Pedro Passos, o seu Pedrico, tem os causos de vida e a memória coalhados de bombas. São os resquícios dos bombardeios realizados em 1970 pela ditadura militar nas matas onde nasceu e se criou, no município de Cajati, Vale do Ribeira, a 200 quilômetros de São Paulo.
Ao longo dos anos, encontrou muitos pedaços dessa história que não está nos livros didáticos; da última vez, há cerca de 20 anos, achou uma carcaça da bomba incendiária enquanto roçava um sítio que margeia o rio do Aleixo: uma chapa de aço, colorida pela ferrugem e pelo musgo, de cerca de 60 x 40 centímetros, em cujo centro um cilindro maciço de metal, de cerca de cinco centímetros de diâmetro, traz o número 528.
Em julho deste ano ele guiou a reportagem da Agência Pública até o lugar, onde havia ainda outros achados: pedaços de aço enferrujados, vermelhos, cintas de alumínio contorcidas, mais um cilindro de metal, esse com o número 543. É a primeira vez destroços das bombas de Napalm atiradas pela Força Aérea Brasileira são recolhidos no local. “Eu nunca tinha visto nada parecido”, diz seu Pedrico, com a data da megaoperação militar ainda na cabeça: final de abril até início de maio, 1970.
A “Operação Registro” foi a maior mobilização da história do II Exército. Foram empregados 2.954 homens, entre membros do Centro de Informações do Exército, regimentos de infantaria e pára-quedistas das forças especiais, policias da Policia Militar e Rodoviária de São Paulo e do Dops, além da Marinha para vasculhar a área e capturar 9 integrantes da organização VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) comandados pelo Capitão Carlos Lamarca, que instalou dois centros de treinamento de guerrilha na área.
Como os pedaços de metal esquecidos nas matas do Vale do Ribeira, os pedaços dessa história foram propositalmente relegados ao esquecimento. A reportagem encontrou seu Pedrico – e a bomba – enquanto percorria o vale buscando encontrar vestígios do uso de armas químicas após localizar documentos franceses relatando bombardeios de Napalm na região. Encontrou 12 testemunhas dos bombardeios e foi levada por moradores a locais onde ainda se vê crateras feitas pelas bombas atiradas na área.
Procurada pela reportagem, a Força Aérea Brasileira limitou-se a dizer, através de sua assessoria de imprensa: “não temos registros sobre os fatos em tela”.
Segundo o relatório escrito pelo comandante do II Exército, general José Canavarro Pereira – e mantido em segredo até o ano passado – a FAB participou ativamente da “Operação Registro” através da 1ª Força Aerotática comandada pelo Brigadeiro Hipólito. No dia 20 de abril foram enviados 4 helicópteros, dois deles com poder de fogo, e 4 aviões T-6 “armados”.
O relatório -menciona ainda aviões B-26, sem especificar o número. Foram eles que se realizaram os bombardeios na região, sem dar nenhuma proteção aos camponeses. A única medida de segurança adotada foi proibi-los de entrar na floresta onde estavam os roçados, a caça e o palmito. “O Exército, eles vieram de carro primeiro”, lembra o sitiante Nelson Vieira, hoje com 68 anos, que ajudou a guiar os soldados pelas trilhas na mata.
— Então pra nós aqui eles falaram: ‘Ninguém vai pro sítio. Não vão pra lá que o negócio nós vamos queimar esse mundo aí, porque nos vamos pegar esse povo. Se vocês tiverem lá também vocês vão morrer'.
“Foi uma guerra mesmo”
Adilson Vieira Alves tinha oito anos quando aconteceu a “Operação Registro”. Lembra com exatidão impressionante da primeira vez que viu os monomotores da FAB:
— A gente tava carpindo uma roça de alho bem em cima do morro, meus pais trabalhando e eu brincando. Ai comecei a observar no horizonte uma formação, parecia que era urubu mas não era. Comecei a escutar o barulho do helicóptero, tu tu tu tu, aí comecei a falar pra eles, ‘olha aquelas coisas lá, não é passarinho não’; e o barulho diferente que a gente não era acostumado. Aí veio essa formação do helicóptero, sobrevoou, passou por cima da gente, meu pai falou ‘acho que é coisa grave, é da polícia, acho melhor nós ir embora’. Passaram bem baixinho e logo em seguida vieram os aviões.
Aí os aviões fizeram já esse rasante, e já começaram a jogar bomba, nesse mesmo dia. A gente via que eles faziam assim e começavam a descer. Parecia ovo que eles soltavam… Aí a gente escutava o barulho do estrondo… E não foi um dia só, foi mais de um dia, depois teve outras vezes que eles vieram de novo.
Seu irmão mais velho, Oscar – que tinha na época 20 anos – completa:
— Era um botijão grande que caía, explodia. Era perigoso aquilo, fazia um estrago, cortava árvore dessa grossura, arrancava… Você tá vendo negócio vindo lá de cima, que não tem um lugar certo de cair, aí nos passemos muito medo daquilo, que se um avião deles joga um tanto de coisa lá de cima quem vai saber onde vai cair né? Aí foi a pior parte que nós passemos. Era uma guerra mesmo.
A história que está escrita
É difícil precisar exatamente durante quantos dias as áreas vizinhas ao rancho dos Vieira Alves foram bombardeadas, ou a quantidade exata de bombas que foram lançadas ali.
O mesmo relatório secreto do II Exército relata que a missão maior da FAB era a “inquietação do inimigo através de bombardeios e tiros demetralhadoras”. Mas é econômico ao detalhar os ataques aéreos: no dia 30 de abril de 1970 relata apenas que “a partir de 1030 horas iniciou-se o bombardeio da área com os T6 e B26”; no dia 4 de maio registra que “a partir das 1200 a I FAT bombardeou o centro da área”.
Já no dia 28 de abril, porém, uma terça-feira, o Jornal do Brasil estampava a manchete: “Exército fecha cerco a reduto da guerrilha”. Na reportagem da página 19 relatava: “Desde sexta-feira, aviões da FAB estão lançando bombas incendiárias sobre pontos da floresta na região do Vale do Ribeira onde estariam cerca de 20 guerrilheiros pertencentes à Vanguarda Popular Revolucionária (…).
Nos bombardeios, realizados principalmente na área onde se localizam jazidas de minérios, em Cajati, distrito de Jacupiranga, aviões da FAB estariam despejando grande quantidade de Napalm, gasolina gelatinosa incendiária. Os bombardeios começaram na tarde de sexta-feira [dia 24], depois que as forças governamentais conseguiram determinar a área provável da localização dos guerrilheiros, levantada por grupos de reconhecimento dos quais estariam participando civis conhecedores da floresta.
A utilização de bombas incendiárias seria a única fórmula encontrada pelos militares para fazer com que os guerrilheiros deixem os seus refúgios, que são de acesso difícil”.
A reportagem repercutiu internacionalmente e no dia seguinte o jornal americano Los Angeles Times publicou a matéria: “Napalm usado em local de esconderijo de rebeldes brasileiros”, dizia o título. O que rendeu queixas dos militares no “Relatório Sucinto da Operação”: “O sigilo das operações foi mantido, impedindo-se a imprensa de penetrar na área, o que não impediu que alguns jornais publicassem informações sobre as operações, mas o DST [destacamento] não tinha atribuição para censurar artigos de jornais em São Paulo, Paraná e Guanabara [Rio de Janeiro]”.
Do outro lado da caçada, o sargento José Araújo Nóbrega, um dos oito comandados de Lamarca que procuravam escapar do cerco militar, observava de longe as bombas destinadas a eles.
— Eu não sei qual era o critério deles. Acho que eles que a imaginavam que gente tava homiziado numa região e eles bombardearam aquela região por suposição, mas a gente havia mesmo passado por ela. Houve um local lá próximo à região ali da capelinha, depois de Cajati, tem um vilarejo lá em cima no alto do morro, que próximo dele eles bombardearam. Eles imaginaram que a gente tivesse lá.
A região da Capelinha seguiu sendo vasculhada até o dia 9 de maio, quando terminou a primeira fase da Operação Registro. Durante esse período, os militares bloquearam estradas e controlaram vilarejos inteiros, impondo um rígido toque recolher. Também prenderam dezenas de pessoas, entre elas apenas dois guerrilheiros, o sargento Darcy Rodrigues e José Lavecchia, torturados diante dos agricultores da região. Depois, as forças militares seguiram o rastro dos remanescentes até o município de Sete Barras, ao sul do rio Quilombo, região habitada por diversas comunidades quilombolas no limite da atual Reserva Florestal Carlos Botelho. O relatório do II Exército aponta que “as patrulhas foram retiradas da área e a I FAT metralhou e bombardeou a área no dia 29 de maio”.
Desavisados
“Na verdade o povo tava desavisado”, resume Jonas Braz de Oliveira, então presidente da Câmara de Deputados de Sete Barras.
— O caso da bomba foi entre a Formosa e a reserva florestal [Carlos Botelho]. Lá sim foi despejado bomba mesmo. Me parece que era para intimidar só, porque numa área de terras de 300 alqueires você ficar jogando bomba, não vai pegar ninguém. Todos nós vimos. Tremia o solo lá.
Outros dois guerrilheiros que foram presos na operação, Edmauro Gopfert e o sargento Nóbrega, perderam-se do grupo e foram apanhados nos dias 10 e 11 de maio, bem antes do último bombardeio registrado. No dia 31 daquele mês os cinco membros da VPR que sobraram chegaram à estrada que liga Sete Barras a São Miguel Arcanjo, onde renderam um caminhão do Exército e conseguiram escapar do cerco fugindo em direção a São Paulo – antes, eles mataram um policial, o tenente Alberto Mendes Júnior, num episódio que ficou tristemente notório. Lamarca só seria encontrado – e executado – no ano seguinte, no interior da Bahia.
Mas, apesar do fiasco da “Operação Registro”, o general José Canavarro Pereira escreveu no relatório final: “Conseguimos, de modo magnífico, realizar uma positiva integração do Exército, Aeronáutica e Marinha, reforçando a confiança mútua já existente entre nós. Parece-nos que a Operação Registro deixou um saldo francamente favorável”.
O adido militar francês sabia de tudo
Os adidos militares franceses participavam das reuniões do Estado Maior do Exército e tinham acesso privilegiado às operações militares, segundo arquivos secretos abertos depois de 30 anos na França. Eram amigos e conselheiros dos militares brasileiros, principalmente durante os anos mais duros da repressão – o caso mais notório é do general e instrutor de tortura Paul Aussaresses, conhecido como “o carrasco de Argel”.
Assim, enquanto o II Exército tentava distanciar os jornalistas brasileiros do palco dos acontecimentos, o adido Yves Boulnois tinha acesso livre e acompanhou a Operação Registro com muito interesse durante um mês. Em seu informe ao Ministério de Defesa francês, escrito em maio de 1970, descreve tudo o que pôde observar no terreno, incluindo técnicas militares e o material utilizado, já que um dos objetivos dos adidos era vender material bélico da indústria francesa.
No documento secreto de 1970, ele descreve: “Unidades do Exército fecharam a zona entre as cidades de Cananeia, Eldorado Paulista, Registro e Iguape (cerca de 2500 km2) para realizar buscas enquanto as unidades aeronavais bombardeavam com explosivos e napalm as zonas menos accessíveis e ajudavam as tropas terrestres com helicópteros equipados com armamentos. A costa estava monitorada pela Marinha enquanto a Polícia Militar controlava todos os veículos e verificava a identidade das pessoas”.
Antes das operações reais, presenciadas por Boulnois, pelo menos 25 adidos militares estrangeiros assistiram, a bordo do Porta-Aviões “Minas Gerais”, uma demonstração do 1º Grupo de Aviação Embarcada com bombardeios de napalm feitos por sete aviões P-16, bimotores destinados à ação anti-submarina, no trajeto entre Rio de Janeiro e Cabo Frio, de acordo com o Jornal do Brasil.
FAB exibia nossas bombas de Napalm
Mas não foi essa a primeira demonstração de uso napalm pelos militares brasileiros; na verdade, as bombas incendiárias eram usadas em diversas exibições aéreas levadas a cabo pela Aeronáutica. Assim, no dia 24 de março de 1970, em cerimônia presidida pelo Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Márcio de Souza e Melo, na abertura das atividades da 2ª Força Aerotática, na base de Santa Cruz (RJ), aviões de caça tipo F-8, TF-7 e TF-33 fizeram bombardeios com tiros terrestres e bombas de napalm, segundo outra reportagem do Jornal do Brasil. Em 19 de outubro do mesmo ano, a FAB fez um “show aéreo” que incluiu um bombardeio simulado na Base Aérea de Fortaleza em comemoração à “Semana da Asa”, atingindo as praias de Mucuripe, Náutico e Diários.
Em 1971, discutia-se abertamente o uso de napalm pela Polícia Federal para erradicar plantações de maconha, segundo informações passadas por fontes militares ao Jornal do Brasil. O caso virou polêmica. Em junho, o diretor-geral da Polícia Federal, o general Nilo Canepa, afirmou em entrevista coletiva que “a destruição maciça das plantações seria um grande passo para a erradicação do mal”. Porém, disse, haveria a dificuldade de serem localizadas com exatidão as plantações. O debate inspirou até mesmo um quadrinho de Henfil.
Meses depois, em outubro de 1971, o JB noticiava que aviões da base aérea de Santa Cruz, no Rio, apoiaram uma operação da policia militar fluminense à caça de uma quadrilha de assaltantes. A “movimentada caçada contou com a utilização de aviões da FAB da Base Aérea de Santa Cruz, que lançaram bombas napalm onde eles estavam escondidos”, dizia a reportagem de 16 de outubro.
O uso de Napalm, naquela época, estavam em voga, segundo levantamento do pesquisador americano Robert Neer no livro “Napalm, an American Biography” (Napalm, uma Biografia americana) publicado pela Universidade de Harvard. Bombardeios de Napalm foram feitos em setembro de 1975 contra guerrilhas no Peru, e em março de 1967 contra a guerrilha de Che Guevara na selva boliviana (pelo menos 150 bombas de 100 e 50 quilos foram fornecidas pelo governo argentino, segundo um informe secreto do Centro de Informações do Exterior, o CIEX ).
Foi apenas em 9 de junho de 1972 que a legendária foto de crianças queimadas por Napalm no Vietnam correu o mundo, gerando uma reação mundial.
No mesmo ano, segundo documentos revelados pela Comissão Nacional da Verdade, a Força Aérea Brasileira bombardeara três áreas com Napalm em repressão à guerrilha do Araguaia. A denúncia já havia sido feita pelo jornalista Luiz Maklouf Carvalho.
Questionada sobre como eram obtidas as bombas usadas pela FAB e quem as fabricava, a assessoria de imprensa respondeu que “por questão de segurança nacional, as informações sobre arsenal são classificadas e, portanto, não podem ser disponibilizadas”.
“O napalm não é muito difícil de produzir, pode ser feito de gasolina ou outra substância baseada em petróleo transformada em gel por diversos químicos diferentes”, explica Robert Neer. O incêndio é provocado pela mistura do napalm com fósforo branco, detonada por um explosivo no interior da bomba. “Nos anos 70 os Estados Unidos haviam tornado pública a fórmula, e portanto muitos exércitos a usavam. Mesmo assim, a fabricação de napalm estava sujeita à patente, que pertence ao governo americano”. A pressão internacional levou – apenas em 1980 – à proibição do uso dessas bombas em áreas civis pela Convenção da ONU sobre Armas Convencionais. O Brasil só assinou a convenção em 1995. Em áreas de combate, elas ainda são permitidas pela legislação internacional.
Como se trata de um petroquímico, explica Robert Neer, o napalm queima prolongadamente e a altas temperaturas – fazendo um grande estrago imediato, mas deixando poucos vestígios com o passar do tempo. “A maior parte do material é queimado, então não há uma contaminação ambiental. Mas para as pessoas que são afetadas diretamente, os efeitos são terríveis, porque o napalm queima até os ossos”.
“Esses fragmentos das bombas confirmam o que sempre foi dito, houve bombardeio em uma região tão perto de São Paulo, fizeram um bombardeio indiscriminado, contra a população local, inclusive”, diz Ivan Seixas, coordenador da Comissão da Verdade Estadual da Assembleia Legislativa de São Paulo.
— Para nós que estamos reparando a verdade é muito importante contar essa história, por mais crua que seja.
No vale do Ribeira, sem um reconhecimento oficial do Estado brasileiro, os moradores continuam no escuro sobre o perigo a que foram expostos – e sobre o teatro de guerra do qual involuntariamente fizeram parte. Até alguns anos atrás, bombas encontradas no meio da floresta ainda eram usadas pela população desavisada.
Uma delas acabou virando enfeite ao lado da cama de Silvio Moreira, o Silvinho: “Ela tava bem enferrujada, não dava pra saber a cor, só a cor do ferro; e tinha um pó branco, parecido com calcário… Peguei aquele material que tava dentro, coloquei fogo para ver se não explodia. Daí de lá eu tinha um carrinho velho, ai trouxe ate em casa, ai eu guardei acho que uns 2 meses, pessoal fala que guardei debaixo da cama, mas deixei num canto, no quarto mesmo”, lembra.
Quem conta sobre outra bomba, que durante meses virou banco à beira do caminho, é Zé Vieira, o melhor contador da Capelinha.
— Foi achado duas ali na virada do seu Mané, que ia pro Aleixo. Eles puxaram bem pra a beira da estrada assim, arrastaram, e aí passava nego que ia trabalhar pra lá, sentavam-se nela, na beira da estrada. E nego bêbo, sabe? Chegava lá sentava em cima e acendia um cigarro pra ver se pegava fogo aquilo ali, se pegava fogo aquela desgraça e não pegava, ia embora, êeh!.
A mesma bomba teria sido detonada “pelas autoridades”, mas ninguém sabe precisar direito quando ou por quem. E assim, a História vai virando causo, mais um dos muitos causos da região.
Lembranças do cerco
“Maltrataram” muita gente. “Judiaram” do seu Maneco. Com essas palavras os moradores da Capelinha lembram da atuação do Exército durante o cerco militar que mobilizou quase 3.000 homens para capturar militantes da VPR. “A gente ficou com medo, um pouco.
E o pior que ficou com medo que a polícia prendeu a gente, não deixou a gente sair”, conta Oscar Vieira, de 65 anos, cuja história não está registrada em nenhum documento oficial. Ele foi uma das dezenas de pessoas detidas pelos militares durante a primeira fase da operação. Ali, os militares implantaram um verdadeiro estado de exceção. Impediram os moradores de circular livremente pela floresta a menos que tivessem autorização por escrito, e decretaram um “toque de recolher” durante a noite. Os que se atreviam a sair sem permissão eram presos.
— Eu fui pego na estrada aqui, na rua. Não tava com arma, com nada. Me pegaram como bandido, daí eu fiquei assustado com aquilo. Ficaram instigando, fazendo pergunta. Fizeram desfeita com a gente, né? Humilharam. Chamaram de vagabundo, ladrão, bandido.
Seu Oscar, que por dois dias foi cativo do Exército no acampamento militar montado na Vila Tatu.
— Quando eles pegavam a pessoa, eles punham um guarda e não deixavam ela sair. Eram três guardas, dois de um lado e um de outro, tudo armado”. Antes de chegar até o acampamento, na beira da estrada ele sofreu mais “humilhação”: Apontavam a arma e mandavam calar a boca, atiraram por cima de mim, pra ver se intimidavam. Deram mais ou menos uns 60 tiros de pistola por cima da minha cabeça pra ver se me intimidavam. A casca da bala caia em mim.
A ação dos militares sobre a população é ainda hoje um dos maiores fantasmas que rondam a história do cerco militar. Para não deixar escapar os guerrilheiros, as detenções eram indiscriminadas, como bem relatou o Jornal do Brasil no dia 5 de maio: “no 17º dia de operações, destinadas a prender os terroristas que pretendiam treinar guerrilhas no vale da Ribeira, já foram detidas mais de 120 pessoas, das quais apenas 23 continuam presas”.
Um dos presos era o ex-prefeito de Jacupiranga, Manoel de Lima, proprietário do terreno adquirido pela VPR para implantar campos de treinamento. Figura muito querida na região, seu “Maneco” foi submetido a sessões de tortura durante vários dias. Mas, além dele, não existem mais informações sobre as prisões realizadas, nem sobre quem foi mantido preso. Àquela altura, apenas dois dos guerrilheiros, o sargento Darcy Rodrigues e José Lavecchia, haviam sido efetivamente capturados.
Nelson Vieira, que chegou a ser mateiro do Exército na busca, ainda se lembra do dia em que os dois prisioneiros chegaram ao acampamento militar.
— Eles chegavam aqui no pátio, tudo rasgado, aí ponhavam eles no chão assim algemado, com a cara no cascaio ali, ‘ó peguemos mais um aqui’. E iam lá as polícia, pegavam sanduíche e vinham do lado do cara e falavam pra ele, ‘quer um lanche?’, ele virava a cara, chacoalhava a cabeça assim, e falavam ‘táqui o lanche docê’, e péeim com aquela botinona na cara dele. Ai eles comiam o lanche. Dava dó. Era demais a judiação. Batiam demais. Não sei se deram um fim nesse povo.
As torturas sofridas diante dos moradores foram relatas pelo sargento Darcy Rodrigues no livro “Sargento Darcy, Lugar Tenente da Lamarca”. Antes de chegar à Capelinha, conta, os dois presos foram desfilados nas ruas de Jacupiranga. “Nos fizeram desfilar uns 200 metros pela cidadezinha, sendo que íamos praticamente nus, de ceroulas e os corpos repletos de marcas, visíveis a olho nu, das torturas que havíamos sofrido, em uma cena grotesca e indigna”.
No acampamento militar a tortura prosseguiu. “Éramos mantidos amarrados, deitados ao relento, com os braços e as pernas abertos, estaqueados pelos tornozelos e pelos pulsos. (…) Claro que não podíamos nos mover e nem ao menos virar o corpo. Nessa condição humilhante, degradante para o ser humano, passamos dias imobilizados, sob sol e chuva – na região chove muito, quase que diariamente – expostos aos insetos e a todas as variações de temperaturas”.
Depois de 20 dias, o Exército levantou o acampamento e foi embora de repente, sem dar nenhuma explicação. Seu Nelson resume bem a sensação que ficou pra quem é de lá.
— O prefeito sofreu… Ih, deram choque elétrico para ele contar, mas ele não sabia de nada. Ninguém sabia, porque como vai saber o que eles (a guerrilha) queriam fazer aqui né? Agora o Exército soube direitinho que era outro país que tava tentando entrar aqui e ia atropelar nós daqui.Ali na Capelinha, a história do Brasil ainda é aquela dos idos de 1970.