Pablo Uchoa
Não obstante a indignação de países aliados, inclusive do Brasil, os Estados Unidos deixaram claro que vão continuar o seu programa de coleta de dados para fins de inteligência – a questão, creem analistas, não é "se", mas "como".
Pela boca do próprio presidente Barack Obama, e agora do secretário americano de Estado, John Kerry, que completou uma viagem de dois dias pela América do Sul, o governo americano argumentou que o polêmico programa é legal, conta com o apoio dos três poderes em seu país e protege não somente vidas americanas, mas vidas de cidadãos inocentes de vários países.
"Nossas atividades estão firmemente baseadas na lei e são supervisionadas por todas as nossas esferas de governo", disse John Kerry na terça-feira em Brasília, em entrevista coletiva ao lado do ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota.
"Estamos convencidos de que a coleta de inteligência nos ajudou positivamente a proteger nossa nação de uma variedade de ameaças. Não apenas nossa nação, mas também outros povos do mundo, inclusive brasileiros."
O mal-estar criado pelo programa, cuja existência foi revelada por informações vazadas pelo ex-analista da CIA Edward Snowden, levara o ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, a pedir que os EUA descontinuem "práticas atentatórias à soberania" e "violatórias às liberdades individuais que nossos países tanto prezam".
"Consideramos que os Estados Unidos não encontrarão melhor parceiro no combate ao terrorismo internacional na medida em que (as ações) sejam levadas a cabo de forma transparente", disse Patriota.
"As parcerias internacionais, quando feitas de forma totalmente transparente, fortalecem a confiança. Quando há desconhecimento dos métodos, ou falta de informação, pelo contrário, isso pode enfraquecer a confiança."
Ao que Kerry respondeu dando "garantias" de que o Brasil e outros países que manifestaram suas preocupações com a coleta de dados por parte do governo americano "compreenderão exatamente o que estamos fazendo, por que e como".
Quem vigia o vigia?
Mas em Washington nem as instâncias encarregadas de supervisionar a iniciativa fazem coro à visão que o secretário ofereceu do programa espião no Brasil e na Colômbia: a de que é conduzido dentro dos termos da lei e "dos mais altos padrões de expectativas em relação a direitos e privacidade".
Legisladores dos comitês de Inteligência e de Justiça do Congresso americano têm se queixado abertamente de limitações impostas às suas capacidades de controlar a escala e a legalidade do programa.
Uma reportagem do Washington Post descreveu, por exemplo, dificuldades impostas aos parlamentares pela natureza secreta de documentos que não podem ser verificados, a relutância de testemunhas em revelar detalhes a não ser que as perguntas sejam "absolutamente precisas", e até o requerimento de que eles deixem na sala todas as suas notas tomadas durante as sessões.
"Em termos da função de supervisão, me sinto inadequada durante a maior parte do tempo", disse a deputada democrata Jan Schakowsky, que integra o comitê de Inteligência da Câmara.
Ela confirmou que as atividades de vigilância em larga escala foram aprovadas pelo Congresso. "Mas era um Congresso completamente a par (das medidas)? Não é o caso."
O debate levou o presidente Barack Obama a anunciar na sexta-feira medidas para aumentar a transparência do programa e criar "salvaguardas contra abusos".
As medidas incluem propostas de mudanças à lei que rege a coleta de dados e a indicação de agentes externos para contra-argumentar em favor das liberdades civis nas instâncias onde a coleta é autorizada.
Mas nenhuma toca o problema fundamental que inquieta muitos americanos e, principalmente, cidadãos e governos de outros países: a prerrogativa da agência de inteligência de coletar bilhões de dados de telefonemas e e-mails de indivíduos insuspeitos.
"Não basta que eu, como presidente, confie nesses programas. O povo americano precisa confiar também", disse Obama.
Para analistas, o presidente indicou que está disposto a discutir como estruturar o programa secreto ? mas não se o programa deve existir ou não.
"As reformas modestas que Obama propôs nem começam a tocar na questão fundamental sobre se queremos que a NSA (a agência de segurança nacional americana) colete todas as nossas ligações e leia pelo menos uma parte dos nossos e-mails sem a nossa permissão, a partir de ordens judiciais de tribunais secretos", observou em um artigo para o Washington Post o articulista político Eugene Robinson. "O presidente indicou que quer discutir como tudo isso é feito – mas não se (deveria ser feito)", observou o articulista.
Relação Brasil-EUA
Os rumos do debate indicam que as tensões com outros países criadas a partir do escândalo Snowden não desaparecerão imediatamente. Após seu encontro com John Kerry, o próprio ministro Patriota ressaltou que "ouvir esclarecimentos não significa aceitar o status quo".
Ao mesmo tempo, desde as denúncias de espionagem referentes especificamente ao Brasil, tanto Brasília quanto Washington têm tentado evitar que este tema "contamine" o resto da relação, ressalta Paulo Sotero, diretor do Brazil Institute, do centro de pesquisas Wilson Center, em Washington.
Sotero considera que o Brasil acerta em evitar o problema bilateral e optar por levar a discussão à ONU. "A tecnologia vai facilitar cada vez mais a espionagem. O Brasil quer discutir isso na ONU, o que para mim está correto: vamos colocar regras nestas práticas ou será o cada um por si?", questiona.
Apesar de tudo, o especialista ressalta que ambos os países têm razões econômicas e políticas para evitar um confronto mais sério.
Na visão brasileira, para citar apenas algumas, os EUA representam um importante mercado para manufaturados, um promissor destino para empresas, um polo global de inovação e um ator geopolítico central no mundo.
Já os EUA, além de considerarem do potencial econômico e político brasileiro, precisam reconquistar a confiança das democracias mundiais, entre as quais está o Brasil.
"As alegações vieram em um péssimo momento para os dois países, que tentam aprofundar uma relação que é boa, mas rasa", avalia Sotero. "Mas os interesses no longo prazo são mais convergentes que divergentes."