Vista como uma barreira para a ascensão de mulheres na linha bélica, força física é cada vez menos imprescindível no contexto de guerra moderno, cada vez mais estratégico. No Brasil, elas são limitadas a poucas áreas.
(DW) Por muito tempo, os espaços ocupados por militares mulheres nas Forças Armadas Brasileiras resumiam-se a funções aliadas ao cuidado, como enfermeiras, dentistas, médicas, ou a postos auxiliares e administrativos. A entrada na linha bélica e em cargos de liderança é recente, e a presença ainda é baixa e marcada por limitações. Dados de 2022 mostram que elas representam 11% da Marinha e apenas 6% do efetivo do Exército. A Aeronáutica possui o maior contingente feminino, que configura 20% da força.
O país tem uma pioneira emblemática no combate: Maria Quitéria de Jesus, a jovem que disfarçou-se de homem para lutar contra o império português. Porém, mais de duzentos anos depois, o Exército ainda é um espaço de pioneiras. Somente em 2012 foi aprovada a lei nº 12.705, que abriu caminho para que mulheres fizessem os cursos da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), escola que permite alcançar o grau de oficial de armas.
As primeiras alunas entraram na Escola Preparatória de Cadetes do Exército em 2017 e se formaram na AMAN em 2021. No entanto, certas barreiras persistem. Atualmente, as mulheres podem especializar-se na Intendência, setor que gere suprimentos e materiais, no Quadro de Material Bélico, responsável pela manutenção de recursos como armamento e viaturas e, a partir deste ano, nas Comunicações. Os setores da Cavalaria, Infantaria, Artilharia e Engenharia seguem vetados.
Além disso, a maior parte dos concursos das Forças tem número limitado de vagas destinadas ao sexo feminino. Na seleção da AMAN, apenas 10% das vagas podem ser disputadas por futuras cadetes, fazendo com que a relação candidato/vaga para as mulheres seja mais do que três vezes a dos homens. Dos 400 alunos que ingressam a cada ano, somente 40 podem ser mulheres.
Brasil não está na vanguarda
Existem cerca de 20 países no mundo que retiraram todas as restrições para que mulheres possam atuar como combatentes em suas forças armadas. Canadá, Noruega e Suécia autorizaram o contingente feminino a atuar na linha de frente ainda na década de 1980. A Alemanha permitiu o acesso igualitário a todas as armas e especialidades em 2001.
Na América Latina, o Uruguai permitiu já em 2000 a entrada de mulheres entre os quadros de comandantes de todas as forças, o que também tornou-se realidade no Paraguai em 2003 e na Argentina em 2013. Bolívia, Colômbia, Nicarágua, Venezuela e Chile também permitem o acesso total às áreas bélicas. O país da região com maior proporção de mulheres nas forças armadas é o Chile (17,5%).
No ano passado, a Procuradoria-Geral da República (PGR) moveu três ações no STF que buscam possibilitar o acesso de mulheres a todas as carreiras militares, defendendo que 100% das vagas disponíveis nos concursos de recrutamento sejam disputadas sem distinção de sexo. Em resposta, o exército alegou que “a fisiologia feminina pode comprometer o desempenho militar em operações de combate, dependendo do ambiente operacional”. Em janeiro deste ano, a Advocacia-Geral da União (AGU) se posicionou contra as ações e favorável às atuais restrições, corroborando o argumento do Exército.
Para muitos, mulheres e combate são coisas incompatíveis. A principal crença é de que uma menor força física comprometeria o desempenho das atividades no front. Além disso, concepções equivocadas da biologia do corpo feminino aliadas a estereótipos de gênero compõe barreiras sociais para mulheres na área. Será que o argumento da fisiologia inadequada se sustenta?
A questão da força e o treinamento operacional
Os testes de aptidão física realizados regularmente no exército tem índices diferentes entre homens e mulheres. É o que explica o diretor do Instituto de Pesquisa da Capacitação Física do Exército, tenente-coronel Hélio Gonçalves Chagas de Macedo. “Em algumas atividades como corrida, natação, levantamento de peso, percebemos que existe uma diferença entre o homem e a mulher. Na parte cardiorrespiratória é calculado que a mulher pode chegar a 80% do que o homem executa”.
No entanto, o diretor reforça que esses são dados padrão que nem sempre refletem a realidade e que podem variar de acordo com cada demanda.
São quatro tipos de provas que compõem tais testes de avaliação física: corrida de 12 minutos, flexão na barra, flexão no solo e abdominal. Desta forma, o homem corre 3km, e a mulher com a mesma idade corre em torno de 2,5km. O tenente-coronel aponta que essas diferenças de índice não impactam no trabalho desempenhado pelo militar, já que o objetivo e critério de avaliação é que cada um entregue 100% de sua capacidade. “Se cada um treinar dando seu máximo, no momento de decisão no combate, a mulher vai conseguir desempenhar as tarefas. Não é só uma questão fisiológica. É possível separar as atribuições garantindo que cada indivíduo contribua com seu maior potencial”.
Além disso, uma versão mais moderna do treinamento e avaliação militar é baseada no cumprimento de tarefas específicas e objetivas, nas quais as finalidades e parâmetros são os mesmos para ambos os sexos.
“O exército norte-americano e o exército inglês, por exemplo, já migraram de provas baseadas no atletismo para provas físico-operacionais. Um exemplo de prova desse tipo é simular o carregamento de um ferido. São exercícios que atendem à tarefa militar e são iguais para homens e mulheres”. Esses testes já são utilizados no Exército Brasileiro, mas não como prova de admissão ou avaliação nas escolas. “Estamos buscando acompanhar essa modernização”, revela Macedo.
Preparo sólido e desempenho bem-sucedido
“Ambos os sexos são tratados de forma igual e os desafios são os mesmos”, afirma a coronel Ana Luiza Ferrão, responsável pelo acompanhamento do sexo feminino na linha de ensino militar bélico na AMAN. Ela destaca que a integração das primeiras turmas tem ocorrido de forma exitosa, sem quaisquer contratempos.
“Vamos para acampamentos e simulamos a guerra. Carregamos o mesmo peso de mochila, fuzil, e material que os homens, desempenhamos as mesmas funções”, relata Cíntia Silva Vidigal. A jovem de 27 anos fez parte da primeira turma feminina a formar-se na AMAN em 2021 e retornou à instituição como tenente-instrutora do curso básico.
Cíntia especializou-se na arma de Intendência e relata que, apesar de algumas armas ainda não estarem abertas às mulheres, por vezes as funções se misturam. “A base do oficial do exército brasileiro da linha militar bélica é comum a todos”, relata a instrutora, que sente-se bem preparada para assumir posições de liderança.
Os desafios independem de gênero. O coronel Macedo observa que as equipes femininas têm maior índice de lesão nos membros inferiores do que os homens, mas que a instituição tem de estar sempre atenta à saúde e riscos para ambos os sexos. “Muitos jovens chegam praticamente sedentários”.
A guerra moderna, e o papel secundário da força bruta
Estereótipos e preconceitos de gênero vêm sendo superados por diversas razões. Uma delas é que a relevância da força bruta para servir é cada vez menor. “O conceito de guerra mudou. Hoje não é mais uma guerra de trincheiras. Os combates exigem inteligência e a capacidade de operar tecnologia de ponta”, aponta a ministra do Superior Tribunal Militar, Maria Elizabeth Rocha.
“A força bruta está sendo cada vez mais mitigada pelas novas formas de guerra. Uma mulher pode, talvez, ter dificuldade em acompanhar numa trincheira carregando uma mochila de 40 kg nas costas em comparação com um homem. Mas ela é muito capaz de comandar um drone”.
Além disso, a magistrada aponta que várias forças armadas do mundo acharam soluções relativamente simples que possibilitaram a ascensão da mulher na carreira das armas. “O exército americano, por exemplo, adaptou armas ao corpo feminino”.
Para a ministra existe uma série de falsas premissas relativas ao corpo que obstaculizam o ingresso da mulher em determinados postos. “A mulher combatente ainda é vista como sexo frágil, que não pode integrar a tropa porque é mais delicada, mais sensível do que o homem. Isso é uma falácia e perder uma força laboral feminina é perder uma parcela da sociedade”.
Um direito e marca de cidadania
“As forças armadas ainda são redutos de masculinidades”, declara a ministra Maria Elizabeth, que é também a única mulher a ocupar o cargo na história da Corte mais antiga do país. “A despeito da integração estar sendo cada vez maior, ainda existe um marcador sexual, sobretudo para aqueles meninos que estão no período do serviço militar obrigatório. Homens servem, mulheres não”.
A magistrada também aponta que o gênero impacta muitas vezes na forma de discriminações estruturais, feitas de forma inconsciente.
Perguntado pela DW, o Exército não apontou a fisiologia feminina como um empecilho e nem exemplificou funções desempenhadas por oficiais homens que o efetivo feminino apresentaria dificuldades em cumprir. A ênfase da instituição foi na necessidade de se fazer mudanças graduais e a avaliação dos seus impactos.
Além disso, apontou que escalar a entrada das mulheres no concurso da AMAN exigiria adaptações de infraestrutura, como construção de alojamentos, esbarrando no orçamento. “Estamos trabalhando na inserção de forma gradual, contínua e segura, evitando, assim, equívocos já verificados em outras Forças armadas no exterior”, declarou a instituição.
Já a ministra acredita que a mudança deveria ser mais veloz. “Limitar a 10% o ingresso de mulheres é inconstitucional. Mais calma? Nossa paciência se esgotou. Não há que se falar em processo gradual quando há um descumprimento na norma constitucional”.