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O Retorno de Giges à Caverna Nuclear

 

Leonam dos Santos Guimarães
Diretor de Planejamento, Gestão e Meio Ambiente
Eletrobrás Termonuclear SA – ELETRONUCLEAR
leonam@eletronuclear.gov.br


O anel de Giges é uma lenda que integra “A República” de Platão. Giges era um pastor que servia ao soberano da Lídia. Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no local onde ele apascentava seu rebanho. Admirado ao ver tal coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas, um cavalo de bronze oco, mas com aberturas.

Espreitando através delas viu lá dentro um cadáver, aparentemente maior do que um homem normal, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão. Arrancou-o e saiu. Como os pastores se tivessem reunido, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei, como todos os meses, informações sobre seus rebanhos, Giges foi lá também, mas usando seu novo anel.

Estando ele sentado no meio dos outros patores, deu por acaso uma volta ao engaste do anel para dentro, em direção à parte interna da mão e, ao fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam ao lado, os quais falavam dele como se tivesse ido embora. Admirado, passou de novo sua mão pelo anel e virou para fora o engaste.

Assim que o fez, tornou-se visível. Tendo observado estes fatos, experimentou mais vezes para ver se o anel tinha mesmo aquele poder. Verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava visível. Assim, senhor de si, logo fez com que fosse um dos delegados que iam se encontrar com o rei. Uma vez lá chegando, seduziu a mulher do soberano e com o auxílio dela, atacou-o, tomando o trono da Lídia.

A parábola do anel de Giges há muito tempo chama a atenção dos cientistas políticos e psicólogos de todo o mundo, sendo objeto de muitas investigações filosóficas. Dentre as diversas interpretações plausíveis, pode ser vista como uma interação entre um poder desequilibrado dado a um homem e seu comportamento ético. Tal interação pode ser tomada de forma mais ampla como uma metáfora de uma tecnologia disruptiva, uma nova fonte de poder tecnológico (o anel), que propicia a um Estado (Giges) tornar-se hegemônico globalmente (tomando o trono da Lídia).

Ao final da Segunda Guerra Mundial, o “anel de Giges nuclear” tornou os EUA a superpotência hegemônica, na sequencia dos objetivos de uma “Grande Estratégia” aplicada continuamente desde o século XVIII. Entretanto, não demorou muito para outros países adentrarem na “caverna nuclear” e encontrarem também seu anel. Com isso, uma guerra entre as grandes potências que o possuíam acabou se tornando em pouco tempo suicida.

Sua proliferação horizontal (vários países o possuem) e vertical (em cada vez maior quantidade) gerou o risco de que um confronto convencional entre superpotências poderia levar a uma escalada catastrófica e, assim, permitiu evitar uma temida, e felizmente nunca ocorrida até hoje, terceira guerra mundial.

No entanto, o “anel de Giges nuclear” não eliminou, longe disso, a tendência inerente da humanidade em competir pela hegemonia, segundo comportamentos nem sempre éticos. Os Estados não podem confiar em intenções e, portanto, avaliam as capacidades dos seus adversários.

Nenhum Estado pode ter exata certeza sobre as capacidades de seus concorrentes e, portanto, devem se preparar para os piores cenários e "pensar o impensável". Este conceito de desconfiança tem destaque no pensamento estratégico, resumido por Sun Tzu na questão: “você pode imaginar o que eu faria se eu pudesse fazer tudo o que posso?”.

Hoje, o imperativo tecnológico existe no sentido de que os tomadores de decisão têm que considerar como responder às mudanças tecnológicas reais e potenciais. Este não é apenas um fenômeno puramente racional e determinista.

As decisões sobre quais tecnologias de segurança e defesa o Estado deve escolher para desenvolver são moldadas por um processo contínuo de respostas recíprocas e pelos imperativos de seus concorrentes. Na era industrial, cada grande economia tem um potencial militar latente, que alimenta o "imperativo tecnológico", devido à ligação direta entre as esferas civil e militar da tecnologia.

O imperativo tecnológico é, portanto, o resultado de sistemas econômicos industriais que baseiam a sua vitalidade econômica e crescimento contínuo em C&T e projetos de P&D. Mesmo que os projetos de P&D estejam localizados dentro do setor civil, a utilização dual de suas inovações garante que uma "dissuasão embutida" vai seguindo uma tendência ascendente. Nesse sentido, as grandes potências não podem ficar indiferentes ao progresso econômico e tecnológico de outros Estados e, assim, a concorrência é feroz e sem esmorecer. A metáfora do anel de Giges exemplifica plenamente o papel da C&T na estratégia das grandes potências atuais.

Desde o fim da Guerra Fria as Forças armadas dos EUA foram tão bem financiadas e se tornaram tão tecnologicamente superiores que seria completamente temerário para qualquer Estado lançar um desafio direto à superpotência hegemônica global ou a seus aliados. Esta situação ainda se mantém até hoje, mas ela não é mais tão absoluta como já foi. Embora os EUA ainda possuam, de longe, as Forças Armadas mais capazes do mundo, a vantagem tecnológica que lhe garantiria derrotar qualquer adversário concebível está se reduzindo rapidamente.

Estamos entrando em uma era onde o domínio americano nos mares, no céu e no espaço, para não mencionar o ciberespaço, já não pode ser tido como certo. Torna-se, portanto, urgentemente necessário para os EUA desenvolver uma nova geração de tecnologias militares, de forma que outros países não venham a se sentir capazes de contestar sua hegemonia.

Esses outros países certamente estão crescendo e se sentindo mais capazes. A China está cada vez mais interessada em pressionar pelas suas reivindicações territoriais no Pacífico Ocidental. A Rússia tem a clara intenção de restabelecer a sua influência na região que sempre considerou ser formada por "países satélites", como tem mostrado na Ucrânia. Estados menos poderosos, e mais imprudentes, como a Coréia do Norte e o Irã, podem também tornar-se mais inclinados a endurecer suas posições, se passarem a acreditar que poderiam causar dano significativo às forças americanas, fazendo Washington pensar duas vezes antes de atacá-los.

Simultaneamente, antigos aliados dos EUA, como Japão, Coréia do Sul, Israel, Arábia Saudita e Turquia, já não parecem sentir-se tão confortáveis com o “guarda-chuva” de proteção americano e ensaiam ações independentes de defesa contra potenciais inimigos comuns. Por outro lado, novos aliados como os países do leste da Europa e do Sudeste da Ásia, estreitam relações com os EUA na medida em que se sentem ameaçados pelas crescentes capacidades respectivamente da Rússia e da China.

Pela terceira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA percebem a urgente necessidade de avanços tecnológicos para compensar as vantagens de potenciais inimigos e tranquilizar seus aliados, ou seja, reencontrar o desejado anel de Giges.

O primeiro desses momentos ocorreu no início dos anos 1950, quando a União Soviética passou a ter forças convencionais na Europa muito maiores do que as que os EUA e seus aliados poderiam derrotar. A resposta americana foi aumentar a vantagem numérica em forças nucleares para combater a União Soviética, introduzindo, inclusive, diversos tipos de armas de uso tático para o combate direto a essas forças convencionais superiores.

Nos anos 1980, situação similar se repetiu. Os planejadores militares americanos, se recuperando da derrota na guerra do Vietnã, reconheceram que a União Soviética tinha conseguido construir um arsenal nuclear igualmente poderoso, chegando-se à situação de MAD (“Mutual Assured Destruction”). Tornou-se então necessário encontrar outra maneira de restaurar uma dissuasão crível na Europa. Ousadamente, os EUA responderam investindo em uma família de tecnologias ainda não experimentadas, destinadas a destruir as forças inimigas bem atrás da linha de frente.

Lançada pelo Presidente Ronald Reagan em 1983, a SDI, “Strategic Defense Initiative”, ou “Guerra nas Estrelas”, como ficou mais conhecida, deu uma contribuição fundamental para o fim da Guerra Fria e a derrocada da União Soviética, mesmo que seus objetivos finais nunca chegassem a ser atingidos.

Entretanto, novas tecnologias desenvolvidas desde então deram nascimento a inovações tecnológicas que propiciaram aquilo que passou a ser chamado de RMA “Revolution in Military Affairs – RMA” da qual faz parte a doutrina do “Shock and Awe”. Os mísseis de “precisão cirúrgica”, o “networked battlefield”, os satélites de reconhecimento, o sistema GPS e as aeronaves "stealth" foram frutos desse esforço de P&D.

Os EUA assim tinham encontrado um novo “anel de Giges” que os mais prováveis adversários não conseguiriam copiar. A efetividade desta "Revolução nos Assuntos Militares" foi demonstrada em 1991, durante a primeira Guerra do Golfo e aperfeiçoada em 2003, na invasão do Iraque.

Bunkers militares inimigos foram reduzidos a escombros e suas formações blindadas de estilo soviético tornaram-se alvos fáceis. A doutrina do “Shock and Awe” se mostrou efetiva. Os estrategistas estrangeiros ficaram impressionados com essas demonstrações, mas igualmente determinados a aprender com elas.

Essa grande vantagem que os EUA conseguiram vem, porém, diminuindo paulatinamente. Embora o Pentágono tenha aperfeiçoado e melhorado muito as tecnologias que foram utilizadas nas guerras do Golfo, essas tecnologias também têm proliferado e se tornado muito mais disponíveis e baratas pela disseminação de suas aplicações civis.

Além disso, durante os longos anos de missões de contra-insurgência e estabilização no Afeganistão e no Iraque, o Pentágono passou a estar mais focado em produzir carros blindados resistentes a minas e drones de vigilância e ataque do que em efetivas inovações para manter-se bem à frente dos concorrentes militares. Chega-se, portanto, ao momento atual em que os EUA tem que buscar um novo “anel de Giges”, uma outra estratégia baseada em novos avanços tecnológicos. O desenvolvimento do sistema “Prompt Global Strike – PGS” é um exemplo desse esforço.

Entretanto, as circunstâncias econômicas, políticas e técnicas de hoje são muito diferentes daquelas que prevaleciam na década passadas, tendo surgido vários obstáculos que dificultam a repetição dos resultados obtidos pelos EUA desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Mesmo se todos estes obstáculos vierem a ser superados, é pouco provável que essa nova estratégia garanta um domínio militar dos EUA por longo prazo, como as anteriores propiciaram. A tecnologia se difunde muito mais rapidamente nos dias de hoje, em parte graças à internet, que o próprio Pentágono ajudou a criar.

Além disso, mudanças tecnológicas de todos os tipos se tornaram mais rápidas, graças a uma concorrência feroz nos mercados consumidores civis, e fortemente condicionada pelo uso dual. Na disputa tecnológica militar atual, a concorrência será implacável, multipolar e os êxitos provavelmente mais fugazes.

Esse fato, entretanto, tem uma característica bastante alarmante, e que é pouco discutida. No desenvolvimento de novas estratégias, tem se assumido que a lógica da dissuasão nuclear e a política do “no first use” sobreviveria a um intenso conflito convencional.

Novos sistemas, como o PGS, raramente mencionam as armas nucleares. A busca por um novo “anel de Giges” convencional pode, entretanto, se tornar um incentivo para os oponentes responderem com estratégias de escalada nuclear.

Uma resposta racional à superioridade tecnológica de um competidor pode se tornar uma diplomacia nuclear muito arriscada. Num mundo multipolar em que a hegemonia dos EUA vem se degradando, essa resposta pode ser dada por mais de um adversário e mesmo contra outro país que não seja os EUA, num processo que o grande estrategista Thomas Schelling chamou de "competição na tomada de riscos" no qual um inimigo passa a acreditar que poderia vencer.

Nesse sentido, o mundo parece estar entrando em um processo de real crescimento das ameaças nucleares que talvez seja mais perigoso do que aquele levou à MAD. A evolução da precisão e da velocidade dos mísseis, a retomada do desenvolvimento e emprego de armas nucleares táticas, o desenvolvimento de “Multiple Independant Re-Entry Vehicles – MIRVs” por novos países, a modernização militar da China e Rússia e as recentes tensões no Leste Europeu (Ucrânia) e Sudeste Asiático (ilhas do Mar da China Meridional), somadas às antigas, mas sempre renovadas, no Oriente Médio (Iran, Israel, Arábia Saudita, Iraque, Síria, Egito) e Extremo Oriente (Coréia e Taiwan), parecem apontar para uma nova “Marcha da Insensatez”, na qual governos nacionais pode executar atos autodestrutivos por não reconhecerem a existência de alternativas mais razoáveis com respeito aos interesses das próprias nações que representam.

O delicado equilíbrio de poder mundial multipolar atual pode fazer com que a ideia de que seria possível um Estado vencer uma guerra nuclear volte à mente de estrategistas e políticos, após longo tempo ter sido abandonada pela realidade da MAD.

Não existe ideia mais perigosa para a humanidade do que a de uma “guerra nuclear limitada” que possa ser vencida por uma das partes em contenda. Essa ideia parece estar ressurgindo nas potências nucleares atuais e potenciais. Interromper sua marcha é tão vital para o futuro da humanidade como reverter a marcha das mudanças climáticas, ameaça de mais longo prazo, porém muito mais mediatizada.

Giges não pode retornar à caverna nuclear: o preço a pagar poderá ser alto demais! Esforços ainda maiores do que os que vêm sendo feitos para mitigar as mudanças climáticas devem ser urgentemente empreendidos pela comunidade internacional para evitar essa ameaça, que poderia se configurar em prazos bem mais curtos.

Nota DefesaNet

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