O caso da médica cubana que desistiu do programa Mais Médicos e procurou refúgio no gabinete do deputado federal Ronaldo Caiado nesta quarta-feira (05/02) pode criar um imbróglio entre Brasil e Cuba. A solicitação chega justamente no momento em que os dois países têm estreitado cada vez mais seus laços políticos e econômicos, e uma decisão favorável à médica poderia gerar turbulências nessa relação.
O pedido de Ramona Matos Rodriguez para receber asilo no Brasil também poderá colocar em xeque o próprio programa Mais Médicos – uma das principais vitrines eleitorais da presidente Dilma Rousseff –, já que abriria um precedente para que outros profissionais cubanos fizessem o mesmo pedido.
"Dificilmente o Brasil vai dar o asilo à médica cubana", afirma Luiz Fernando Martins Kuyven, professor de direito internacional da Universidade Mackenzie. "O governo brasileiro está muito alinhado com o governo cubano e isso colocaria em risco não só o programa Mais Médicos como também as relações entre os dois países."
A parceria cresce a todo vapor. Enquanto médicos cubanos desembarcam no Brasil, a ilha caribenha recebe produtos agrícolas brasileiros. Ao mesmo tempo, empresas como a Odebrecht entram no mercado cubano para modernizar a estrutura sucroalcooleira e realizar obras de infraestrutura.
Já o BNDES financia diversos projetos do governo da ilha caribenha, como o Porto de Mariel, que teve sua primeira fase inaugurada em 27 de janeiro deste ano pelos presidentes Dilma Rousseff e Raúl Castro. A Odebrecht participou da construção do porto.
Temor de deserções
Rodriguez, de 51 anos, disse que abandonou o programa ao saber que outros médicos estrangeiros contratados para trabalhar no Brasil recebem 10 mil reais por mês, sendo que os cubanos, segundo ela, ganham 400 dólares (cerca de 960 reais). Outros 600 dólares são depositados numa conta em Cuba e liberados aos profissionais após o término do trabalho no país. A médica atuava num posto de saúde da cidade de Pacajá, no Pará.
Depois do pedido da médica, Kuyven disse ser provável que haja uma enxurrada de pedidos de asilo de outros médicos cubanos que atuam no programa do governo federal, que tem o objetivo de aumentar a presença de profissionais no interior do país. Cerca de 7.400 médicos cubanos foram selecionados para atuar no país, num universo de 9.549 médicos inscritos.
"Todos já sabiam desse risco. Alguns sempre tentam pedir asilo", diz Kuyven, do Mackenzie. "Tentaram limitar esse risco ao reter a maior parte do salário desses profissionais e liberá-lo somente no retorno à ilha caribenha. Essa foi a forma encontrada de pressionar a pessoa a voltar a Cuba, de tentar impedi-los de solicitar asilo em massa. Mas isso não vai ser suficiente para limitar os pedidos."
Não é a primeira vez que o Brasil vai lidar com dissidentes cubanos. Em 2007, o pugilista Erislandy Lara pediu asilo ao Brasil durante os Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro. Ele tentou escapar da delegação de Cuba, mas foi detido alguns dias depois e devolvido ao governo da ilha caribenha. Na época, o governo federal afirmou que Lara não tinha pedido para ficar no Brasil.
Em entrevista para a mídia brasileira, o presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), Paulo Abrão, disse que, ao ingressar com o pedido de refúgio no Brasil, a médica tem as mesmas garantias e isonomias de qualquer cidadão brasileiro até o julgamento do seu processo. A médica pode ficar no país até decisão final sobre o asilo.
Assim, segundo ele, a médica poderá ter documentação no Brasil, como CPF, carteira de trabalho e abrir conta bancária. Mas não poderá exercer a atividade de médica, porque, ao ser descredenciada do programa Mais Médicos, perderá o registro provisório para atuar. O processo deverá ser avaliado a partir de março e não tem data para terminar.
Legislação é clara quanto a refugiados
Especialistas ouvidos pela DW afirmam que a lei 9.474, de 1997, é bem clara ao definir quando a pessoa é refugiada. De acordo com ela, é reconhecido como refugiado todo indivíduo que "devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país".
Para Pietro Alarcon, professor de direito constitucional da PUC-SP, a médica cubana não apresenta temor de perseguição política, mas o sentimento de ter sido enganada pelo governo cubano em relação ao salário que recebe como participante do programa Mais Médicos.
"Portanto, o requerimento não poderá ser baseado nisso, e por essa razão, parece-me que o Conare não teria condições de oferecer uma perspectiva favorável ao requerimento. Mesmo que ela seja extraditada para Cuba, isso não presume, necessariamente, que haverá algum tipo de perseguição", explica Alarcon.
Kuyven, do Mackenzie, avalia que ela poderá receber asilo no Brasil caso o Conare avalie que a médica corre risco de integridade física e seja perseguida política ao retornar a Cuba. Ele afirma, ainda, que a política de asilo no Brasil não é muito clara, o que torna difícil prever a posição do governo federal.
"Se fosse em condições normais e Cuba não estive envolvida, o Brasil concederia o asilo. Mas, nessa situação, acredito que ela dificilmente terá asilo. Se ele for negado, acabará repercutindo e limitando novos pedidos de cubanos", afirmaou Kuyven. "Na minha visão, o Brasil, usando o bom senso, deveria dar o asilo, porque ela e a família dela não vão conseguir ter uma vida normal depois disso tudo."