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“Brasil não pode desperdiçar seu ‘soft power’”, diz Celso Amorim

O ex-ministro da Defesa e das Relações Exteriores Celso Amorim diz que a dimensão do Brasil no exterior não pode ser separada do crescimento interno e que a confiança conquistada pelo país no cenário global é um trunfo que não pode ser desperdiçado.

De volta ao Rio de Janeiro e à vida fora do governo após um longo período em Brasília, Amorim prefere não comentar as políticas da presidente Dilma Rousseff – que vem sendo criticada por uma retração na política externa e pela falta de recursos no Itamaraty.

O ex-ministro, no entanto, reafirma que uma "boa diplomacia" é essencial para uma "boa política externa" e ressalta a importância da continuidade para não perder avanços conquistados na área das relações internacionais.

Amorim lança nesta quarta-feira seu novo livro, Teerã, Ramalá e Doha – Memórias da Política Externa Ativa e Altiva (Editora Benvirá), em que esmiúça três processos de negociação ao longo de seu período como chanceler durante o governo Lula (2003-2010).

A capa do livro traz um mapa antigo com uma orientação diferente do comum: África e Brasil no Norte e Europa no Sul. A peça é a reprodução de uma antiga tapeçaria que ficava pendurada em seu gabinete em Brasília – refletindo a crença de Amorim (e Lula) em um mundo multipolar, com uma nova ordem mundial, e um Brasil protagonista.

Na introdução, Amorim diz que as narrativas do livro compõem o quadro de uma travessia do Brasil de "potência média", confinada à sua própria região, ao status de "ator global" – papel que sua política externa procurou exercer em Teerã, intermediando com a Turquia as negociações por um acordo nuclear; com a aproximação de países árabes e de Israel; e nas negociações comerciais multilaterais da Rodada de Doha.

Em entrevista à BBC Brasil, ele afirma que o livro é importante para que a opinião pública saiba o que foi feito e por quê; e relembra o desfecho frustrante das negociações pela Declaração de Teerã, levadas adiante a pedido dos Estados Unidos, mas malogradas após este decidir impor sanções mais rigorosas ao Irã.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil – O seu novo livro trata de três processos que refletem sua crença em mundo multipolar, com o Brasil exercendo um papel de protagonismo. Trata de um período em que o país teve uma atuação marcante na política externa, e também de episódios pelos quais o senhor e o ex-presidente Lula foram criticados, como o acordo com o Irã, quando foram acusados de estar dando um passo maior que as pernas. O livro é uma resposta a essas críticas?

Celso Amorim – O livro não é uma reposta a ninguém. Acho que é importante para a opinião pública brasileira saber o que fizemos e por quê. Não acho de maneira nenhuma que o Brasil tenha dado um passo maior que as pernas. A presença do Brasil era requisitada. Eu sentia isso de maneira dramática na África, sentia isso também no Oriente Médio.

O Brasil desperta esse confiança, talvez por termos uma composição tão misturada, ou por vivermos em paz com 10 vizinhos há 150 anos, ou por estarmos fora dos grandes eixos de confrontação geopolítica. O fato é que o país desperta confiança, e isso é um grande trunfo na presença internacional. Jogar isso fora é desperdício. Bem, não fui eu nem o Brasil que inventamos o termo soft power, foi o (acadêmico americano) Joseph Nye.

Nenhum país se afirma só com soft power, mas ele é importantíssimo. Não é a toa que o presidente (americano Franklin Delano) Roosevelt dava tanta importância ao cinema e dizia: 'onde for o cinema americano, lá irão nossos modos de vida'. O Brasil não pode desperdiçar o seu soft power, o seu poder brando, digamos assim. Ainda que tenha que reforçar também seu poder militar.

BBC Brasil – Um dos relatos mais esperados no seu livro é o passo a passo para firmar a Declaração de Teerã, negociação que começou motivada por um pedido do presidente Obama e terminou mal depois que os Estados Unidos voltaram atrás e optaram pelo caminho de endurecer as sanções ao país. Foi uma puxada no tapete?

Amorim – Não era algo que não pudesse acontecer. Mas apostamos que, se conseguíssemos firmar o acordo exatamente nos termos solicitados pelo presidente Obama em cartas ao presidente Lula e ao primeiro-ministro da Turquia, daria tudo certo. Infelizmente não foi assim.

Na época, o Irã tinha mais ou menos 1.200 quilos de urânio levemente enriquecido. Hoje tem 7 ou 8 mil quilos.

Perdeu-se muito tempo ao não aceitar a Declaração de Teerã. Claro que não era a solução definitiva de todos os problemas, nós sabíamos disso. Era um passo de criação de confiança – cujos passos haviam sido reiterados pelo presidente dos Estados Unidos. Hoje, eu faço votos de que o acordo (que está sendo discutido entre Irã e EUA) seja concluído, não tenho nenhuma mágoa a esse respeito, pelo contrário, acho positivo, só acho que se perdeu tempo.

BBC Brasil – Qual é a diferença entre o acordo que está sendo proposto agora pelo presidente Obama daquele acordo de 2010? E qual é a importância de ele ter sido tentado na época, mesmo não tendo ido para a frente?

Amorim – Acho que nós ajudamos a mostrar que era possível negociar com eles. E é o que está ocorrendo agora. Esse acordo agora é mais amplo. Ele aceita o fato de que o Irã tem 7 ou 8 mil quilos de urânio enriquecido. Por outro lado, ele já se engajaria em eliminar algumas sanções. Mas o curioso de tudo é que sempre nos diziam: "não confiem no Irã, porque eles vão puxar o tapete". Não foram eles que puxaram o tapete.

BBC Brasil – Seu livro novo fala muito na importância de um mundo multipolar e com o Brasil exercendo um protagonismo nesse mundo. Mas agora existe um certo consenso de que é um momento de retração na política externa brasileira.

Amorim – O Brasil já passou por outros períodos de retração. A curva geral é ascendente. O país viveu muitos momentos difíceis, tanto do ponto de vista político quanto do ponto de vista econômico. Eu acho que essas coisas são cíclicas.

Mas a política externa tem que ter continuidade. Você está lidando com fatos de longo prazo. Você não pode abandonar, nem que tenha que fazer um esforço adicional. Essa é a minha experiência. Você não pode decepcionar, porque aquilo que você leva dez anos para criar – uma confiança, uma relação – você com um ato pode perder. Depois pode recuperar, mas dá muito trabalho recuperar.

BBC – Com o corte recente no orçamento, o Ministério das Relações Exteriores teve que conter despesas e estamos vendo relatos de cortes e dificuldades financeiras em embaixadas e consulados…

Amorim – Eu acho que vai melhorar. Eu escrevi um artigo (na Folha de S. Paulo) dizendo: "Dias melhores virão?" Eu espero que daqui a seis meses eu já possa tirar o ponto de interrogação desse artigo. E afirmar de uma maneira mais clara que dias melhores virão.

BBC Brasil – O que levou o senhor a escrever o artigo?

Amorim – Eu acho que havia todo dia uma notícia ruim sobre o Itamaraty. E isso correspondia também a uma certa queda na própria autoestima dos diplomatas. Eu pessoalmente me senti muito responsável pelos jovens diplomatas. Não é à toa que meu primeiro livro se chamou Conversas com Jovens Diplomatas.

Durante meu período, aumentei em 40% as vagas (no Itamaraty). As pessoas entraram para o ministério porque confiaram na política e na carreira. E a maior recompensa é se sentir realizado profissionalmente, isso eu sempre digo.

Agora, você tem que ter um mínimo de condições pessoais de vida, não pode estar com a sua família com risco de doença o tempo todo. Isso aparentemente estava ocorrendo, ou pelo menos se dizia que estava ocorrendo.

Eu me senti obrigado a fazer uma constatação, mas esperançosa, de que foi uma flutuação passageira.

BBC Brasil – Na sua época à frente do Itamaraty, o país vivia um momento de muito otimismo, o "boom" do Brasil, e o senhor teve uma parceria muito positiva com o ex-presidente Lula, desfrutava de bastante autonomia. Sempre se diz que a presidente Dilma não tem muito esse estilo…

Amorim – Eu não posso falar sobre a atual presidenta.

BBC Brasil – Mas a pergunta é se é importante essa autonomia para o chanceler.

Amorim – Não sei se é autonomia, eu procurava agir da maneira que achava que o presidente Lula também pensava. Eu sinto que havia uma grande afinidade de ideias. Mas eu conversava com ele com frequência, e sabia qual era a orientação que ele tinha. Tanto que eu repito muitas vezes no livro: política externa não é do ministro do Exterior. Política externa é do presidente.

BBC Brasil – O senhor acha que a presidente Dilma pode ser persuadida a colocar mais ênfase na política externa?

Amorim – Eu acho que a presidente Dilma sabe muito bem o que ela precisa fazer. E se ela quisesse o meu conselho, ela teria pedido.

O que estou dizendo é que a dimensão do Brasil no exterior não pode ser separada do crescimento interno. É tudo parte do mesmo processo. Você adquire mais prestígio no mundo e isso acrescenta às suas possibilidades de dialogar com tomadores de decisão em outras áreas. Se você olhar por um prisma puramente econômico, nós quintuplicamos o comércio com países africanos e quadruplicamos o comércio com países árabes. Isso em sete ou oito anos.

BBC Brasil – Mas qual seria o risco de o governo atual não atentar para os problemas (no Itamaraty)?

Amorim – Não tenho uma bola de cristal, mas a minha impressão é que a própria designação do atual ministro (Mauro Vieira), uma pessoa muito competente, equilibrada, hábil, é uma demonstração de que há, sim, um desejo de melhorar as coisas. É indício de que as pessoas – não é só uma, são várias – despertaram para a importância de se manter uma boa diplomacia – e uma boa diplomacia necessariamente implica diplomatas com uma autoestima elevada.

Uma boa diplomacia é essencial para uma boa política externa. As duas coisas andam juntas. A boa diplomacia nunca salvará uma má política externa, mas uma má diplomacia pode estragar até uma boa política externa. E esse é o risco que a gente corre se, por qualquer motivo, a diplomacia, ou os recursos para ela, não forem levados em conta.

BBC Brasil – O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, está indo para Caracas com seus colegas do Equador e da Colômbia para iniciar conversas com o governo e a oposição na Venezuela (o ministro cumpriu agenda no país na última sexta-feira). Que papel o senhor acha que o Brasil deve ter nesse momento de acirramento de tensões no país?

Amorim – Os problemas da Venezuela ninguém de fora pode resolver. Nem deve tentar resolver. O que nós podemos fazer é ajudar para que as forças políticas da Venezuela busquem elas próprias uma solução. Você não pode ter um país totalmente dividido. Você não vai governar metade do país contra a outra metade do país, você tem que governar o país inteiro.

É preciso que haja entendimento também da oposição de que ela não pode tratar um governo que foi legitimamente eleito como se pudesse ser derrubado de uma hora para outra. Isso não é cabível.

É possível em tese, buscar essa aproximação. Certamente haverá muitos que querem participar porque isso traz ganhos para a Venezuela. Agora, a eleição, quem foi eleito, isso tem que ser respeitado. Não é porque no meio do governo você achou que estava ruim, então… não pode.

BBC Brasil – Este ano, em dezembro, haverá eleições na Venezuela, em meio à preocupação com um autoritarismo crescente no país. O Brasil deve buscar envolver outros países nas conversas com o país?

Amorim – Quando houve uma crise semelhante, quando nós assumimos em 2003, o Brasil propôs criação do grupo de amigos da Venezuela. Esse grupo reuniu os Estados Unidos, que tinham relação com a oposição (venezuelana), Portugal e Espanha, na época com governos conservadores, também Chile e México… Com isso conseguimos criar um ambiente que facilitou o diálogo. E esse diálogo propiciou que um fato que fazia parte do calendário eleitoral ocorresse tranquilamente, evitando que houvesse outras aventuras.

BBC Brasil – Se houver uma escalada autoritária na Venezuela, isso pode ameaçar a presença do país no Mercosul?

Amorim – Esperemos que não haja. Através desse diálogo, que acho que deveria haver, você vai mitigar qualquer tendência nesse sentido, se é que ela existe. O que sempre ocorre nessas situações é que um culpa o outro: 'eles tentaram o golpe, então tive que fazer isso'. Nós temos que tirar esse círculo vicioso de uma escalada negativa e colocar um círculo virtuoso de ações positivas.

 

 

 

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