Eduardo Siqueira Brick
Universidade Federal Fluminense
Por mais paradoxal que essa afirmação possa ser, o fato é que essa decisão não será importante para a defesa do Brasil nos próximos 20 anos, mas sim, para a defesa daqui a 30 a 50 anos. Essa afirmação se baseia na baixa probabilidade de conflitos envolvendo o Brasil nesse horizonte temporal mais próximo e, também, caso um conflito ocorra, na alta probabilidade que ele envolva oponentes com capacidade militar muito superior à do Brasil, o que tornaria o uso dessas armas de eficácia marginal.
Nada do que o Brasil faça hoje em termos de defesa será suficiente para se opor às possíveis ameaças atuais. O país simplesmente não tem recursos humanos, tecnológicos, industriais e financeiros para isso. A única opção hoje seria uma guerra de resistência e, para isso, nossas armas mais modernas, atuais ou dos próximos 10 a 20 anos, seriam inúteis. Portanto, o planejamento de hoje deve visar, prioritariamente, um horizonte mais longínquo.
Portanto, não importa se o Gripen não é uma das mais eficazes armas existentes hoje. O que importa é que essa aquisição pode ser um importante instrumento para o Brasil se capacitar para conceber e desenvolver aeronaves de combate amanhã. Essa é a verdadeira questão.
Não adianta apenas fabricar (um eufemismo para montar, usando componentes majoritariamente importados) sistemas de defesa no país. Isso não agrega valor e só aumenta os custos. Essa opção só teria real utilidade se fizesse parte de um processo de capacitação em longo prazo. Foi o que foi feito no passado na Embraer com os projetos do Bandeirante, Xavante e AMX. Esses produtos não são importantes em si mesmos. A importância desses programas foi a capacitação que a Embraer adquiriu. Isso é o que tem valor para o presente e o futuro. O projeto Gripen pode (Coloquei no condicional) ser um passo a mais nessa evolução.
O assunto é extremamente amplo e complexo, mas existem alguns pontos críticos, que deveriam servir de fundo para qualquer discussão ou análise sobre defesa e aquisições de sistemas de defesa. Para simplificar a discussão, apenas 3 pontos-chave são analisados a seguir, mas existem outros.
1. A defesa nacional na era pós-industrial (nos dias de hoje e, cada vez mais, no futuro) depende de dois instrumentos fundamentais: as Forças Armadas (FFAA) e a Base Logística de Defesa (BLD).
A construção de qualquer uma delas é uma tarefa de décadas.
Ou seja, não se pode justificar a BLD em termos econômicos e, sim, em termos estratégicos. Os impactos na economia existem, podem ser extremamente importantes, mas não são eles que justificam a manutenção de uma BLD. É o mesmo argumento usado para a manutenção de FFAA. Sua existência não se justifica por motivos econômicos, embora eles também existam e sejam relevantes (A possibilidade de ditar as regras de governança mundial obviamente tem enormes impactos econômicos e isso só pode ser feito por quem tem poder militar).
Acontece que, no mundo de hoje, a BLD é um instrumento da defesa, tão ou mais importante do que as próprias FFAA. Isso devido à aceleração do desenvolvimento tecnológico, que causa obsolescência rápida de qualquer produto de defesa. Portanto, não é sensato (nem financeiramente exequível) manter grandes estoques de produtos de defesa (Exceto, evidentemente, se houver iminência de conflito) mas sim, de capacidade industrial para inovar continuamente.
No Brasil existe um desequilíbrio histórico entre a consolidação e sustentação das FFAA e da BLD, com claro prejuízo desta. Portanto, não se deve tomar decisões sobre aquisição de sistemas de defesa sem levar em consideração a concomitante necessidade de capacitação tecnológica e industrial para concebê-los, desenvolvê-los, fabricá-los e mantê-los no Brasil. O Plano de Articulação e Equipamentos de Defesa (PAED) ainda não considera, de forma uniforme, essas duas necessidades (Existem diferenças marcantes entre as propostas das três Forças, pelos motivos que serão explicitados abaixo).
Permanece, em muitas situações, a prioridade com aparelhamento de meios em detrimento da capacitação industrial.
2. A Estratégia Nacional de Defesa define, muito apropriadamente, que a construção e sustentação de uma BLD adequada às necessidades brasileiras é um dos seus eixos fundamentais. Isto significa uma mudança radical do paradigma anterior, de grande descaso com a BLD, apesar de algumas histórias de sucesso, como é o caso da Embraer.
Para que essa "política" possa sair do papel duas coisas são fundamentais:
a) Orçamento de defesa adequado – depois da promulgação da END o orçamento de defesa brasileiro diminuiu, em termos proporcionais, o que é um contrassenso. Além disso, apenas um percentual muito reduzido do orçamento é dedicado a desenvolvimentos e aquisições (cerca de 5%), enquanto que, por padrões internacionais, o necessário seriam de 20 a 50% (No caso do Brasil, em função do longo atraso, certamente valores próximos do limite superior). Como um aumento significativo do orçamento parece impossível em médio prazo, a única alternativa exequível é reduzir efetivos e aumentar a modernização dos meios (ou seja, desenvolver e adquirir novos meios na BLD brasileira). Evidentemente que a alternativa de não fazer nada também existe e tudo permanecerá como está.
b) Governança adequada – quantidade e qualificação de recursos humanos e estrutura organizacional com atribuição clara de autoridade e responsabilidade pelo resultado (Pela aquisição de sistemas de defesa e consolidação e sustentação da BLD).
No caso de recursos humanos, a necessidade monta a vários milhares de profissionais, principalmente engenheiros, altamente qualificados e experientes em definição de requisitos e especificações, teste e avaliação de sistemas, gestão de projetos complexos, negociação de contratos, entre outras coisas (são dezenas de milhares de profissionais nos casos dos EUA, França e UK, mas também na Índia, China, etc..). O total de pessoas
hoje no MD é de cerca de 1000, para tudo o que o MD tem que fazer, inclusive gerir aquisições e a BLD.
Com relação à estrutura organizacional a situação do Brasil é caótica. Existem três ministérios com responsabilidades sobre a BLD (MD, MDIC e MCTI). Além disso, dentro do MD, cada Força funciona como se fosse um ministério independente. Portanto, na prática, existem 6 políticas públicas relacionadas à BLD . Uma estrutura como essa é única no mundo e claramente ineficiente e disfuncional. A estrutura mais comum é a existência de um único órgão, dentro do MD, com total responsabilidade pela aquisição de sistemas de defesa e sustentação da BLD. Na França, inclusive, existe uma quarta força, constituída de engenheiros, para cuidar exclusivamente deste assunto (Seus membros NÃO são subordinados às Forças Armadas e têm carreira independente).
Artigo discutindo essas questões está disponível neste portal.
Não se pode esquecer que o FX é apenas um projeto de cerca de 11 bilhões de reais, em um programa de 1 trilhão de reais (Esse é o valor estimado para o PAED, em 20 anos). Os desafios de gestão serão muito maiores.
Com a atual estrutura de governança da BLD brasileira, o país corre um sério o risco de sofrer um "apagão de gestão" se o orçamento aumentar e o PAED realmente deslanchar.
Mas essa parece ser uma possibilidade muito remota. O mais provável é que o MD tenha
que reduzir suas expectativas e rever (para baixo) o PAED.
Aliás, é questionável um planejamento que não leva em consideração nem os recursos orçamentários exequíveis nem os recursos humanos (Em quantidade e qualificações) existentes.
É claro que existem avanços, mas eles são insuficientes em função das necessidades e/ou dos objetivos que foram definidos na END.
3. Do ponto de vista de desenvolvimento econômico e social, a BLD, apesar de sua finalidade precípua não ser essa (isso tem que ser ressaltado!!), é instrumento importantíssimo de política industrial, por vários motivos:
a) Atua no limiar do desenvolvimento tecnológico;
b) Políticas industriais de conteúdo nacional para defesa são necessárias por questões de garantia de suprimento de itens críticos (que são cerceados pelos países que detêm essas tecnologias) e não oneram a economia como um todo, como no caso das políticas pretéritas de informática e recente de conteúdo nacional para a indústria de petróleo, porque todo o custo é bem definido e está encapsulado no orçamento de defesa.
c) A capacitação industrial construída têm uso dual (Vide exemplo da Embraer que, após décadas procurando se capacitar com produtos de uso militar, conseguiu desenvolver jatos comerciais e ser importante ator no mercado internacional de produtos civis). Esse pode ser um dos principais benefícios da escolha do Gripen – a ampliação da capacitação industrial e tecnológica, não só da Embraer, mas de muitas empresas de sua cadeia produtiva, em produtos cuja tecnologia o Brasil ainda não domina.
Enfim, esses são alguns pontos importantes que não foram sequer mencionados pelas inúmeras matérias publicadas pela mídia nos dias que se seguiram ao anúncio da decisão brasileira, em 18 de dezembro de 2013.