LUIZ ANTÔNIO ARAUJO
Aos 29 anos, Alexandre Danielli é integrante de um clube cujos membros podem ser contabilizados nos dedos de duas mãos: o de brasileiros que ingressaram no Marine Corps (Corpo de Fuzileiros Navais americano, ou simplesmente marines). Ele nasceu em Chapecó (SC), cresceu no município próximo de Joaçaba e, em 1999, estudou no Instituto Adventista Cruzeiro do Sul (IACS), na cidade gaúcha de Taquara. Seus avós maternos são de Machadinho, e há primos e tios residindo em Erechim e Carazinho.
O catarinense chegou aos Estados Unidos em março de 2003. Cinco anos e meio depois, após um rigoroso processo seletivo e 18 meses de treinamento, Danielli se tornou marine. Hoje, ele é lance corporal (equivalente a cabo). Sua principal experiência na força foram os sete meses em que serviu em três províncias do sul do Afeganistão, de agosto de 2010 a fevereiro deste ano. Por razões de segurança, ele pede para não identificar os locais. A região é um dos focos da insurgência talibã contra o governo do presidente Hamid Karzai, apoiado pelos EUA.
Ferido em combate, Danielli voltou em março a San Diego, Califórnia, onde vive com o filho, Justus, que fará cinco anos no dia 12 de agosto. Sua visão sobre a guerra é a de um combatente e não de uma observador neutro. Ele defende com veemência a presença americana no Afeganistão, que já custou aos EUA as vidas de 1.680 militares e US$ 2 bilhões por semana.
Nos raros momentos de folga, o marine tratou de conquistar a simpatia de quatro amigos afegãos para o Grêmio, seu time do coração.
– Só lamento que as camisetas tricolores enviadas por meu pai não tenham chegado ao Afeganistão – brinca.
A seguir, uma síntese de seu relato:
Emboscada
“Segundos antes de a mina explodir e mandar pelos ares o veículo em que eu viajava, percebi que cabras e ovelhas haviam sumido da margem da estrada. Não tive tempo de reagir a essa constatação. Quem viaja como atirador num comboio militar tem como principal tarefa manter os olhos atentos num ângulo de 180 graus à frente do veículo e as mãos firmes no gatilho – no meu caso, o de uma metralhadora M240. Numa situação como essa, a adrenalina comanda os movimentos. Naquele caso, havia um ingrediente a mais: sabíamos que seríamos atacados.
Aconteceu em fevereiro deste ano. O comboio em que eu viajava tinha cinco Mraps. É a abreviatura de Mine Resistant Ambush Protected (Resistente a Minas e Protegido de Emboscadas). Esse tipo de veículo começou a chegar ao Afeganistão há quatro anos, em resposta ao fato de que 90% das mortes de militares no país ocorriam por explosões de minas terrestres. O Mrap é mais blindado do que um jipe normal, aguenta mais o tranco. Mas o Talibã não é bobo e passou a utilizar uma quantidade maior de explosivos em suas minas.
Viajávamos em missão humanitária por um ponto do sul do Afeganistão. Você precisa de autorização da base principal da região para esse tipo de deslocamento. O comandante recebe um conjunto de coordenadas e informações de inteligência sobre a região, reúne os homens e faz uma palestra breve. No meu comboio, havia soldados da ex-república soviética da Geórgia – a maioria –, italianos e afegãos. Cada veículo tem, no mínimo, três tripulantes – o motorista, o copiloto e o atirador – e, no máximo, cinco. Passaram-se 40 minutos, e a inteligência nos informou pelo rádio que haveria minas nas estradas, ou seja, que seríamos atacados.
Quando uma bomba explode, você fica surdo. O barulho lembra o de cem filmes de guerra a todo volume. Eu viajava na parte de cima do Mrap, com metade do corpo para fora e uma proteção blindada na altura da cabeça, e fui lançado a uns cinco metros do veículo. Caí de cabeça na areia, como se desse um biquinho numa piscina. Tentei me mexer, parecia que meu corpo estava todo adormecido. Senti uma mistura de dor, desespero e responsabilidade de viver. A primeira coisa que ouvi foram dois, três tiros, que não consegui identificar de que eram nem de onde vinham. Nesses casos, você tem de sair do que se chama Zona X (local da explosão), porque geralmente há outras minas nas proximidades para atingir os que tiverem sobrevivido. Passei a pensar o tempo todo no meu filho, como se ele estivesse em uma daquelas telinhas menores no canto da TV. Percebi que tinha mais mobilidade com os braços do que com as pernas e me arrastei até uma duna. Pensei: “Rápido, vou levar um tiro, vou levar um tiro”.
Atrás da duna, vi dois soldados italianos protegidos. Um deles me puxou pelo colete à prova de balas e disse:
– Porco Dio!
Ele tirou meu capacete para ver se estava mais ferido. Passei a mão pela cabeça e vi que não sangrava. O mais importante é se manter acordado – se você dormir, acabou. Perdi a noção do tempo em que lutei contra a tontura, enquanto os italianos atiravam por cima do banco de areia. Eles me deixaram atrás da elevação, com um rifle, protegendo a retaguarda deles, mas não precisei atirar. Foi quando ouvi os helicópteros e mais tiros. Um dos aparelhos, voando devagar, tinha a cruz vermelha na parte de baixo. Me senti em casa, seguro. Desmaiei.”
Mulheres
“Logo depois de chegar ao Afeganistão, em agosto de 2010, fui fazer a substituição de um grupo num vilarejo. Antes de eles deixarem o local, passamos duas semanas trabalhando juntos, para terminar um projeto que desenvolviam numa escola. Visitamos o local, e o tenente apresentou minha equipe. Ao sair, embarquei no último veículo. De repente, olhamos para trás e vimos uma mulher correndo e acenando. Era algo inusitado naquela região, onde as mulheres simplesmente não podem sair em público ou manifestar carinho ou apreço por nada.
Quando retornamos ao local, depois de três semanas, o comandante comentou com os anciãos do vilarejo que, aparentemente, estava sendo feito um bom trabalho por ali, uma vez que as mulheres já tinham liberdade para sair à rua. Os líderes se entreolharam, e um deles respondeu:
– Estão falando daquela vagabunda? Já cortamos as duas mãos dela. Ninguém acena para quem não é marido, irmão ou pai.
Certa vez cheguei numa casa e estava conversando com o dono. Havia duas ou três portas. Vi as crianças correndo e, de repente, por uma fresta, percebi um olhar adulto espiando com curiosidade. Era a mulher dele. O proprietário levantou-se, desapareceu atrás da porta, e ouvimos gritos. Devia estar batendo nela. Passaram-se 10 minutos, e ela deu um berro gigante. O dono voltou e perguntou:
– Vocês têm um médico?
O paramédico foi até lá. Passaram-se 45 minutos. Eu assistia a tudo, calado. Na saída, perguntei ao paramédico o que havia ocorrido. E ele:
– O marido cortou o nariz dela.
Não podemos interferir na cultura ou na religião deles. O paramédico apenas estancou o sangramento, deixou uma pomada, mandou ela trocar o curativo uma vez por dia.”
Hospital
“A primeira pessoa que vi a minha frente ao acordar foi uma enfermeira.
– Você está no hospital – ela me disse.
Eu perguntei havia quantas horas estava naquele leito.
– Horas? Você está aqui há cinco dias.
Tratei de ver se as pernas, os braços e os dedos estavam no lugar. Estavam. Em seguida, o médico me disse que eu ficara quatro dias e meio em coma, que tinha sido difícil me reanimar e que teria de ser mandado para os EUA. Queria saber onde estava o meu equipamento para mandar buscá-lo. A gente fica com uma coisa de irmandade, sem medo de nada, saudade dos colegas, e eu disse que queria uma chance para me recuperar e voltar ao campo de batalha.
No hospital, vi outra parte da guerra. Havia umas 20 ou 30 camas no meu pavilhão. Um dos meus vizinhos de leito era marine, de Nova York, e havia perdido as duas pernas. Outro, soldado de Los Angeles, tivera o rosto deformado. Ambos tinham entre 25 e 28 anos. Não queriam conversa. Eu ficava tentando puxar assunto. Mas eu era o cara que estava com tudo no lugar, né? Não se pode perguntar ‘Como é que você perdeu as pernas?’ Ou ‘Você tem filhos? Como é que eles vão fazer agora com o pai sem as pernas?’. Tínhamos TV e ficávamos vendo esportes. Eu tentava falar sobre os jogos, eles respondiam ‘sim’, ‘não’, ‘é verdade’, ‘talvez’. Se aparecia uma mulher bonita, o normal seria dizer ‘Pô, que gostosa’. Mas você não vai comentar isso com um sujeito que perdeu o rosto.
Quando entrei nos marines, todos no Brasil me diziam: ‘Você vai ser usado como bucha de canhão’. Quando cheguei ao Boot Camp (treinamento básico para se tornar um marine), ninguém me perguntou de onde eu era. Metade dos recrutas do meu pelotão eram latinos. Todos eram tratados igualmente. Descobri que 40% dos marines são de origem latina. A maioria é de mexicanos, mas há dominicanos, cubanos, hondurenhos. Há inclusive estereótipos. Na força aérea, a minoria mais expressiva é de asiáticos. No exército, já vi negro, latino, branco, é muito parelho. Na marinha, a maioria é de americanos mesmo.”
Bolas
“Foi em setembro de 2010. Saímos em patrulha de sete homens – quatro georgianos e três americanos – para fazer um pagamento a um fazendeiro que tivera um cabrito atropelado pelos soldados italianos.
Caminhamos por cerca de três horas. Chegamos ao vilarejo, com cerca de 20 a 25 casas cor de areia, e vimos que estava vazio, não havia sinal de gente ou de animais. Isso, por si só, já é motivo para ficar alerta.
Quando chegamos perto, começaram a soar tiros de tudo quanto é lado. Refugiamo-nos numa montanha de areia, onde havia um buraco. O último a entrar era o operador de rádio. Um tiro atingiu o aparelho, e perdemos a comunicação. Estávamos sendo atacados por uns 20 a 30 talibãs. Nossa sorte é que eles não atiram bem. A arma mais usada por eles, o AK-47, não tem muita precisão. Começamos a atirar de volta. Usamos sinalizadores (há sempre três sinalizadores, um branco, um vermelho e um verde). Sabíamos que um helicóptero Hilo, muito rápido, demoraria cerca de cinco minutos para chegar onde estávamos. Passaram-se 20 minutos, e achamos que não haveria ajuda. O olhar de medo entre nós era grande, assim como a tensão, e a munição estava prestes a acabar. O tenente disse:
– Infelizmente, acho que não vai ter ajuda. E se algo nos acontecer, é melhor fazer alguma coisa que deixe nossas famílias com paz de espírito. Vamos escrever cartas.
Escrever cartas não é tradição, mas começamos a fazê-lo, com lágrimas nos olhos e nó no peito. Passou-se meia hora. Tínhamos cerca de cem balas. Usávamos fuzis M-4. Pistola não adiantaria numa situação daquelas, e não tínhamos granadas. Por sorte, eles não tinham lançadores de foguetes. Nisso, um companheiro percebeu, ao longe, uma criança correndo. Pouco depois, apareceu um helicóptero e começou a alvejar o inimigo. Em 15 minutos, foram neutralizados. Lembro do sorriso no rosto de todos.
Ao voltar à base, buscamos relatórios para entender o que tinha ocorrido. Descobrimos que nosso pessoal não tinha visto os sinalizadores, e quem percebera o perigo fora o menino que vimos correndo. Dias antes, a Otan estivera no vilarejo e distribuíra bolas de futebol às crianças. O garoto ouviu o tiroteio e relatou à polícia afegã que tínhamos sido atacados.”
Opiniões
“Eu saberia dizer o que é a guerra se não tivesse ido. A guerra é um processo inevitável. Não tem explicação. Eu era totalmente antiguerra. Não acreditava. Fiz manifestações Brasil afora, fui da CUT em Santa Catarina, fui da União da Juventude Socialista, militante de movimentos estudantis e sociais. Achava que os EUA estavam na guerra por petróleo, como toda a imprensa falava. No Afeganistão, não fiz nenhuma missão para proteger interesses americanos pelo petróleo. O direito de extrair petróleo do Afeganistão, ganho por licitação, é da China. A população local quer que a gente fique lá ajudando a estabelecer a paz. Sou a favor de que a Otan esteja no Afeganistão e em outros lugares.
Eu via os muçulmanos por meio de estereótipos. Hoje, tenho conhecimento muito maior do islamismo. Muito do que li não era verdade. Foi interessante uma pergunta que um afegão me fez durante uma patrulha.
– Você é cristão?
– Sou.
– Eu tenho uma dúvida. Por que vocês acreditam que Jesus Cristo é o único filho de Deus?
– Ah, você tem de ter fé.
– Mas vocês não dizem que todo mundo é filho de Deus? Como Jesus pode ser o único?
Aí me perdi, percebi que, mesmo como cristão, não estava preparado para discutir religião, porque é uma questão de fé e não de razão. Outro fator importante entre eles são os confrontos familiares. Conheci um empreiteiro muito bom e disse ao governador da província que iria contratá-lo para realizar serviços. O governador me olhou e disse:
– Fulano? Nunca me traga aquele sujeito. Há 250 anos, um parente dele roubou uma prima minha.
Ou seja, por um problema de 250 anos, não podia trazer meu melhor empreiteiro para trabalhar com aquele governador. Nosso desafio maior naquela região é entender a cultura e os costumes da população.”
Filho
“Quando meu filho viu fotos do Afeganistão que postei no Orkut, perguntou o que eu estava fazendo. Na época, a mãe dele morava em Idaho. O pai dela, Scott Nearing, também foi marine e por pouco não embarcou para o Vietnã. A mãe de Justus mostrava o filme Homem de Ferro 2, onde aparecem locações que seriam o Afeganistão, e dizia: ‘É lá que o seu pai está’.
Depois de cinco meses, ele não entendia por que eu não voltava. Teve uma reação curiosa: começou a bloquear o português. Hoje, ele não fala mais português. Psicólogos dos marines me disseram que a criança encontra uma forma de bloquear você quando se sente abandonada. Se o pai joga futebol com ela todo dia, ela não vai querer mais jogar futebol. Esse processo levaria de um a seis meses.
Minha comunicação com a família era difícil enquanto eu estava no Afeganistão. Consegui falar por telefone quatro vezes em sete meses, quando havia um aparelho por satélite disponível. As ligações eram sempre ruins. A base em San Diego faz um trabalho com filhos de marines. Providencia revistas em quadrinhos que mostram, por exemplo, a história do ursinho que tem um pai militar. Enquanto estive no Afeganistão, eles reuniram todos os filhos na base para mostrar o que os pais estavam fazendo. Criaram um Afeganistão cenográfico, onde Justus brincou com as mesmas coisas que as crianças afegãs brincam: lixo, futebol, soltar pandorga e correr.”