Entrevista concedida a Cosme Degenar Drumond,
Diretor de Redação Revista Defesa Latina
degenar@terra.com.br
A indústria de defesa é um conceito criado durante a Guerra Fria. Além de produzir equipamentos de alto valor tecnológico, suas pesquisas de laboratório geram o chamado efeito dual – novas tecnologias e materiais que facilitam o cotidiano da humanidade. Nos países avançados, o setor é estratégico, recebe o apoio do Estado, seu único cliente, e contribui com o processo de desenvolvimento sócio-econômico nacional.
O Brasil é um país com vocação nessa área, desde o período colonial quando as primeiras fábricas de armas produziam canhões e munições, suprindo as necessidades mais básicas da defesa nacional. Mas, a indústria de defesa não era tratada pelo Estado com a devida relevância que projetava.
Na década de 1990, crises econômicas e eventos geopolíticos internacionais levaram os países desenvolvidos a reorganizar suas indústrias de defesa, adequando-as aos novos tempos projetados. No Brasil, a indústria de defesa debateu-se por um longo período de dificuldades, chegando à beira da extinção, antes que finalmente o Estado voltasse sua atenção para o segmento.
Hoje, o panorama brasileiro é diferente daquele do passado. A Estratégia Nacional de Defesa, criada em 2008, vinculou a indústria de defesa aos interesses do Estado, como instrumento participativo do processo de desenvolvimento do país. A reorganização industrial teve início, partindo praticamente do zero, em razão do período de estagnação do setor. Novos programas estratégicos foram criados nas Forças Armadas, priorizando a participação do parque nacional nesses processos. Mas muito ainda terá que ser feito.
Segundo analistas do setor, uma estrutura de defesa autônoma, consistente e eficaz depende, primeiramente, do convencimento da sociedade sobre sua importância para o país; em seguida, vem a identificação das capacidades fundamentais a sua constituição. A sociedade respondeu favoravelmente, através do Congresso Nacional. O processo seguinte está se desenvolvendo, com boas expectativas de consolidação. Entidades representativas do setor participam do processo, entre as quais a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), criada em meados da década de 1980.
Para falar sobre o trabalho desenvolvido pela Abimde nessa caminhada e dos obstáculos que ainda precisam ser removidos para consolidar a indústria, o engenheiro Sami Youssef Hassuani, novo presidente da Associação (ele tomou posse no cargo em 31 de janeiro último), conversou com Cosme Degenar Drumond. Eis a entrevista concedida na primeira semana de fevereiro.
Como está a ABIMDE, hoje?
A ABIMDE está bem estruturada e consolidada. A Associação congrega praticamente todas as Indústrias de Defesa e Segurança do Brasil, com grande representatividade nacional.
Na sua percepção, qual é a fragilidade da indústria de defesa?
A maior fragilidade ainda é a falta de crédito para novos desenvolvimentos e para atividades de exportação. As compras governamentais de oportunidade no exterior também são uma ameaça constante para a indústria de defesa, um artifício que, em minha opinião, só deveria ser usado em caso de risco de conflito, como compra emergencial. Na compra de oportunidade no exterior, o preço pode ser convidativo, mas o país e sua indústria perdem mercado, sobretudo as pequenas empresas do setor.
Outra ameaça ao setor é a contratação de alguns programas estratégicos junto a grupos estrangeiros. Por quê? Porque o prime estrangeiro só vai oferecer Offset. Os programas de compensação são um prêmio de consolação à indústria nacional, com o possível aprendizado de técnicas industriais e não de tecnologias inovadoras. Esta é a diferença entre empresas líderes e empresas seguidoras.
Qual a melhor solução para beneficiar a indústria de defesa?
Prosseguirmos no diálogo com o Governo, que tem a mesma visão, na viabilização de crédito barato e contratação de programas mais regulares junto à indústria nacional. Nas épocas de crise conjuntural é preciso que a indústria mantenha um nível mínimo de atividade para poder retomar seu crescimento com segurança quando as condições econômicas melhorarem. Na área de defesa, não se pode encolher a empresa indefinidamente. Muito vezes é mandatório operar com prejuízo para manter a competência crítica instalada.
Os bancos costumam perguntar aos empresários do setor: “Se você tinha pouca encomenda, porque manteve trezentos funcionários? Por que não ficou só com cinquenta?” O problema é que, se a empresa ficasse com apenas cinquenta, quando assinasse o próximo contrato não conseguiria crescer, executá-lo e gerar lucro. Por outro lado, se o contrato demorar a ser assinado e o prejuízo persistir por vários anos, a empresa estará novamente em risco, especialmente pelo crédito a custos proibitivos. Este é um ciclo perverso que precisa ser interrompido. Só existe uma solução: crédito mais barato e volume de encomenda mais constante, ainda que pequeno.
Sobre as empresas cem por cento brasileiras, como o senhor vê a ABIMDE tendo nos seus quadros empresas de capital estrangeiro?
Do ponto de vista mercadológico, a convivência com elas é harmônica e desejável. Eu não vejo problema comercial nisso. Agora, analisando sob o aspecto estratégico, se o Estado quiser realmente ter autonomia tecnológica, temos que privilegiar a indústria brasileira. Só se pode contar com ela. Numa situação de ameaça, de disputa política ou agressão à soberania, o que vai pesar é aquilo que de fato você tem dentro de casa. O arcabouço legal tem caminhado nessa direção.
A ABIMDE está trabalhando na busca dos mecanismos?
Estamos trabalhando em conjunto com o governo e as Forças Armadas para criar o arcabouço legal, porque o país entende essa diferença. A regulamentação deve sair em breve. Não há nada de errado em ter empresa de capital majoritariamente estrangeiro no Brasil. No plano estratégico, porém, ela não é e não pode ser igual às empresas de capital nacional.
Como isso deveria funcionar para diferenciar uma da outra?
Para as brasileiras, seria a adoção de medidas para acesso mais fácil ao crédito, de contratação de programas e alocação de orçamentos consistentes e menos contingenciados. As empresas brasileiras estratégicas têm tantas restrições para operar que não podem entrar numa fila padrão. Na hora de operar são corretamente controladas pelo Ministério da Defesa, Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, pelos órgãos ambientais, por mecanismos internacionais e ainda sofrem pressões de outros governos no exterior como nenhuma outra indústria sofre.
Na hora que precisam e buscam uma linha de financiamento, pegam o mesmo guichê de todas as outras. Este é um ponto que vem sendo trabalhado intensamente pela ABIMDE junto ao MD, MPOG, MF, BNDES e FINEP, na busca de uma solução para o setor.
Há empresas filiadas à Abimde que trabalham com tecnologia pura. Existem as que prestam serviços e que representam outras empresas. Este é o rosto do setor: empresas de base tecnológica convivendo com as de representação. Isso atende os interesses diretos da indústria brasileira de defesa? Qual o seu comentário a respeito?
Não existe conflito neste relacionamento. É importante salientar que a ABIMDE não faz negócios. Sua finalidade é congregar, sumarizar as demandas e representar o setor. Tudo o que a Abimde conquista, atende às suas afiliadas. A Abimde possui entre suas afiliadas, empresas de capital estrangeiro e empresas que representam grupos estrangeiros. O mundo hoje é global, não dá para ficar sozinho, porém existem princípios básicos que não podem ser perdidos.
O importante é manter-se a distinção entre as empresas nacionais e as estrangeiras, conforme já citado anteriormente. A ABIMDE tem um estatuto que preserva essa condicionante. Não pode ter um Conselho Diretor controlado por grupos estrangeiros. Nosso estatuto não permite isso, mas permite que esses grupos venham a somar. O nosso estatuto foi bem elaborado, é inteligente. Se deixar solto é como uma empresa na Bolsa, em que qualquer um vai lá, compra as ações e se apodera do capital votante.
Acompanho o trabalho da ABIMDE desde a sua fundação. Nos últimos anos, a associação amealhou conquistas importantes para o setor, depois de uma sintonia perfeita com os órgãos do governo e outras entidades civis. Esse casamento foi fundamental para os resultados obtidos?
De dez anos para cá tem havido uma forte conscientização do governo e do país com a defesa. Várias frentes foram atacadas: consolidação do Ministério da Defesa, fortalecimento e crescimento da ABIMDE, criação do COMDEFESA na FIESP, relacionamento do setor com FIRJAN e CNI, cooperação APEX, valorização do setor frente à ABDI/MDIC, FINEP e BNDES, enfim uma infinidade de ações convergentes.Obviamente que no início houve alguns desencontros, mas ao longo dos anos os trabalhos acabaram se ajustando. Obtivemos várias conquistas, porém elas precisam ser completamente implementadas e/ou regulamentadas para que possamos, de fato, usufruir dos benefícios. Alguns mecanismos como a emissão de garantias de contrato já foram regulamentos, mas ainda são de difícil utilização.
Como o senhor vai trabalhar à frente da Abimde nos próximos dois anos?
Eu tenho uma prioridade maior, porque se houver mais de uma não se faz nenhuma…
…essa prioridade abrange, por exemplo, o capital humano no setor?
O capital humano é importante, porém ele não poderá existir ou ser mantido caso não haja programa. Não faz sentido para a indústria desenvolver pessoas e processos para domínio de material composto se não houver o que ser construído com ele. Não existirá cooperação científica, avanço educacional, criação de empregos e tecnologia, se não estivermos lastreados em programas. No setor de alta tecnologia e inovação, tudo começa com o Programa.
O que vamos buscar como prioridade? Simples: Programas para a Indústria de Defesa. Obviamente que os programas não podem ser inventados. As Forças Armadas e o Ministério da Defesa já discutiram por vários anos os programas que o país precisa. Os programas já estão mapeados e aprovados até pelo Planalto, pelo menos a grande maioria. Falta apenas implementar. Tenho a convicção que poderemos iniciar um novo ciclo de desenvolvimento nacional lastreado em conhecimento e inovação, bem diferente dos ciclos de desenvolvimento anteriores que o país vivenciou.
Tudo o mais é consequência do programa?
O resto é decorrência. Alguns podem perguntar: como a indústria nacional irá atuar para atender a todos os programas? Não seria muita pretensão? Algumas tecnologias não estão dominadas, então teremos que fazer convênios com os institutos de tecnologia do país, trazer um parceiro internacional para ajudar, alimentar as pequenas empresas, criar empregos, pagar impostos e exportar.
O importante é que as empresas brasileiras estejam na liderança do processo. A prioridade da ABIMDE é trabalhar para que os novos programas sejam implementados pela indústria de defesa do Brasil. Os programas existem, têm apelo e são do Estado. Se forem feitos com a indústria nacional o país vai ganhar conhecimento tecnológico, novos empregos e terá um produto de altíssimo valor agregado.
Na minha visão, qualquer outra equação que não comece com programa não resolve.
O capital humano surge com o programa?
Sem dúvida. Foram cogitados vários convênios com o IME e com o ITA, além de outros Institutos Tecnológicos de primeira linha, para que, todos os anos, mais de 50 engenheiros com vocação específica para a defesa venham para a indústria. Porém é preciso perguntar: quem vai precisar deles e vai dar emprego a eles? O programa é o principal. Tem que estar tudo casado. Os outros países fazem isso de forma concomitante.
O Brasil precisa seguir o Benchmark do setor que diz o seguinte: o conjunto de programas de defesa deve ser selecionado visando atender as prioridades do Estado / Forças Armadas e as necessidades da indústria para manter-se a capacidade instalada. Existem estudos que mostram que muitas vezes 50% dos programas de defesa americanos são priorizados pelas Forças Armadas e os outros 50% são priorizados pelo empresariado, em coordenação com as Forças Armadas, visando atender a capacidade de mobilização do país e a manutenção do capital humano voltado ao desenvolvimento tecnológico e à inovação, tão necessários ao país.