ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA
Há três meses no Brasil, a embaixadora dos EUA, Liliana Ayalde, 57, disse que a visita oficial da presidente Dilma Rousseff a Washington está em aberto e a data depende dela, mas fez uma advertência: que seja o mais distante possível das eleições brasileiras de outubro, para o país "não se imiscuir em assuntos políticos domésticos."
Em sua primeira entrevista exclusiva, falando em português, Ayalde foi cautelosa ao comentar a espionagem dos EUA, mas criticou o Itamaraty por ter destacado o segundo time para o almoço de despedida de seu antecessor, Thomas Shannon: "Pelo que li, acho que há maneiras melhores de comunicar as coisas positivas e negativas".
Folha – O seu empenho depende do respaldo de Washington e das respostas do seu governo ao pedido brasileiro de desculpas no caso da espionagem. Isso não evoluiu?
Liliana Ayalde – As conversas continuam, e há o compromisso do presidente [Barack] Obama de revisão profunda de tudo isso, mas não é fácil, porque participam muitas agências e vai ser direcionada não só para o Brasil, mas também para a própria audiência americana.
Esse processo já dura uns dois meses, e o presidente ordenou que quer tudo concluído antes do final deste ano.
Por que o governo pediu desculpas muito mais enfáticas à Alemanha que ao Brasil?
Não tenho uma justificativa. Mas houve também uma conversa longa com a presidente Dilma, por 40 minutos. Só que foi uma coisa privada.
Como Washington recebeu o discurso da presidente Dilma na ONU? Ela foi bem dura, não?
Foi, sim… com preocupação, sem dúvida. Era um foro de temas globais e esse tema gerou declarações muito duras, mas vamos superar isso. É um processo e temos o compromisso de falar seriamente sobre isso assim que o presidente Obama decidir o rumo.
A viagem da presidente só foi adiada ou está cancelada?
Não, não está cancelada. Foi adiada e, se a presidente se reprogramar, sei que o presidente Obama está aberto. Mas, se não se decide, se fica esperando…
A quem cabe a iniciativa?
À presidente Dilma. O convite não fechou, está pendente. Mas também é preciso ver a questão de conveniência.
A visita ao presidente da maior potência justamente em 2014, quando Dilma é candidata à reeleição, não pode interferir nas eleições aqui?
Não há nenhuma data, mas, claro, se ficar muito perto [da eleição de outubro], nós vamos recomendar que essa data não é conveniente para os EUA, para o país não se imiscuir em assuntos políticos domésticos. Qualquer coisa que façamos na embaixada, como EUA, pode repercutir no processo eleitoral. Temos de avaliar com muita cautela. Até participação minha num evento –não vou a nenhum que possa ser interpretado como tomar posição.
Como outros embaixadores [como o da Venezuela] já fizeram aqui, em reuniões do PT?
Sim, por exemplo.
É fora da regra diplomática?
Sim, sim. Até por isso me reuni com o ex-presidente Lula agora e não depois; depois ele vai estar muito ativo.
A questão da espionagem teve muito impacto em várias áreas: energia, defesa, comunicação, tecnologia da informação e o acordo de Previdência. Está tudo parado?
Não, mas diálogos de alto nível foram afetados. Seria difícil trazer uma autoridade logo após o cancelamento da visita da presidente. Não havia clima. Mas os grupos de trabalho técnicos continuam.
E os caças?
Evidentemente, queremos vender, e eu disse para o ministro [Celso] Amorim [Defesa] que não há dúvida de que consideramos a proposta da Boeing a melhor de todas. Mas é importante trabalhar a relação e há muito mais o que conversar na área de defesa.
Havia a expectativa real de que, se Dilma fosse aos EUA em outubro, ela anunciaria lá a opção pela Boeing?
Sim, havia.
O Global Entry [facilitação de entrada de empresários] voltou para a gaveta?
Isso já tinha avançado bastante e não está parado, mas diminuiu o ritmo de trabalho.
Então a sociedade paga o preço do estremecimento?
Apesar de ter problemas, a relação é incrivelmente forte. O comércio e os investimentos crescem –e não só os americanos no Brasil, mas os brasileiros nos EUA também.
Os vistos seguem crescendo?
É inacreditável. Miami passou Buenos Aires como destino número um de brasileiros. Já temos mais de 1 milhão de vistos emitidos, 18% a mais do que no ano passado. São turistas, empresários, estudantes. Aliás, temos cerca de 20 mil estudantes do Ciências sem Fronteiras, e já há mais 9.000 sendo processados.
Então, como fica o fim do visto obrigatório?
É possível, mas não de um dia para o outro. É preciso um sistema de intercâmbio sobre os passageiros, o que leva tempo para atender aos nossos estatutos de segurança.
O Brasil enterrou a Alca, investiu na Rodada Doha, não concluída, e descartou acordos bilaterais com os EUA. O país está perdendo o bonde?
Desde que cheguei, escuto muito do setor privado, mais e mais, sobre a necessidade de um acordo bilateral que poderia beneficiar muito o país. A discussão é saudável.
Invertendo o jogo, não preocupa os EUA estarem perdendo espaço para a França e até para a Rússia na área de defesa justamente no Brasil?
Estamos convencidos de que temos a melhor tecnologia em certos nichos. Cada país tem sua soberania para decidir o que quer, mas o que é melhor é melhor.
Os EUA estão preocupados com Venezuela e Argentina?
A América Latina é muito dinâmica: em alguns momentos uns países vão muito bem, outros não. Observamos a situação na Venezuela, preocupados com os temas que você listou e com outros. Mas México, Colômbia e Peru vão muito bem, por exemplo.
A sra. só citou os maiores aliados dos EUA. Só eles vão bem?
Mas eles também têm outros aliados. Não havia muita expectativa de que [Ollanta] Humala [presidente do Peru] seria um amigo dos EUA, mas ele acabou sendo muito pragmático. A ideologia não deve impregnar as decisões. Você pode ser um país de esquerda, se relacionar com todos e ter uma economia aberta.
O Departamento de Estado detecta um viés antiamericano no Brasil?
Sempre vai ter, até dentro dos EUA tem. Mas o embaixador Shannon elevou a parceria a patamares nunca vistos historicamente, e isso foi um reconhecimento da importância das relações bilaterais.
Como viu a deselegância do Itamaraty na despedida de Thomas Shannon?
Sou colega e admiradora do embaixador, que está numa posição de muita confiança do secretário de Estado. Foi um reconhecimento do seu trabalho no Brasil, apesar do momento difícil.
Faz parte da boa norma diplomática tratar um embaixador assim?
Pelo que li, acho que há maneiras melhores de comunicar as coisas positivas e negativas