Coronel Carlos Augusto Ramires Teixeira
Em 2012, o Centro de Inteligência do Exército (CIE) enviou ao Estado-Maior do Exército (EME) o resultado de um trabalho iniciado em 2009, que consistiu de um profundo estudo de doutrinas de Inteligência Militar aplicadas por países com experiência em combate ou que têm estruturas de Inteligência atuantes em tempo de paz.Batizado de “Projeto Lucerna”, este estudo teve como principal objetivo apresentar uma proposta de reestruturação do Sistema de Inteligência do Exército (SIEx), permitindo sua adequação à transformação por que passa o Exército Brasileiro.
O presente artigo procura destacar as principais conclusões desse extenso trabalho, exatamente no momento em que o Exército Brasileiro adota seu novo conceito operacional: as Operações no Amplo Espectro.
Pretende-se, assim, que o leitor se sinta estimulado a debater linhas de ação para a implantação das melhorias propostas no SIEx, de modo a atender às necessidades decorrentes dessa atuação da Força Terrestre (F Ter) em todo o espectro dos conflitos.
O DIAGNÓSTICO
O diagnóstico realizado como parte do trabalho concluiu que há pouca ou nenhuma participação do elemento humano – o combatente terrestre – na obtenção de dados de inteligência. O diagnóstico aponta diversas causas, mas destaca como a principal o fato de que o combatente não se vê, ele próprio, como um “Sensor de Inteligência”. O argumento que sustenta essa afirmação tem origem na quase inexistente participação da 2ª Seção (Inteligência) nos exercícios no terreno ou mesmo nas simulações de combate.
É senso comum que nessas ocasiões o Oficial de Operações (S3/E3) tem significativo destaque, trazendo para si, não raras vezes, a responsabilidade por realizar o Processo de Integração Terreno, Condições Meteorológicas e Inimigas (PITCI). Relegado a um segundo plano, o Oficial de Inteligência, por sua vez, não estimula os meios de obtenção de que dispõe a Organização Militar, gerando um círculo vicioso que o afasta, definitivamente, de ocupar local de maior destaque no Estado-Maior.
De forma ainda mais contundente, os quadros da F Ter têm poucas oportunidades para praticar o estudo do inimigo, nos moldes do preconizado na publicação Instruções Provisórias 30-1 – A Atividade de Inteligência Militar” (IP 30-1). Seja nas oportunidades em que a tropa realiza exercícios no terreno, seja quando ela participa de exercícios de simulação de combate, ou ainda, nos temas táticos das escolas de formação e aperfeiçoamento. Neste contexto, observasse que são apenas pontuais as iniciativas de provocar a prática do estudo do inimigo, de forma completa. Na maioria dos casos, o inimigo faz parte do enunciado do tema, inserido na “situação particular” ou em um anexo de Inteligência.
De maneira geral, não se estimula a prática do trabalho mental necessário ao levantamento das possibilidades e deficiências do inimigo hipotético. Essas questões, somadas às dificuldades orçamentárias que impediram o adestramento constante e regular da tropa nas últimas décadas, resultaram em uma perda substancial da percepção do combatente como fator integrante do fluxo de dados no campo de batalha.
Uma conclusão do estudo comparativo entre os Planos de Disciplinas (PLADIS) das escolas de formação e aperfeiçoamento e da Escola de Inteligência Militar do Exército (EsIMEx) indicou que esses documentos estão adequados ao propósito da matéria “Inteligência” em cada Estabelecimento de Ensino, embora com pequenas ressalvas. Infere-se, então, que a “lacuna” na inserção do elemento humano como “sensor” pode estar efetivamente na transmissão desse conhecimento “escolar” a “ponta da linha” e seu efetivo adestramento.
Não havendo “cobrança” de resultados do chefe das segundas seções dos estados-maiores e mantendo-se a atual sistemática de “estudo” do inimigo, será difícil que os comandantes de subunidade, os comandantes de pelotão e os sargentos comandantes de grupo passem a ter a real noção da importância de seus homens “perceberem” os dados de Inteligência.
Mais ainda: como pretendemos atingir adequada consciência situacional, sem que cada combatente se perceba como elo fundamental entre o dado bruto e a decisão do chefe? O estudo constatou, ainda, que o Ciclo do Conhecimento em uso pela F Ter não valoriza adequadamente a participação do homem na obtenção do dado. É certo que as IP 30-1 citam as fontes de natureza humana e definem os responsáveis pela integração desses dados a outros oriundos das demais. Mas, por outro lado, elas não tecem maiores detalhes sobre os produtos ou as formas de participação do combatente no fluxo de dados em operação.
Mas… Que ferramentas estão ao alcance da Inteligência para mitigar as falhas identificadas no estudo?
AS SOLUÇÕES SIMPLES E FACTÍVEIS
Citando novamente o Projeto Lucerna, o estudo identificou que as mais ágeis estruturas de Inteligência Militar no mundo repousam seu Ciclo do Conhecimento − ou Ciclo de Inteligência – em quatro etapas, e não em três, como hoje ocorre no Exército Brasileiro. Além de Orientação, Produção e Utilização, consta também a etapa Obtenção.
Atualmente, na etapa de Produção do Conhecimento, na fase de Reunião, é realizada a coleta e a busca; aquela sobre o dado aberto e esta sobre o dado negado. Dependendo da análise da missão e do quadro em que se apresenta o conflito, o “sensor humano” pode vir a realizar uma ou outra dessas tarefas.
Ambas, no entanto, são tarefas de obtenção de dados. Dessa constatação, verificou-se a necessidade de adequar o Ciclo aos moldes de outros países, justamente para que se perceba a nova “filosofia” de reinserção do combatente nesse processo. E não só isso: criando uma nova etapa no ciclo, esta deve ser percebida por todo o Estado-Maior como fundamental no prosseguimento das ações e no atendimento às dúvidas do processo decisório. Não havendo obtenção de dados, não há conhecimento de Inteligência. Sem Inteligência, não há comandante que se aventure a combater.
Aliado às plataformas de obtenção e aos diversos sensores à disposição da Inteligência, o homem “volta” a integrar-se no processo, gerando dados qualitativos, ainda que em menor número que os demais (Fig. 3).
Percebida a nova sistemática, resta ao S2/ E2 motivar, nas atividades operacionais ou de simulação, problemas militares próprios do Ciclo de Inteligência, com destaque para a obtenção e difusão dos dados com o vetor humano.
Nos Batalhões, Regimentos e Subunidades isoladas, os chefes das segundas seções (S2) poderiam incrementar a prática do estudo do inimigo valendo-se das fases de instrução de suas Unidades, uma vez que tal conhecimento permeia todos os períodos do ano – básico, qualificação e adestramento –, com ápice no adestramento avançado. Em consonância com o planejamento anual, pode inserir, no mesmo quadro tático criado pelo Oficial de Operações, a emissão de relatórios, fotografias ou descrições orais de pequenos eventos.
Nas Brigadas, os Chefes das Seções de Inteligência dos estados-maiores (E2) poderiam coordenar, ainda ao início do ano de instrução, a seleção de objetivos de curtos e médios prazos para as Unidades subordinadas, objetivando homogeneizar procedimentos para um nivelamento mínimo de respostas nos exercícios no terreno ou mesmo nos simulados.
Em ambos os casos, a perfeita integração com o planejamento executado pelas seções de operações é fundamental para que a tropa participe efetivamente do processo e enriqueça a instrução e os exercícios.
Com base no raciocínio descrito, é lícito afirmar que o Comando de Operações Terrestres (COTer) tem papel importante nesse esforço, cujo objetivo é aperfeiçoar o Sistema de Inteligência. Está claro que o Sistema Operacional Inteligência permeia todos os demais sistemas operacionais, ou, segundo o novo conceito doutrinário, que as tarefas da Função de Combate Inteligência são cumpridas com o emprego de uma diversidade de sistemas que atuam igualmente em proveito das demais Funções de Combate. A necessidade de um esforço integrado é evidente.
No caso das Escolas de Formação e Aperfeiçoamento do Exército, a EsIMEx tem auxiliado as respectivas seções ou divisões de doutrina na ratificação ou retificação dos PLADIS, já com foco no ensino por competências. Dessa forma, as próximas gerações de oficiais e sargentos já poderão aplicar na tropa os novos conceitos ora em estudo, particularmente visando à valorização de seus subordinados – Cabos e Soldados – como executores dessa “nova” doutrina.
Os módulos de adestramento do Batalhão Haiti e a preparação para as ações no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, contemplaram instruções de técnicas operacionais de Inteligência: “Observação, Memorização e Descrição”, “Vigilância” e “Fotografia”. Essa experiência mostrou-se exitosa, a partir do momento em que despertou no elemento das pequenas frações a possibilidade de destacar-se, por trazer ao decisor dados relevantes ao processo decisório.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendemos que as conclusões do Projeto Lucerna, endossadas neste artigo, são fundamentais à evolução do Sistema de Inteligência do Exército e plenamente exequíveis pelas Unidades e Grandes Unidades da F Ter.
A adoção de um novo formato para o Ciclo de Inteligência é, sem dúvida, um instrumento para essa evolução, mas deve ser acompanhada das medidas para a valorização do trabalho dos estados-maiores e, ainda mais importante, a valorização do homem como principal fonte de dados em conhecimento. Na era do conhecimento e no contexto das operações no amplo espectro, não se concebe esquecer o elo mais forte e consistente do nosso Exército: o soldado.
-x-
Publicado Originalmente: DOUTRINA militar TERRESTRE em revista | Ano 001 | Edição 002 | Abril a Junho/ 2013 – Centro de Doutrina do Exército
O Autor: O Coronel de Cavalaria Ramires é o atual Chefe da Seção de Doutrina da Escola de Inteligência Militar do Exército. É bacharel e mestre em ciências militares pela Academia Militar das Agulhas Negras e pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, respectivamente.
Foi Analista da Agência de Inteligência do Gabinete do Comandante do Exército e atuou como Adjunto da 2a Seção do 5o Contingente do Batalhão Brasileiro na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti.