Leonam dos Santos Guimarães
Doutor em Engenharia, Diretor de Planejamento, Gestão e
Meio Ambiente da Eletrobrás Eletronuclear e membro do
Grupo Permanente de Assessoria do Diretor-Geral
da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
Yuval Harari, em artigo publicado na revista 'New Stateman' de 18 de junho de 2015, alerta para um fato pouco discutido: numa época em que os políticos não ousam mais revolucionar o mundo, empresários bilionários, à margem das ideologias, sonham não somente em remodelar a sociedade, mas também em vencer a velhice e a morte.
Durante grande parte do século XX foi travada uma batalha ideológica. Comunistas, fascistas e progressistas quiseram destruir o velho mundo para estabelecer uma nova ordem. Lenin, Stalin e Mao tentaram desmantelar a estrutura da sociedade humana e construir, através da ciência, um mundo melhor. As comunidades, as famílias e os seres humanos individualmente eram vistos como instrumentos para atingir esse ideal. Nessa busca, milhões de pessoas morreram direta ou indiretamente, porque "o fim justifica os meios".
Hitler e seus capangas usaram métodos ainda mais cruéis, para um projeto ainda mais ambicioso.
Os nazistas queriam criar uma raça superior, ao invés de “simplesmente” construir uma nova sociedade. Queriam mudar a biologia humana, acelerar a evolução e criar super-homens. Independente do juízo que se tenha sobre Lenin ou Hitler, não se pode dizer que eles “pensavam pequeno”.
Os progressistas não eram menos ambiciosos. Defensores das ideias do Iluminismo, eles esperavam recriar o paraíso na Terra através da educação para todos e do progresso tecnológico. Derrubaram estruturas hierárquicas que datavam de séculos, dando poder nunca visto às mulheres, minorias e jovens. Ainda mais surpreendente, já que durante milhões de anos a família e as comunidades foram os pilares da sociedade, os progressistas colocam as pessoas individualmente no centro do debate político.Eles enfraqueceram o poder de pais, vizinhos e anciãos, criando uma nova "sociedade de indivíduos".
Ao fazê-lo, talvez os progressistas tenham nos condenado à alienação e a níveis sem precedentes de solidão. Menos agressivo do que comunistas ou fascistas, os ideais progressistas não eram menos radicais. Se essa ideologia centrada no indivíduo parece, hoje, perfeitamente normal, até mesmo banal, é porque crescemos imersos nela.
Quaisquer que sejam suas diferenças ideológicas, comunistas, fascistas e progressistas têm em comum a criação de um Estado-Leviatã. Em tempo bastante curto, todos criaram um sistema de educação, saúde e seguridade social universal, buscando materializar suas aspirações políticas. Estas novas estruturas sociais se tornaram prestadoras de serviços que praticamente regem todos os aspectos da vida humana.
Pelo menos neste sentido, os grandes ideais políticos do século passado conseguiram criar um mundo verdadeiramente novo. As estruturas sociais vigentes no século XIX desapareceram quase que completamente na maior parte do mundo e agora vivemos em uma realidade muito diferente.
No início do século, os políticos do pós-guerra de todos os matizes foram personalidades fortes que usavam todos os meios disponíveis para atingir suas ambições. Os políticos atuais aparentemente têm disponíveis meios para perseguir objetivos mais ambiciosos do que os de Lenin, Hitler e Mao. Enquanto eles tentaram criar uma nova sociedade e um novo ser humano com a máquina a vapor e a máquina de escrever, os visionários do nosso tempo podem contar com a biotecnologia e os supercomputadores.
Mesmo assim, apesar do surgimento de todas essas novas tecnologias, os políticos de hoje curiosamente parecem ser carentes de ambição. No início do século XXI, os visionários não pertencem mais à classe política. Nenhum grande partido tem planos para mudar o mundo.
Nenhum grande partido quer derrubar a ordem estabelecida, muito menos criar um novo homem ou super-homens. Essa falta de ambição sem dúvida reflete as consequências abomináveis das ideologias do século XX. De fato, se ter grandes ideais conduz a Auschwitz, a Hiroshima e ao Grande Salto Adiante, o futuro da humanidade é muito melhor nas mãos de burocratas sem ambição.
O fator determinante para essa falta de ambição, que limita projetos políticos grandiosos de todos os matizes, ironicamente é a maior conquista do século XX, ou seja, o acesso à educação, saúde e seguridade social para todos. Essas conquistas agora requerem uma grande quantidade de recursos e, portanto, de atenção e controle o tempo todo.
Além disso, qualquer tentativa de alcançar um novo projeto grandioso seria suscetível de perturbar esse sistema e influir negativamente nas próximas eleições. Por isso que os políticos são tão cautelosos hoje em dia.
O título de revolucionário, abandonado pela classe política, foi recuperado pelos empresários e corporações. Não há necessidade de ir a Downing Street, Casa Branca ou Kremlin saber o destino da humanidade, mas aos centros de pesquisas avançadas. É lá que você vai encontrar o Lenin dos nossos tempos. Essa comparação se deve à audácia e alcance dos seus projetos, bem como pelas suas aspirações de destruir o nosso já velho mundo para reconstruir um novo em seu lugar.
Em termos de ousadia e ambição, eles podem até mesmo superar Lenin. Os comunistas sempre pensaram e agiram dentro dos limites da realidade dos modelos econômicos. Eles tinham como certo o fato de que os recursos são limitados, a demanda deve ser equilibrada pela oferta, os seres humanos são essenciais para a economia e o trabalho é fundamental para a vida humana. Pelo contrário, os visionários de hoje imaginam um futuro de abundância em que máquinas inteligentes substituem os humanos na economia, a oferta não equilibra a demanda e vida já não depende do trabalho.
Essa ideologia é baseada na separação entre inteligência e consciência. Até agora a grande inteligência sempre foi inseparável de uma consciência desenvolvida. Só seres conscientes poderiam realizar tarefas que exigem um alto nível de inteligência: jogar xadrez, dirigir um carro, diagnosticar uma doença ou matar terroristas. No entanto, grandes corporações de tecnologia estão criando novos tipos de inteligência não consciente, por meio da inteligência artificial e do “big data”, que são capazes de superar os seres humanos na execução dessas e muitas outras tarefas ainda mais complexas.
Isto levanta uma questão nova para a economia: a inteligência ou a consciência? Como as duas sempre estiveram intimamente associadas, esta questão somente tem interessado aos filósofos. No século XXI, entretanto, há urgência em resolver esse problema, pois para a economia a inteligência é fundamental, mas a consciência não é necessária. Enquanto a Revolução Industrial do século XIX levou à criação de uma nova classe trabalhadora urbana, o século XXI poderá testemunhar o nascimento de uma nova classe constituída por indivíduos economicamente sem função.
Se este for o caso, o desafio é muito maior que o representado pela Revolução Industrial e exige novos modelos económicos e sociais, muito mais ambiciosos do que os de Marx, Lenin e Mao. Os socialistas e os comunistas criaram uma nova ideologia para satisfazer as necessidades, esperanças e temores da nova classe operária. A nova classe de indivíduos sem função econômica do século XXI também terá necessidades, sonhos e dúvidas. Em resposta, novos modelos socioeconômicos adaptados a uma sociedade de abundância em que os seres humanos não produzem mais, sendo apenas os consumidores, terão que ser desenvolvidos.
Entretanto, os aprendizes de feiticeiro não param por aí. Eles não só sonham revolucionar a sociedade e a economia, mas também retardar o envelhecimento e até mesmo vencer a morte, criando a “Internet das Coisas” e mesclando-a com os seres humanos, de forma a construir uma espécie de “consciência cósmica”.
Não somos capazes hoje de afirmar que um projeto deste seja viável. No entanto, sabe-se que as conquistas dos homens raramente chegam à altura de suas esperanças. Mesmo que não tenham chegado lá, os comunistas marcaram o século XX por seu compromisso com a superação das desigualdades entre homens. O nosso século será talvez caracterizado pela tentativa de melhorar o ser humano e vencer a morte, ou seja, o ideal da igualdade cederia lugar ao da imortalidade.
Contudo, os políticos tornaram-se administradores que não planejam o futuro, mesmo que as novas tecnologias deem a oportunidade para redesenhar o mundo além dos nossos sonhos. De fato, os avanços tecnológicos permitiriam até mesmo mudar nossos sonhos.
Se os políticos não querem assumir a responsabilidade pelo planejamento do futuro, alguém o fará. Assim, pode ser que as decisões mais importantes na história da humanidade acabem sendo tomadas por um pequeno grupo de engenheiros e empresários, enquanto os políticos estão ocupados debatendo inflação, taxa de câmbio, desemprego e, obviamente, as próximas eleições.