DIEGO AMORIM
Na televisão sem foco e sem volume, imagens de filmes e novelas repetidas tentam anestesiar quem aguarda atendimento no posto da Receita Federal em Brasília. No balcão onde, em tese, o cidadão deveria ser bem informado, servidores públicos demonstram pouca paciência.
“Quem falou para vir aqui? Vou entrar no site e provar que não é aqui”, dizia um deles, irritado, diante de um acuado senhor que só estava obedecendo à orientação recebida anteriormente por outro funcionário do Estado.
As informações erradas — ou, no mínimo, incompletas — e a intolerância por parte de quem deveria esclarecê-las dão a impressão de que, por detrás de guichês antigos, não há disposição alguma para resolver o problema. “Tratam a gente como se fosse lixo. E se atenderem um ou mil, tanto faz”, descreve o professor Félix Alves da Silva, 59 anos, que fez a declaração do Imposto de Renda no primeiro dia do prazo e quer saber apenas por que a restituição ainda não havia sido liberada.
Para ter acesso à informação, Félix acordou às 4h a fim de fugir do trânsito pesado na saída de Valparaíso de Goiás, onde mora, e chegar antes de a Receita começar a funcionar, às 7h, como informa a folha rasgada na entrada do prédio. A mulher, Marlene, 42, levou café para amenizar a espera. Quando os portões abriram, o casal pegou a senha número 1, mas foi o quarto a ser atendido. “O Brasil precisa mesmo é ser reinventado”, diz o contribuinte, que leciona história na rede pública. São 40 anos de contribuição previdenciária, três infartos, mas até agora a aposentadoria não saiu. Félix é só mais um dos milhões de brasileiros que pagam impostos pesadíssimos ao Estado, mas quase nada recebem de volta, como mostra a série de reportagens do Correio iniciada ontem.
Retrato do atraso
Entra governo, sai governo, o brasileiro segue pagando imposto de país rico e consumindo serviços públicos de qualidade deplorável. O país tem uma das maiores cargas de tributos — administrados pelo Receita Federal — entre 30 grandes economias do mundo, mas o pior retorno à sociedade. Com uma gestão insistentemente atrasada, o Estado consegue empacar projetos, adiar planos e sufocar sonhos justamente daqueles que o sustentam. Não à toa, discussões muitas vezes acirradas — embora nunca bem-vindas — fazem parte do cotidiano de órgãos como a Receita. “Quero arrebentar tudo aqui, perdi a paciência”, resmunga o militar Alaor Antônio da Cunha, 55.
Desde 2007 — são seis anos —, Alaor vive uma queda de braço com o Fisco. Numa pasta repleta de documentos, ele carrega a decisão que confirma o direito ao ressarcimento de tributos. “Estou cansado, sabe? Cansado de explicar a mesma coisa para um monte de gente”, afirma. “Um prédio deste tamanho, tanto servidor que se diz inteligente e ninguém para resolver o meu problema. Só falam que está em andamento e me pedem para aguardar. Vou morrer e esse dinheiro vai ficar aí para eles”, desabafa.
O Correio acompanhou Alaor em uma nova tentativa de resolução do problema. Após se recusar a preencher mais um formulário, o militar foi orientado a procurar a ouvidoria da Receita. “Vai ali fora e liga. A moça que vai atendê-lo é paga para escutar seu problema”, esquivou-se uma servidora, já chamando o próximo da fila. Para chegar ao tal telefone da ouvidoria, Alaor teve de dar explicações a dois seguranças. Sem lugar para se sentar, duelou em pé por quase 10 minutos com alguém do outro ado da linha, sem sucesso.
A empresária Lucimar Magalhães não encontrou forças para questionar. Quando viu a
quantidade de pessoas para serem atendidas antes dela, caiu no choro. Era véspera de uma licitação aguardada há muito tempo. O contador, de última hora, descobriu um débito de julho deste ano com a Previdência Social, no valor de R$ 188,19. Sem o pagamento e a atualização do cadastro, Lucimar estaria fora da concorrência. “Foi um lapso meu. Mas o Estado não perdoa quando o interesse é dele. O problema é que existe um sistema e todos nós somos reféns dele: não tem outro jeito”, ressalta.
Má vontade
Nesse sistema do qual todos são escravos, prazos estabelecidos de nada valem. Em março, a Receita comunicou a Eliomar Mota da Cunha, 48, que o nome dele seria retirado do Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (Cadin) em 10 dias. Oito meses se passaram e a palavra do servidor se desfez. Eliomar preencheu dois requerimentos, foi à Receita cinco vezes e nada.
“Eles não sabem dizer o que houve. É incrível. Pedem apenas para eu esperar”, conta ele, disposto a procurar um advogado.
Com o nome no CADIN, por conta de débitos acumulados quando secretário de Esportes em Manaus — mas que já estão sendo pagos —, Eliomar não consegue a aprovação de um financiamento de um imóvel. “Já estive do outro lado do balcão e sei como é complicado. Não posso pegar o camarada pelo pescoço e mandá-lo resolver, porque não resolve. O cidadão se sente impotente”, argumenta ele, para quem o servidor carrancudo nada mais é do que reflexo do Estado.
Poder de polícia
Na cabeça de muito gestor público brasileiro, mais do que melhorar os serviços, importa
propagar o artigo 331 do Código Penal. Em quase todos os órgãos do Estado, o contribuinte se depara com a informação, geralmente em letras garrafais, de que desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela pode render multa e até dois anos de cadeia. “E o desrespeito ao contribuinte rende o quê ao servidor?”, provoca o professor de ética e filosofia da Universidade de Campinas (Unicamp) Roberto Romano.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) busca na Justiça agilizar um projeto para tentar fazer com que o Estado trate o cidadão como consumidor, tendo ele a quem recorrer de maneira mais objetiva.
O presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), João Eloi Olenike, engrossa a bandeira pela criação de canais de reclamação contra os serviços públicos e de ouvidorias institucionais.
“Já conseguimos criar o Dia Nacional de Respeito ao Contribuinte (25 de maio). Agora, falta o respeito”, comenta.
Os servidores públicos, na opinião da professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) Fátima Bayma, precisam entender, de vez, que o papel deles é servir o cidadão. “Sei que esse é um discurso antigo, mas, por enquanto, permanece sendo apenas discurso”, completa. “Alguns servidores pensam que são polícia, se acham, e fazem o contribuinte de gato e sapato na hora de atendê-lo, como se fossem autoridades policiais. E não são”, emenda Olenike.
A presença ostensiva de vigias nos postos de atendimento deveria ser motivo de escândalo, diz Roberto Romano. “Há uma desconfiança com os cidadãos. É mais fácil colocar um homem armado, pronto para fazer com que todos respeitem o artigo 331 do Código Penal”, comenta.