi encontrado em uma praia da Turquia depois de o barco no qual viajava para a Grécia naufragar. Sua mãe e seu irmão, de cinco anos, morreram. O pai sobreviveu.
 
 De onde era Aylan?
 
Aylan nasceu em Kobani há dois anos. Esta é uma cidade curda da Síria na fronteira com a Turquia.
 
O que aconteceu na cidade dele?
 
No início da Guerra Civil, em 2011, o regime de Bashar al Assad concedeu autonomia para áreas curdas do país. Foi o caso de Kobani. No ano passado, porém, esta cidade foi alvo de uma ofensiva do ISIS (Grupo Estado Islâmico ou Daesh), que destruiu Kobani. A Turquia poderia ajudado, pois suas forças estavam do outro lado da fronteira, a poucos quilômetros, mas nada fez para impedir o avanço dos extremistas. A situação melhorou um pouco com a chegada dos guerreiros Pesh Merga (curdos iraquianos), de milícias xiitas iraquianas pró-Irã e de bombardeios dos EUA. Mas o cenário permaneceu instável.
 
Por que a Turquia não ajudou?
 
A Turquia tem uma postura ambígua em relação à Guerra da Síria. Por um lado, recebeu mais de um milhão de refugiados e construiu alguns dos melhores campos de refugiados da história da humanidade. Por outro lado, sírios reclamam de preconceito. Além disso, a prioridade do governo turco é o fim do regime de Bashar al Assad e o enfraquecimento dos curdos, não necessariamente a derrota do ISIS (Grupo Estado Islâmico ou Daesh). Por este motivo, não agiu para salvar vidas em Kobani.
 
Qual a religião e a etnia da família de Aylan?
 
Aylan era de uma família muçulmana sunita, de etnia curda. Isto é, não era árabe. O próprio sobrenome dele “Kurdi” quer dizer curdo. Para os curdos, a etnia costuma ter um peso maior do que a religião.
 
Por que a família de Aylan não se refugiou na Turquia, no Líbano ou na Jordânia?
 
O Líbano e a Jordânia ficam muito longe de Kobani. Teriam de cruzar uma série de áreas dentro do território sírio em guerra civil. Costumam ir para o Líbano os moradores de áreas próximas da fronteira libanesa. O mesmo vale para a Jordânia. E o Líbano e a Jordânia, apesar da boa vontade, são economias fracas, com dificuldade para integrar economicamente os refugiados – o Líbano também é uma nação com seus próprios problemas. Já de Kobani para a Turquia dá para ir andando. Mas, diante da má vontade dos turcos com os curdos e o desejo de uma vida melhor, o pai de Aylan pretendia ir para a Europa e, possivelmente, seguir para o Canadá.
 
Por que o pai queria ir para o Canadá?
 
Porque a irmã dele mora no Canadá e tem cidadania canadense. Ela juntou toda a documentação burocrática para levar a família do irmão, mas esbarrou na burocracia canadense e também no governo de Harper, atual premiê, que tem uma postura contrária a receber imigrantes e refugiados, indo contra a tradição canadense (Toronto é das cidades mais cosmopolitas e multiculturais do mundo).
 
Ainda assim, valia a pena cruzar em um barco da Turquia para a Grécia, arriscando a vida de crianças?
 
É fácil para nós falarmos a distância, sem termos vivenciado a Guerra da Síria ou a situação de refugiados curdos na Turquia. Sem dúvida, o pai de Aylan tinha alternativas, como ir para o Curdistão iraquiano ou mesmo permanecer no território turco. Afinal, a Turquia, com todos os seus defeitos, é uma economia emergente, como o Brasil, e com muitos curdos como o pai de Aylan. Mas o pai sonhava certamente com o Canadá, um dos países mais desenvolvidos do mundo, e devia ter confiança que, a partir da Europa, daria um jeito de chegar ao território canadense, onde seus filhos teriam oportunidades do futuro. Sua irmã certamente o ajudaria na adaptação
 
Qual a lição?
 
A lição é que, nas guerras, uma assinatura pode salvar vidas. Centenas de milhares de judeus se salvaram da Segunda Guerra porque alguém os ajudou. Outros seis milhões não tiveram a mesma sorte e morreram nas mãos dos nazistas. Mas, certamente, se mais pessoas tivessem ajudado os judeus (e os ciganos e os homossexuais), menor teria sido o número de vítimas do Holocausto. Portanto quanto mais pessoas agirem como Angela Merkel, da Alemanha, ou como o Líbano e a Jordânia, que recebem 1 milhão de refugiados cada um, mais bebês como Aylan sobreviverão. Quanto mais países agirem como a Hungria, Canadá e a Arábia Saudita, mais bebês como Aylan morrerão.
 
Ontem escrevi que seria “moda” falar de Aylan porque muitos podem se esquecer de refugiados sírios em uma semana, assim como se esqueceram das meninas sequestradas pelo Boko Haram ou das vítimas de tantas guerras e tragédias naturais ao redor do mundo. Torço para que a história de Aylan e o drama dos refugiados sírios não caia no esquecimento (infelizmente, algumas pessoas foram incapazes de entender meu texto).
 
E aqui gostaria de homenagear o Bruno Rizzi Razente e o José Estanislau do Amaral de Souza Neto, diplomatas brasileiros responsáveis pela Síria e atualmente baseados em Beirute. Vocês não têm ideia do quanto eles fazem para ajudar os refugiados. O mesmo vale para a Siham Harati, cônsul honorária do Brasil no Vale do Beqaa, que usa a sua própria casa para conceder ajuda aos refugiados que cruzam da Síria para o Líbano e desejam seguir viagem para o Brasil.
 
Para completar, muitos refugiados sírios têm chegado ao Brasil e se integrado muito bem à sociedade brasileira, repetindo o que ocorreu com a imigração sírio-libanesa no começo do século 20.

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