A Defesa em Debate
Nam et ipsa scientia potestas est
Reator Nuclear Multipropósito:
cooperação estratégica Brasil e Argentina
Fernanda Corrêa
Historiadora, estrategista e pesquisadora do
Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense.
fernanda.das.gracas@hotmail.com
Se encerrou hoje, dia 26 de abril, em Buenos Aires, o Seminário Internacional “A Política Nuclear na Argentina e o Mundo: presente e perspectivas”, organizado pela Autoridade Regulatória Nuclear, pela Universidade Nacional San Martín e pela Universidade San Andrés, no auditório Manuel Belgrano, no Ministério das Relações Exteriores da Argentina. Além de autoridades diplomáticas e nucleares, industriais, acadêmicos da Argentina, participaram do evento autoridades, nucleares, consultores de indústrias e de instituições, acadêmicos dos EUA, da Bélgica, da Espanha, da Inglaterra e do Brasil.
Os debates se concentraram sobre a relação entre a política nuclear e a sociedade civil, proliferação nuclear, segurança nuclear pós-Fukushima, cooperação nuclear Brasil e Argentina e perspectivas sobre a indústria nuclear. O debate em todas as mesas foi de alta qualidade, demasiadamente enriquecedor e convidou aos expectadores a uma maior reflexão sobre o futuro da energia nuclear na Argentina e no mundo.
Houve um posicionamento convergente entre os expositores estadunidenses e belga sobre a importância de assinar o protocolo adicional ao TNP, o que foi passível de discussão entre os expositores argentinos. No entanto, uma questão interessante e que deve ser considerada por todas as autoridades políticas e nucleares apresentada pelo expositor belga é que o país que escolher adotar a tecnologia nuclear para fins pacífico deve se conscientizar dos riscos e de que falhas são inaceitáveis na segurança nuclear.
Sobre como a comunidade internacional tem se articulado para prevenir a proliferação de armas nucleares no mundo foram citadas por autoridades nucleares e acadêmicos argentinos: a promoção de sistema de segurança entre os países, como as salvaguardas, intervenções e ataques militares com bombas convencionais a estruturas físicas, a imposição da democracia por os países estruturalistas acreditarem que países democráticos são mais responsáveis, sanções econômicas e o fomento por cooperações institucionalizadas, como o protocolo adicional ao TNP. Houve um consenso entre os expositores acadêmicos argentinos e brasileiro de que as propostas internacionais sobre multilateralização do combustível nuclear constituem, na verdade, uma estratégia para fazer com que os países desistam de ter acesso a energia nuclear.
Como única expositora brasileira, diante de tão importante evento internacional, me senti a vontade para também convidar a todos os presentes para uma maior reflexão sobre os compromissos assumidos entre Argentina e Brasil sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares.
Está em curso discussões e, talvez, até uma campanha em instituições internacionais para desacreditar os acordo e convenções entre Argentina e Brasil. Não por oferecermos desconfiança, mas sim, por os nossos acordos e convenções na área nuclear não ser também promovidos com países como os EUA. Estas discussões em âmbito internacional tentam desacreditar nossos acordos e convenções alegando que, na verdade, Brasil e Argentina podem estar se unindo para construir a bomba nuclear. Instituições regionais, como a ABACC, devem dar a devida seriedade às estas interpretações, pois não sabemos em que esfera política (local, nacional, regional ou internacional) ocorrem. Se for uma forma de menosprezar nossos trabalhos em conjunto ou um elogio às nossas instituições disfarçado de críticas, acredito que devemos ainda mais valorizar instituições como a ABACC e aprofundar ainda mais a sua participação nos projetos estratégicos que desenvolvemos conjuntamente. A maior contribuição que Argentina e Brasil podem oferecer às políticas de não proliferação nuclear no mundo é o ensinamento de que confiança mútua não se impõe, se constrói. Ao pressionar, impor sanções, intervir militarmente em outros países que os estruturalistas acreditam estar ameaçando o equilíbrio e a relativa paz mundial, estão contribuindo ainda mais com a proliferação de armas nucleares no mundo. Instituições binacionais como a ABACC têm lições para ensinar os velhos estruturalistas do jogo político do sistema internacional.
Dentre as perspectivas do setor nuclear argentino se encontram a consolidação do desenvolvimento deste dentro do próprio País, incorporar os setores industriais nucleares aos serviços públicos e promover a participação do setor nuclear argentino em programas fora do país.
Interessante, em especial, para agregar elementos de análise ao trabalho que apresentei no evento, é que a visão da INVAP, empresa responsável pela construção do reator multipropósito brasileiro, é semelhante aos interesses das autoridades nucleares e indústrias do Brasil: formação de recursos humanos, produção de radioisótopos e irradiação de materiais. Para a INVAP, é motivo de orgulho a construção e a exportação do reator multipropósito OPAL para a Austrália: dezenas de mw, núcleo de alta densidade de potência e refletor de água pesada. Está operando desde 2006, na Austrália, e está entre os cinco primeiros reatores do mundo mais modernos em água pesada. Tanto em Brasil quanto o Brasil necessitam renovar seus reatores de pesquisa. Ao parece, a assinatura entre a INVAP e a CNEN para a construção de engenharia básica do reator será assinada no próximo mês. As perspectivas da empresa argentina são renovar os reatores existentes e construir e exportar reatores de universidades, de produção de radioisótopos, de pesquisa e de irradiação. Além do enriquecimento dos reatores multipropósitos da estatal argentina ser inferior a 20%, seus reatores dispõem de elementos de combustível tipo placa e flexibilidade de trocar o material do combustível.
Na primeira mesa do evento intitulada “Aproximações históricas à política nuclear em contextos emergentes”, apresentei o texto a seguir:
Reator Nuclear Multipropósito:
cooperação estratégica Brasil e Argentina
Introdução
O objetivo principal em apresentareste tema neste evento que tão bem destaca a importância que a cooperação científica e tecnológica tem na América do Sul é ressaltar a responsabilidade conjunta que Argentina e Brasil têm no desenvolvimento socioeconômico da América do Sul e para o futuro da própria humanidade. Diante de um futuro tenebroso, no qual água, terras cultiváveis, alimentos e energia se tornaram escasos, estes passaram a ser bens naturais estratégicos e alvos da cobiça internacional.
Estima-se que 40% das terras produtivas e inexploradas do mundo estão localizadas na Argentina e no Brasil. Isso significa que, se continuado o planejamento político, econômico, científico e tecnológico até então aplicado, ambos os países se enquadrarão no cenário internacional futuro, dentre os poucos com condições de proporcionar água potável, alimentos, habitação e múltiplas formas de energia às suas populações.
Benefícios da tecnología nuclear para fins pacíficos
Em função de seu caráter estratégico, os benefícios advindos da energia nuclear disparam em relação às demais fontes de energia. Entre os aspectos positivos do uso da energia nuclear para fins pacíficos se encontram: as águas dos oceanos podem ser dessalinizadas e transformadas em água potável, alimentos e embalagens são desinfectados, o controle de micróbios em peixes, camarões e frangos pode ser realizado e pode-se aumentar a validade de algumas especiarias. Por meio do processo de irradiação, a energia nuclear contribui com o processo de degradação dos poluentes e controle de pragas. É possível diagnosticar e tratar diversos tipos de doenças, em especial, o câncer. Em termos de engenharia, a energia nuclear está apta a realizar a medição de lençóis freáticos, controlar o bombeamento de petróleo, aumentar a resistência de fios e cabos elétricos. E Além de tudo isso, a energia nuclear, apesar de ser uma matriz energética complementar, é responsável por 17% da produção de energia elétrica mundial.
Desta forma, reatores nucleares que tenham múltiplos propósitos, além de diminuir a dependencia tecnológica e a vulnerabilidade econômica dos países, se tornam estratégicos devido aos diversos fins que atendem, desde as pesquisas e procesos físicos e químicos até medicinais, propulsão naval e energética.
O Reator Nuclear Multipropósito
A construção de um reator nuclear multipropósito brasileiro já fazia parte dos planos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Na visão do Governo brasileiro, o reator multipropósito é a solução para garantir segurança no suprimento de tecnécio 99m, solução para o desenvolvimento endógeno de combustíveis nucleares e materiais para uso em reatores e a ampliação da capacidade nacional em ciência, tecnologia e inovação.
Apenas 5 reatores produzem 95% do suprimento mundial. Em 2009, sem aviso prévio e alegando problemas no reator, duas empresas, uma canadense e outra holandesa cortaram o suprimento de radiofármacos.Ambas representam dois terços da produção de molibdênio 99 no mundo. Este elemento radioativo é responsável por 80% de todos os procedimentos de medicina nuclear, é imperativo no diagnóstico e no tratamento de doenças, como câncer, doenças cardiológicas, renais, hemofilia etc, e sua produção tende a ser cada vez mais elevada, em função do aumento e do envelhecimento da população brasileira.
Semanalmente, o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) fornece geradores de tecnécio para aproximadamente 300 clínicas e hospitais em todo o Brasil. A estimativa é que sejam 1,5 milhões de atendimentos por ano. Só a região sudeste do Brasil representa cerca de 64% da distribuição de radiofármacos pelo IPEN. O Brasil importa atualmente 13 milhões de dólares de radiosiótopos.
O reator produtor de Mo 99 mais novo é o francês Osiris com 44 anos de vida útil. O Brasil possui apenas quatro reatores de pesquisa em funcionamento. O mais novo é o IPEN/MB-01 com vida útil de 25 anos. No entanto, a produção de radioisótopos ocorre no reator IEA-R1, também alocado no IPEN. Além dos poucos países que fornecem este radiofármaco não atender a demanda internacional e, em função disso, o preço dos radiofármacos ter aumentado 200%, os reatores nacionais não são mais capazes de atender a demanda brasileira.
Neste contexto de 2009, com os dois reatores nucleares com suas funções paralisadas, duas ações foram tomadas pelo Governo brasileiro: como solução paliativa, o Ministério da Saúde resolveu importar radiofármaco da Argentina, da África do Sul e de Israel. Como solução definitiva, o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) uniram esforços conjuntos para desenvolver cooperação tecnológica com a Argentina, líder neste projeto, para pôr em prática o plano de construir o Reator Nuclear Multipropósito (RMB), um para cada país.
O arraste tecnológico advindo desta construção, além de beneficiar a medicina nuclear, beneficiará outros setores, como o de engenharia de alimentos, o de energia, a indústria e o setor de propulsão naval. Desenvolvendo um reator com vida útil de aproximadamente 50 anos com um custo de cerca de 500 milhões de dólares, ao desenvolvermos um reator multipropósito binacional, com um terço de vida útil, a produção de radiofármacos pagará os custos de construção e desenvolvimento do RMB. Além do Ministério da Saúde e hospitais de clínicas de medicina nuclear, o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP), as Indústrias Nucleares do Brasil (INB), a Eletronuclear, as universidades, institutos de pesquisa e laboratórios serão usuários do RMB. Sua implantação permitirá agregar pesquisadores de diversas áreas, possibilitando a criação de um núcleo de conhecimento capacitado, integrado e coeso. Visando todos estes benefícios, a Marinha do Brasil cedeu parte de seu terreno, no Centro Experimental Aramar, em Iperó, interior do estado de São Paulo, para que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação construa o RMB.
Na fase de implantação do RMB, as etapas que ficarão a encargo exclusivo de empresas argentinas serão: reator, instrumentação e controle, circuitos de teste de irradiação e guias de nêutrons e fonte de nêutrons frios. As partes que serão desenvolvidas conjuntamente são: instalação de produção de Mo 99 e do Laboratório de análise pós-irradiação.
É imperativo mencionar que, além das questões de autossuficiência e independência tecnológica na produção de radiofármacos, o RMB é um projeto de Estado de ambos os países, amparados pelos acordos e tratados de não proliferação e cooperação nuclear regional e internacional, e que, principalmente, consolida as políticas de cooperação e integração na América do Sul.
Exatamente pelo nível científico e tecnológico que ambos os países de encontram diante dos outros países da América do Sul, temos uma responsabilidade conjunta em contribuir com o desenvolvimento regional. Não seria nem um pouco precipitado de minha parte prever que, a médio e longo prazo, Argentina e Brasil criem além de empresas binacionais, um mercado de exportação de produtos, tecnologias e serviços na região e muito menos precipitado vislumbrar a oferta de tecnologias e serviços a partir de reatores multipropósitos “Made in Mercosur”.