Americanos com roupa e armas militares miram em grupos de manifestantes e tentam dispersá-los com gás lacrimogênio e balas de borracha.
Esta cena não se passou no Iraque ou no Afeganistão, mas em Ferguson, um subúrbio da cidade de San Luis, no estado do Missouri, nos Estados Unidos, que tem pouco mais de 21 mil habitantes.
A cidade vive protestos diários desde a morte no último sábado de Michael Brown, um jovem negro de 18 anos, por tiros de um policial.
Por mais que políticos, entre eles o presidente Barack Obama e o governador do estado, Jay Nixon, peçam calma à população, a reação enérgica da polícia para conter os distúrbios não parece não contribuir parareduzir a tensão.
As imagens de policiais no alto de veículos militares com suas armas apontadas para manifestantes com os braços ao alto foram amplamente compartilhadas nas redes sociais e gerado um grande debate em torno da militarização da polícia no país. Isso porque esse cenário não ocorre apenas em Ferguson.
Processo de décadas
Organizações como a União Americana de Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) denunciam que a militarização da polícia americana vem ocorrendo há decadas.
"Nos anos 1980, o governo federal deu acesso aos departamentos locais de polícia a milhões de dólares para o combate às drogas", explica à BBC a advogada Kara Dansky, autora do principal relatório da ACLU, "War comes home" (A guerra chega em casa, numa tradução livre).
Dansky acrescenta que esse orçamento foi usado, "de forma injusta e desproporcional", em ações empreendidas em comunidades de minorias raciais.
"Além disso, no começo dos anos 1990, o Congresso autorizou o Departamento de Defesa a dar às polícias locais acesso a seu arsenal militar", diz ela.
Isso ocorreu com a aprovação da lei de Autorização de Defesa Nacional (NDAA, na sigla em inglês) e foi reforçado com a criação do Departamento de Segurança Nacional depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, com a destinação de outros milhões de dólares para as polícias locais e estaduais.
Essa estratégia custou desnecessariamente muitas vidas, segundo a ACLU.
"Comunidades não são zonas de guerra, e não acreditamos que os policiais devam tratar as pessoas que vivem nelas como inimigos. Em nossa investigação, identificamos o uso desnecessário de armas e táticas paramilitares que punham as pessoas em risco. Além disso, isso gera um impacto injusto e desproporcional sobre minorias raciais."
Questão racial
No caso de Ferguson, onde mais de 60% da população é negra e 50 dos 53 policiais são brancos, a questão racial também ganha um papel de destaque.
O uso de força excessiva pela polícia de Ferguson parece ser tão exagerado que o próprio Obama dedicou parte do tempo de seu pronunciamento nesta sexta-feira para falar do conflito social nesta comunidade.
Mesmo tendo dito que a polícia de Ferguson têm de enfrentar ações criminosas desde a morte de Brown, Obama também destacou que "não há desculpa" para o uso excessivo de forma contra manifestantes pacíficos.
Por sua vez, o procurador-geral dos Estados Unidos, Eric Holder, declarou que o uso de veículos e equipamentos militares envia uma "mensagem confusa".
Holder admitiu que a polícia local do Missouri aceitou uma oferta do Departamento de Justiça "para receber assistência técnica, com o objetivo de ajudar a controlar multidões e a manter a segurança pública sem apoiar-se em demonstrações desnecessárias de força extrema".
A senadora do Missouri Claire McCaskill, do Partido Democrata, pediu a "desmilitarização da polícia de Ferguson" e qualificou a reação das forças de segurança como "um problema em vez da solução".
"Claro que respeito o trabalho das forças de ordem para garantir a segurança pública, mas meus eleitores têm o direito de protestar pacificamente, e a polícia precisa respeitar e proteger esse direito", acrescentou McCaskill.
Ameaça à segurança pública
Diante de tantas críticas, o chefe de polícia de Ferguson, Thomas Jackson, justificou tal reação como o que ele descreveu como uma ameaça para a segurança pública.
Segundo Jackson, os saques e distúrbios que estão ocorrendo na comunidade devem ser combatidos. Além disso, ele esclareceu que a patrulha das ruas está sendo feita pelas equipes de táticas especiais, a SWAT, e não por políciais comuns.
Dansky, da ACLU, respondeu a Jackson dizendo que a SWAT faz parte da mesma categoria de forças de ordem a qual integram políciais comuns.
"E nos preocupa a militarização de todas as forças de aplicação da lei", disse ela. "Não adianta dizer que não se trata da polícia, porque temos visto a SWAT se envolver inapropriadamente em certas situações."
Para Dansky, "a polícia de Ferguson deveria ter suavizado a situação, mas deu uma resposta desnecessária e agressiva, militar, que teve como efeito a escalada da violência".
"A polícia tinha a obrigação de reduzir a tensão desde o momento em que Michael Brown morreu e isso não foi feito."