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As Operações “Thunder Run” e o Combate Blindado em Grandes Cidades

                 As Operações “Thunder Run” e o Combate Blindado em Grandes Cidades

Eduardo Atem de Carvalho
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Rogerio Atem de Carvalho
Instituto Federal Fluminense

A GUERRA DA UCRÂNIA trouxe à baila, passando ao largo das usuais imprecisões midiáticas, um tipo de operação militar empregada pelo exército dos EUA na sua versão moderna, mas que tem raízes profundas fincadas na Segunda Guerra Mundial, elaborada pelo general alemão Heinz Guderian e apresentadas no clássico “Achtung – Panzer!” [1]. É possível ainda se fazer analogia com operações desta natureza desde a antiguidade.

Na sua versão atual, objeto deste trabalho, este tipo de operação nasce após o sangrento desastre ocorrido com Forças Especiais (FE) americanas na chamada Batalha de Mogadíscio, lutada entre 3 a 5 de julho de 1993. Os chamados “debriefings” após a operação revelaram que diante de uma cidade hostil e grande quantidade de tropas adversárias, regulares e irregulares, a qualidade superior do combatente FE não foi suficiente para impedir o desastre ocorrido, mesmo contando com apoio de fogo muito superior, impedido de ser usado em área urbana. Entendeu-se que a presença de forças blindadas, para restaurar a ação de choque irresistível, deveria se juntar à agressividade e ousadia da tropa a pé, quando esta enfrentava armas coletivas do tipo “technicals”. Durante a Segunda Guerra do Golfo ou Operação Iraque Livre (OIF) esse novo tipo de operação foi testado com sucesso considerado espantoso pelos especialistas, que até então faziam previsões apocalípticas sobre o número de baixas e destruição, que inevitavelmente segundo eles ocorreria. Mas guerras previsíveis nunca ocorreram. E com apenas duas operações sucessivas e um efetivo não maior que o equivalente a um batalhão, a defesa da capital Bagdá entrou em colapso. O número total de baixas em ambos os lados foi relativamente ínfimo. O tipo de operação recebeu o codinome “Thunder Run”.

Na Ucrânia, em setembro de 2022, o exército ucraniano lançou uma operação do tipo “Thunder Run” na província (Oblast) de Kharkiv, no nordeste do país. E de novo este tipo de operação se provou extremamente eficiente, causando o colapso da defesa russa, embora sofrendo um número de baixas maior do que o previsto.

Figura 1 – Soldados ucranianos ocupam teto de prédio em Kupyansk. Foto Reuters.

A ORIGEM DO TERMO “Thunder Run” remonta à guerra do Vietnam e nada tem a ver com o atual tipo de operação militar. Naquele conflito, os soldados do Vietnam do Norte e guerrilheiros comunistas atuando no Sul costumavam espalhar minas pelas estradas e vias de acesso das regiões onde atuavam, para dificultar o uso destas pelas as tropas americanas ou sul vietnamitas, a pé ou motorizadas, retardando-as desta forma e dando tempo para que os guerrilheiros ou soldados regulares se retirassem diante do poder de fogo vastamente superior dos americanos [2]. Para contornar isto, tropas americanas da 11ª. Divisão de Cavalaria Blindada desenvolveram o método que consistia em por dois carros de combate (CC) M-48 escalonados e estes trafegavam na estrada de interesse, causando a explosão das minas, porém sem sofrer danos consideráveis. Desta forma o apelido se estabeleceu entre a tropa e ficou na memória do US Army [3].

NA SEGUNDA GUERRA DO GOLFO haviam dezenas de previsões para o número de baixas que os americanos, a coalização e os iraquianos e seus voluntários sofreriam quando houve a tomada de Bagdá, segundo a doutrina clássica. O exemplo citado era a Batalha de Manila na 2ª. Guerra, onde a cidade foi arrasada e cerca de 100.000 civis mortos, pegos entre os fogos japoneses e americanos. A cidade ficou arrasada, com bairros inteiros desaparecidos sob pilhas de escombros [4]. Por outro lado, a lição de Mogadíscio estava viva: a opinião pública americana não suportaria a imagem de baixas americanas, levando a liderança política do país a evitar novas “aventuras” sem sentido. E se no Chifre da África as forças americanas perderam 18 homens, a projeção de milhares de mortos e feridos, somada a cenas de violação dos cadáveres dos combatentes americanos, seria insuportável para o público atual. Sabendo disto, as forças aglutinadas na defesa da capital iraquiana estavam equipadas com os chamados “technicals”, que são utilitários comerciais que recebem alguma arma coletiva na sua caçamba, variando desde uma simples metralhadora até peças de artilharia leve, canhões sem recuo ou mesmo canhões retirados de antigos CCs. Estavam de fato prontos para enfrentar um ataque típico de Infantaria a pé, realizado com tropas de elite liderando (tipicamente paraquedistas) e luta de casa em casa, de forma não a manter uma dada região, mas causar o máximo de baixas nos invasores. Mas a invasão, ao invés de lenta e metódica, veio na forma de uma incursão de FT Blindada, valor batalhão, que também não estava preocupada em ocupar ou manter nada, mas sim causar o máximo de dano aos defensores e penetrar o máximo na capital, demonstrando aos defensores a sua incapacidade de conter os atacantes, que podiam ir onde queriam [4]. O material empregado e efetivo,até hoje para os casos estudados, indica a formação de uma FT forte em CCs, com cerca de dois esquadrões (30 carros) apoiados por uma companhia de fuzileiros blindada (15 CBTPs) e mais um destacamento mecanizado de apoio. A descrição completa pode ser achada em diversos trabalhos, como por exemplo o texto de Hayes e Sugarman [5].

Na TOMADA DE BAGDÁ, no final da chamada Operação Iraque Livre, a 3ª Divisão de Infantaria do US Army chegou aos arredores da cidade milenar,  capital do Iraque, com 5 milhões habitantes e cortada ao meio pelo rio Tigre. Nela havia o chamado “distrito do regime”, onde se situava o centro do regime de Saddam Hussein. A cidade estava defendida por diversas unidades de elite deste regime, a chamada Guarda Republicana (GR), e por fedayeen (“os que se sacrificam”, guerrilha composta por mercenários e religiosos). Pelo histórico, armamentos e experiência anterior em combate, as divisões da GR foram consideradas como “peer” (par, no mesmo nível) pelo US Army. No papel, a cidade de Bagdá poderia se tornar um pesadelo de baixas para os americanos. Mas o comando da 3ª. Divisão sabia através de seus informes de inteligência e coleta de imagens que não havia obstáculos integrados bloqueando as principais vias de acesso na capital e que o efeito dos ataques aéreos tinha sido o de causar deserções em larga escala e continuamente entre os defensores. Assim sendo, o comandante decidiu abandonar o plano inicial de batalha e executar um Reconhecimento em Força do tipo “Thunder Run”. Não haveria mais um cerco clássico e sim uma série de penetrações rápidas, feitas por um efetivo bastante reduzido, de forma a abalar física e psicologicamente o regime de Saddam Hussein [6]. Se estes reconhecimentos em força pudessem penetrar continuamente a capital sem sofrer grandes baixas, era de se esperar que a desmoralização no regime fosse enorme, já que não controlava a própria capital e assistia ao inimigo perambular pelo seu santuário sem ser impedido ou sofrer baixas. Uma das brigadas da 3ª Divisão foi incumbida de realizar a missão e seu comandante realizou duas “Thunder Runs” com efeitos devastadores sobre o inimigo. Após a primeira missão ficou claro que a defesa iraquiana estava fraca e descoordenada, que não havia fogos amarrados em torno de obstáculos e armadilhas, e por fim seus contra-ataques não conseguiam afetar o movimento da tropa. Desta forma, caso houvesse capacidade de suprimento, a força atacante seria capaz não só de tomar os objetivos como também de mantê-los. A Figura 2 apresenta a rota geral seguida pela FT durante a operação.

Figura 2 – Rota seguida pela FT durante a primeira operação tipo “Thunder Run” realizada em Bagdá, 05/04/2003. São listados os diversos objetivos intermediários, sendo o principal o aeroporto. Fonte: Hayes e Sugarman [5].

A segunda operação foi decisiva e causou o colapso do regime. Começou em 7 de abril de 2003, através de uma brecha em um campo minado após barragem de artilharia pesada, efetivamente imobilizando o inimigo. Os americanos penetraram 20 km em duas horas e tomaram o coração de Bagdá. A partir deste ponto, a força se fixou na região e passou a receber suprimentos e unidades de reserva. A mídia mundial divulgou que a GR havia sido derrotada na capital. Houveram contra-ataques, mas sem efeito prático. A partir daí o regime entrou em colapso. O Aproveitamento do Êxito foi executado por outras unidades, mas o conflito já havia deixado de ser entre pares. A Figura 3 apresenta um esboço da rota seguida pela FT durante a segunda Thunder Run, em 07/04/2003. Recomenda-se a leitura do trabalho do major Nicolas Fiore, do US Army [6], que serviu de base para esta seção.

Figura 3 – Rota seguida pela FT durante a primeira operação tipo “Thunder Run” realizada em Bagdá, 07/04/2003. São listados os diversos objetivos intermediários, sendo o principal o palácio presidencial. Fonte:  Hayes e Sugarman [5].

NA PROVÍNCIA DE KHARKIV, no início de setembro de 2022, as forças de defesa da Ucrânia lançaram uma contraofensiva para sua retomada. Este ocorreu simultaneamente com outra ao sul, no “Oblast” de Kherson. Assim como no Iraque, as mesmas condições foram detectadas nestas regiões: baixa moral da tropa inimiga, superioridade de potência de fogo, superioridade tecnológica, inteligência (ocidental) disponível e desorganização situacional [7].  Como na Batalha de Bagdá, o efeito psicológico foi muito maior do que o militar, mas para a condução geral do conflito teve valor muito superior do que qualquer vitória militar de mesmo porte, valor intrínseco das “Thunder Runs”. A execução se deu com um combinado de CCs T-72, “technicals” e Humvees. O pânico se espalhou pelos defensores russos, que abandonaram suas posições e uniformes, fato explorado pela máquina de propaganda ucraniana e ocidental. Some-se a isto material capturado intacto, munições, carros de combate e toda a parafernália bélica abandonada pelos defensores. As evidências até agora disponíveis indicam que os ucranianos foram capazes de operar com grande habilidade este tipo de manobra, que requer audácia, habilidade, coesão e capacidade de identificar pontos fracos do inimigo no terreno durante a operação, sendo capaz de recuar em caso de necessidade real e de causar o máximo de dano sempre. Porém, neste caso, a vitória foi localizada e o exército russo ainda dominaria grande parte do território ucraniano tomado desde o início do conflito. Somente este tipo de manobra não foi ou será capaz de remover o inimigo do solo ucraniano e o conflito segue sem solução à vista até o presente (recomenda-se a leitura de referência [7]).

Os fatos aqui narrados são ainda muito recentes e ainda reportados em blogs, pela mídia comercial e congêneres. Ainda não há fontes primárias disponíveis, tais como assessores militares que estiveram no terreno, Forças Especiais estrangeiras apoiando os envolvidos e profissionais que tenham participado nas operações em setembro de 2022. O que se sabe é que se configura um conflito de alta complexidade, que combina aspectos de assimetria com guerra clássica [8], sendo que alguns especialistas já a classificam como sendo de “5ª. Geração”, combinando exatamente esses dois aspectos [9].

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

As Thunder Runs, especificamente, e as pré-condições e limitações para execução dos chamados Reconhecimentos em Força são de conhecimento de todos os grandes exércitos do mundo. No caso da Batalha de Bagdá, a análise formal da 3ª. Divisão de Infantaria do US Army (“After Action Review”) afirma que: ”Esta guerra foi vencida porque o inimigo não conseguiu se opor aos nossos veículos blindados… Durante as operações militares em terreno urbano, nenhum outro sistema de combate em nosso arsenal poderia ter entregue sucesso similar sem trazer um número enorme de baixas.” [4]. Este parece ser o aspecto que difere as “Thunder Runs” das operações clássicas de Reconhecimento em Força: a combinação de efetivo relativamente pequeno (batalhão) e a característica de força tarefa blindada, que se move rapidamente. Um eventual Aproveitamento do Êxito pode ocorrer, mas não é o foco principal da operação. O foco principal deste tipo de operação é o golpe psicológico profundo, desferido no coração da liderança inimiga, causando desestabilização e posterior colapso.

Referências

[1] – Guderian, Heinz W., “Achtung – Panzer! The Development of Tank Warfare”, Edição em Inglês: George Weidenfeld & Nicholson, Londres (2007);

[2] – Starry, D. A., “Mounted Combat in Vietnam”, Dept. of the Army, Washington (2002);

[3] – American Military History. “The Original ‘Thunder Run’ Was a Way to Clear Minefields”. Disponível em: https://www.military.com/history/original-thunder-run-was-way-clear-minefields.html Acesso em 01/01/2023;

[4] – Mien, G. S., “’Thunder Runs”: Panacea FOR Urban Operations?”, Singapore Mininstry of Defense. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwjO6oqzvqf8AhXeqJUCHYAYBWYQFnoECBIQAQ&url=https%3A%2F%2Fwww.mindef.gov.sg%2Foms%2Fcontent%2Fimindef%2Fpublications%2Fpointer%2Fsupplements%2FLDAC%2F_jcr_content%2FimindefPars%2F0008%2Ffile.res%2FThunderRun.pdf&usg=AOvVaw2y6MZj5bOY9Is0AzipNDVD Acesso em 01/01/2023;

[5] – Hayes. R. E. and Sugarman, K., “Thunder Runs into Baghdad: The Impact of Information Age Command and Control on Conflict”, 11th International Command and Control Research and Technology Symposium (ICCRTS), Cambridge, UK, (2006).

[6] – Fiore, N., “The 2003 Battle of Baghdad”, Military Review, pp 127 – 139, Spt-Oct 2020.

[7] – Teuscher, C., “Ukraine’s Thunder Runs”, Disponível em: https://medium.com/@carson.teuscher/ukraines-thunder-runs-b38a6bf83440 Acesso em 03/01/2023;

[8] – Carvalho, E. A.; Carvalho, R. A., “Guerras Assimétricas e as Transformações Decorrentes nos Ramos Operativos dos Exércitos: Como os Conflitos Assimétricos forçam a Adição de novas Habilidades em Cada Ramo Específico das forças Blindadas”, 2ª. Edição, Olinda: Livro Rápido Editora, (2019).

[9] – Montenegro, F. G. A., Depoimento à ADESG, Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ld_7tw_136g Acesso em 03/01/2023.

Dos mesmo autores Série Reflexões Teóricas Sobre Conflitos Assimétricos,
Acesse:

Parte I – Introdução ao Momento Atual Link
Parte II – o Grupo de Combate de Infantaria Blindada e seus Meios Link

Parte III – A Engenharia de Combate Blindada como parte integrante das Forças-Tarefa Link

Parte IV – Artilharia, a Arma Precisa Link 
Parte V – Cavalaria Blindada nos Espaços Confinados Lin
Parte VI – O Papel dos demais Ramos Operativos e Conclusões Finais

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