"A lista é longa e começa por não ter começado a tingir meus cabelos". Barack Obama já estava ao fim dos 60 minutos de sua fala no evento "Cidadão Global", promovido pelo Valor, Santander e AAdvantage, quando foi indagado sobre o que lamentava não ter sido possível fazer em sua vida pública.
Ao responder, com bom humor e velada referência ao sucessor, à pergunta do diretor geral da Infoglobo, Frederic Kachar, o ex-presidente dos Estados Unidos não fugiu à responsabilidade pelo que aconteceu em seu país depois de ter deixado a Casa Branca.
Disse lamentar não ter sido capaz de aproximar as posições que se radicalizaram depois da grande crise financeira de 2008. "Conseguimos evitar uma grande depressão no país, mas não fomos capazes de nos aproximar das pessoas que se frustraram com a crise.
A polarização e ódio aumentaram. Não fui capaz de evitar isso, ainda que seja injusto dizer que o presidente tenha sido o único responsável", afirmou. "Mas a boa notícia é que não podemos contribuir apenas como presidente. Tenho pelos menos 30 anos pela frente para tentar levar uma mensagem de esperança não apenas para os Estados Unidos mas para o resto do mundo".
Obama atribuiu a frustração das pessoas não ao capitalismo, "responsável por uma economia mais próspera", mas à concentração de renda.
"A globalização nos deu benefícios incríveis, o mundo está mais seguro e mais educado do que em qualquer outro momento da história", afirmou, ao ponderar que se vive o melhor e o pior dos momentos. "Mas a globalização também enfraqueceu a condição dos trabalhadores para conseguir salários mais justos.
Em um mundo em que apenas 1% controla a riqueza não veremos estabilidade política. As economias não crescem com sucesso quando se tem muita concentração de riqueza sem expansão da classe média. É preciso que a nova economia funcione para todos".
A saída contra a xenofobia, o populismo e o nacionalismo, para o ex-presidente americano, passa pela trilogia da tolerância, estado de direito e pluralismo. Minutos antes, em palestra que antecedeu a de Obama, o principal colunista econômico do "Financial Times", Martin Wolf, dissera que, depois da crise de 2008, 80% da população do mundo desenvolvido teve sua renda estagnada.
Entre os feitos de sua vida pública que o orgulham, Obama mencionou a reforma do sistema de saúde, que teria incluído 20 milhões de pessoas e hoje está sob ataque de Donald Trump.
Citou ainda o acordo com o Irã que tirou este país da rota seguida pela Coreia do Norte: "Quando assumi, já era tarde demais para um acordo com a Coreia do Norte, mas o Irã exportava problemas para a região e para outras partes do mundo.
Percebi a oportunidade de evitar o desenvolvimento de armas nucleares naquele país. Levou sete ou oito anos de trabalho, mas deu certo. Temos diferenças e tensões entre nós, mas o problema foi solucionado sem um único tiro."
Sem citar nominalmente seu sucessor, ao qual se referiu como "a pessoa que me substituiu", Obama fez dura crítica ao belicismo da geopolítica na nova ordem mundial: "Precisamos de uma diplomacia forte para assegurar a paz. O poder das ideias é mais importante do que a força militar. Não podemos resolver os problemas do mundo só com tanques e aviões".
Ao alertar contra o tom supremacista da política externa americana – "Quando países dizem que são melhores que os outros, sabemos onde isso termina" – não deixou alternativa à plateia senão a comparação com o sucessor.
Numa outra crítica velada a Donald Trump, que tirou os Estados Unidos do Acordo de Paris sobre o clima, Obama disse ver com naturalidade a divergência sobre os meios e os custos para se enfrentar o aquecimento global, mas que não era possível negá-lo.
Tanto em seu discurso quanto nas respostas às perguntas que lhe foram dirigidas, Obama fez uma profissão de fé na política. Disse que há tecnologia para se solucionar quase todos os problemas do mundo e que é a política – ou a ausência dela – que bloqueia sua resolução.
Citou as filhas – "Elas passam muito tempo digitando no celular e lhes pergunto, por que não se encontram com seus amigos cara a cara?" – para dizer que um dos maiores desafios da contemporaneidade é fazer com que as pessoas discutam, "não necessariamente para concordar com tudo o que o outro diz".
Citou o poder da internet tanto para conectar as pessoas quanto para espalhar ódio e terror: "Estamos mais conectados, mas muitas vezes nos refugiamos em tribos e bolhas. Não trocamos impressões, o que vemos é aquilo que um algoritmo diz que devemos ver".
Citou a Fox News e o "The New York Times", nos Estados Unidos, como filtros de dois mundos completamente diferentes. "Eu não votaria em mim mesmo se assistisse apenas a Fox News", disse, arrancando risos na plateia, antes de concluir que é pelo estímulo à divergência que se fortalece a democracia: "Ficamos tão seguros de nossas crenças que excluímos opiniões que não se encaixam nelas."
Disse que a única maneira de "curar" a democracia é aumentar a participação política e renovar o poder, que se ressente quando é ocupado pelas mesmas pessoas por muito tempo, sem sangue ou ideias novas: "Se ainda fosse presidente, a Michelle não estaria mais comigo".
Reconheceu ameaças autoritárias em todo o mundo, mas disse não acreditar que o futuro pertença aos autocratas. Ao ser indagado sobre o poder da educação, o ex-presidente citou Cingapura. "É um país pequeno, não tem nada lá, mas seu povo é extraordinariamente bem educado e o país está indo muito bem, ao contrário de muitos países grandes e com muitos recursos naturais – não vou dizer que países são esses [risos da plateia] – que estão em outra direção".
Disse que o investimento em educação deve privilegiar a primeira infância, quando o cérebro da criança funciona como uma esponja para absorver estímulos. Foi aplaudido ao rechaçar investimentos em educação a partir de um viés de gênero ou raça.
Fez propaganda da fundação que leva seu nome e à qual passou a se dedicar depois de deixar o poder. "Ser presidente te dá uma boa cadeira para observar o mundo", disse, numa referência singela ao comando da maior potência mundial. "Foi assim que decidi que o melhor que posso fazer é emprestar meus esforços para treinar jovens e fazer com que eles se envolvam nas questões de sua comunidade. Eles estão dispostos a mudar o mundo. Eles nos inspiram e nós os encorajamos. É assim que se resolvem os problemas. A solução não vem do topo, mas da mudança com quem está ao seu lado".
Indagado por Kachar sobre a mensagem que deixaria para um país imerso em uma crise política e econômica sem precedentes, o ex-presidente americano não se imiscuiu na política interna brasileira mas voltou-se para sua plateia de empresários, banqueiros, profissionais liberais e artistas: "Em muitos países, as pessoas dizem que odeiam os políticos e o governo, mas o governo e os políticos são um reflexo de nós mesmos. Se uma sociedade é saudável, a política também será. Se uma sociedade é doente, a política também será."
Com leveza, o ex-presidente americano compartilhou a culpa pela crise com cada um dos que ali estavam. O recado era duro e, fosse outro o palestrante, face ao grau de esgarçamento da conjuntura brasileira, poderia ter sido recebido com ressalvas, mas foi sob as palmas de uma plateia embevecida que Obama deixou o palco.
Foi a segunda vez que o ex-presidente americano esteve no Brasil. Na primeira, em 2011, veio com a mulher, Michelle, e as duas filhas, Malia e Sasha. Foi recebido pela ex-presidente Dilma Rousseff, em Brasília, e pelo ex-governador Sérgio Cabral, hoje preso.
No Rio, esteve na favela Cidade de Deus, lembrada ontem em seu discurso. O ex-presidente chegou na noite de quarta-feira a São Paulo e pernoitou em um hotel da zona sul.
Sua palestra foi precedida de uma abertura do vice-presidente do Grupo Globo, José Roberto Marinho, do discurso do presidente do Santander, Sérgio Rial, de uma palestra do professor da Universidade de Nova York, Robert Salomon e de uma entrevista pública com o colunista do "Financial Times", Martin Wolf, conduzida pelo editor de internacional do Valor, Humberto Saccomandi.
Ao deixar o evento no Teatro Santander, na zona sul de São Paulo, o ex-presidente americano encontrou-se com 11 jovens de diversas regiões do país que atuam com educação, mobilização social e redução da desigualdade. Depois foi jantar no Fasano, nos Jardins, com um grupo de 12 pessoas. Obama embarca hoje para Córdoba, na Argentina.