Thomas Sparrow
Nos últimos dias, o principal tema de discordâncias entre Washington e Moscou é a decisão russa de oferecer asilo ao informante Edward Snowden, mas o assunto está longe de ser o único espinho nas relações bilaterais.
Há divergências profundas entre os governos a respeito da solução para o conflito na Síria. Os Estados Unidos criticaram a Rússia a respeito de direitos humanos, a Rússia acusou os Estados Unidos de interferência política e os países têm dificuldade de entrar em acordo sobre um sistema de defesa na Europa.
Parece que as relações estão em um ponto baixo de uma montanha russa – a expressão frequentemente usada para descrever os vínculos entre os dois países. O interessante é que há alguns anos, as relações estavam em outra ponta da montanha: durante o primeiro governo de Obama, ele e o então presidente russo Dimitri Medvedev anunciaram o "recomeço" das relações, um evento que celebraram comendo hambúrgueres e batatas fritas perto da capital americana.
E certamente houve alguns progressos: Obama prometeu apoiar a Rússia em sua entrada na Organização Mundial do Comércio, que aconteceu após 18 anos de negociações, os países forjaram certa cooperação a respeito das situações de países como Afeganistão e Coreia do Norte, e os dois firmaram um tratado de armas nucleares para limitar o número de ogivas.
Mas nos últimos meses e já com Putin de volta à presidência, as diferenças ocuparam a maioria das manchetes de jornais e há vozes que indicam que esse "recomeço" precisa de um novo empurrão.
Saiba quais são os quatro principais entraves nas relações entre Rússia e Estados Unidos:
Asilo a Edward Snowden
Desde que o informante Edward Snowden deixou Hong Kong para instalar-se temporariamente no aeroporto de Moscou, o caso se tornou uma pedra no sapato de Rússia e EUA, apesar de ambos indicarem que não queriam que suas relações fossem afetadas.
A divergência é clara: enquanto Washington buscou a extradição de Snowden para que ele enfrente a justiça por revelar segredos de Estado, a Rússia decidiu conceder-lhe asilo por um ano depois que o informante esteve no limbo por várias semanas.
A Casa Branca disse estar profundamente decepcionada pela decisão de Moscou e, desde então, ponderou se deveria seguir adiante com a reunião entre os presidentes, que finalmente foi cancelada na quarta-feira.
"A decisão decepcionante da Rússia de conceder asilo temporário a Edward Snowden também foi um fator que consideramos para avaliar o estado atual de nossa relação bilateral", disse o comunicado americano. A chave está na palavra "também", que deixa entrever que se há um claro desacordo sobre Snowden, esse não é o único tema que incomoda Washington.
Para alguns analistas, o assunto sequer é o mais importante. A BBC conversou com o americano David Kramer, que foi subsecretário de Estado assistente para temas de Rússia e hoje dirige a organização Freedom House. Kramer considera que Snowden é menos importante do que, por exemplo, os problemas em temas relacionados aos direitos humanos e as dificuldades para chegar a um acordo sobre a Síria.
Direitos humanos
No comunicado da quarta-feira, a Casa Branca mencionou que um dos entraves ao progresso bilateral são os temas relacionados a direitos humanos e sociedade civil e, na opinião de Kramer, esse é o assunto-chave.
De modo geral, os funcionários americanos criticaram com frequência a Rússia por seus supostos abusos a direitos humanos e pelo que consideram ser um crescente autoritarismo. A Rússia, por sua vez, argumenta que os Estados Unidos interferem nas políticas de Moscou para afetar o governo de Vladimir Putin.
Assim, houve decisões de cada uma das partes que geraram mais de um enfrentamento nos últimos meses. O Congresso dos Estados Unidos, por exemplo, adotou em dezembro do ano passado uma lei que permite ao país reter os vistos e congelar os ativos financeiros de funcionários russos supostamente envolvidos em violações de direitos humanos.
A Rússia respondeu proibindo casais americanos de adotar órfãos russos. Também anunciou um veto a americanos acusados de terem violado direitos humanos e suspendeu as atividades de organizações sem fins lucrativos que recebiam dinheiro dos Estados Unidos.
Outro tema de discórdia foi a nova lei russa que proíbe a publicidade dos direitos homossexuais em eventos públicos, assim como demonstrações de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Na terça-feira passada, em uma entrevista na televisão, o presidente Obama deixou clara sua posição a respeito, ao dizer que não tem "paciência com os países que tentam tratar gays, lésbicas e transsexuais de maneira que os intimidam ou prejudicam".
O conflito na Síria
A clara divergência de posturas entre os Estados Unidos e a Rússia é uma das questões que impediu a comunidade internacional de ter um papel mais ativo nas soluções para o conflito sírio.
A Rússia, por um lado, quer manter seus laços históricos e econômicos com a Síria, uma amizade que remonta aos tempos da União Soviética e que inclui uma relação comercial e militar na qual a Síria se nutre de armas russas e a Rússia usa uma base naval síria em Tartus.
Por outro lado, Moscou não quis deixar passar a oportunidade de demonstrar que sua posição privilegiada pode ajudar a solucionar o que a comunidade internacional não pode resolver por outros meios.
Os Estados Unidos, ao contrário, se puseram claramente do lado da oposição e, em junho, a Casa Branca anunciou pela primeira vez a entrega de ajuda militar direta. O presidente Obama tomou essa decisão depois de sua administração concluir que as forças sírias de Bashar Al-Assad estavam usando armas químicas, algo que a Rússia disse não ser "convincente".
As diferenças entre Estados Unidos e Rússia foram particularmente evidentes no Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde ambos têm um posto fixo. A Rússia tem vetado em diversas ocasiões resoluções do organismo a respeito do conflito armado.
Sistemas de defesa e controle de armas
Mas assim como David Kramer considera que os pontos principais da disputa são os direitos humanos e o conflito na Síria, outro analista, Kevin Ryan, acredita que o tema de fundo são os sistemas de defesa e o controle de armas.
Ryan é o diretor dos projetos de defesa e inteligência do Centro Belfer para a Ciência e Assuntos Internacionais da Universidade de Harvard, e argumenta que esse é o assunto-chave entre os dois países. De fato, em seu comunicado na quarta-feira, a Casa Branca mencionou o tema com destaque.
Em 2011, o tratado New Start (Novo começo, em tradução livre) entrou em vigor com o objetivo de limitar o número de ogivas atômicas que podem ter os Estados Unidos e a Rússia, mas há algumas semanas, em um discurso em Berlim, Obama pediu mais esforços para reduzir os arsenais.
O presidente disse que confiava que seu país poderia manter sua segurança e simultaneamente reduzir sua capacidade nuclear em um terço, e também pediu que se reduzisse o número de ogivas táticas na Europa. No entanto, o vice-primeiro-ministro da Rússia, Dimitri Rogozin, disse que Moscou "não pode levar essas garantias a sério" enquanto os Estados Unidos tomam decisões sobre o desenvolvimento de seus sistemas de defesa militares.
Em particular, há um assunto mais espinhoso: a ideia de longa data dos Estados Unidos de construir sistemas de defesa antimísseis na Europa central para proteger-se contra um eventual ataque do Irã ou da Coreia do Norte -?? sistema que a Rússia acredita estar perto demais de seu território.
Há um ano, por exemplo, a Rússia disse estar preparada para usar "forças destrutivas preventivas" se Washington seguisse adiante com seus planos. Em março deste ano, no entanto, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Chuck Hagel, cancelou a fase final do sistema de defesa, com o argumento de que havia problemas de desenvolvimento e cortes no orçamento.
Sem fazer referência às objeções russas, Hagel prometeu que, para além do cancelamento, os aliados da OTAN na Europa não seriam afetados em seu nível de proteção graças às primeiras três fases do programa.
Rússia e Estados Unidos têm um conflito por causa dos sistemas antimísseis americanos desde a época de George W. Bush. Obama cancelou os planos de seu antecessor de ter uma rede de bases na Polônia e na República Tcheca, mas logo assinou um acordo com a Polônia para usar um território próximo ao mar Báltico como uma nova base.
A Rússia, por sua vez, instalou um sistema de radares capazes de monitorar lançamentos de mísseis em Caliningrado, território russo que fica entre a Polônia e a Lituânia, também próximo ao mar Báltico.