50 anos da Declaração da ONU que originou o Tratado do Espaço


Publicado no  Jornal da Ciência 10 Setembro 2013

José Monserrat Filho

Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB), Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA).

 


O Tratado do Espaço¹, de 1967, definido como "a Carta Magna do Espaço" e o "Código Maior das Atividades Espaciais", é um dos acordos multilaterais mais apoiados pela comunidade internacional. O peso desse apoio aproxima-o da Carta das Nações Unidas, de 1945, cuja universalidade é imbatível. Ratificado por 102 países e assinado por 26, o Tratado do Espaço goza de singular autoridade. Além disso, é reconhecido e aceito por todos os demais países. Ao longo de seus 46 anos de vigência, nenhum de tais países jamais se manifestou contra qualquer de seus princípios e normas. Logo, é também um sólido costume internacional.

Aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 19 de dezembro de 1966 e lançado à assinatura dos países em 27 de janeiro de 1967, o Tratado do Espaço entrou em vigor em 10 de outubro daquele mesmo ano. Seis dias antes, em 4 de outubro, comemoraram-se os primeiros dez anos da Era Espacial, inaugurada em 1957 pelo primeiro satélite feito pelo gênio humano, o Sputnik I, lançado pela ex-União Soviética.

O Tratado do Espaço foi criado em apenas três anos, de 1964 a 1966, em plena Guerra Fria.Isso mostra que, quando há vontade política, obstáculos aparentemente intransponíveis podem ser vencidos e acordos de suma complexidade podem ser discutidos, elaborados e aprovados em relativamente pouco tempo. Especialmente no caso desse tratado histórico, vários dos princípios básicos do qual foram sendo construídos em cinco resoluções aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas nos cinco anos anteriores, de 1959 a 1963. E cujo trabalho de criação teve o privilégio de contar com a direção lúcida, paciente, estimulante e segura do notável internacionalista polonês Manfred Lachs², que, à época, presidia o Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (COPUOS, na sigla em inglês). Daí o comentário, então surgido, de que o direito espacial internacional nasceu em "velocidade cósmica".

Vejamos a evolução das ideias e princípios que conduziram à aprovação da "Declaração dos Princípios Jurídicos Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Exterior", em 1963, e à adoção do Tratado do Espaço, em 1967, respectivamente, seis anos e dez anos após o Sputnik I.

A Resolução 1348, de 13/12/1958, reconhece "o interesse comum da humanidade no espaço exterior e o objetivo comum de uso desse espaço unicamente para fins pacíficos"; leva em conta o princípio da igualdade soberana de todos os membros das Nações Unidas (Art. 2º, § 1º, da Carta); almeja que "as rivalidades nacionais atuais não se estendam a esse novo campo"; deseja "estimular energicamente exploração e explotação do espaço exterior em benefício da humanidade"; reconhece"a grande importância da cooperação internacional no estudo e aproveitamento do espaço exterior para fins pacíficos"; considera que "a cooperação contribuirá para desenvolver a compreensão mútua e fortalecer as relações amistosas entre os povos"; acredita que "todo o progresso esta matéria (desenvolvimento dos programas de cooperação internacional e científica relacionados com o espaço exterior) contribuirá apreciavelmente para alcançar o objetivo de uso do espaço exterior exclusivamente para fins pacíficos"; entre outras considerações.

A Resolução 1472, de 12/12/1959, estima que "o espaço exterior deve ser explorado e utilizado somente em benefício da humanidade e em proveito dos Estados qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico" e cria o "Comitê para o Uso Pacífico do Espaço Exterior" (COPUOS), com os objetivos de "estudar as medidas práticas e possíveis para promover programas de uso do espaço exterior para fins pacíficos", inclusive a "organização de intercâmbio e difusão de informações sobre as pesquisas a respeito do espaço exterior", bem como de "estudar a natureza dos problemas jurídicos que possam ser levantados pela exploração do espaço exterior".

A Resolução 1721, de 20/12/1961, recomenda que, "na exploração e uso do espaço exterior, os Estados se guiem pelos seguintes princípios": a) "O direito internacional, incluída a Carta das Nações Unidas, aplica-se ao espaço exterior e aos corpos celestes"; e "o espaço exterior e os corpos celestes poderão ser livremente explorados e utilizados por todos os Estados, em conformidade com o Direito internacional, e não poderão ser objeto de aprovação nacional"; pede aos Estados que informem ao COPUOS, através do Secretário Geral das Nações Unidas, sobre seus lançamentos para voos orbitais; e ao Secretário Geral que crie um registro público com as informações prestadas pelos Estados sobre seus lançamentos espaciais.

A Resolução 1802, de 14/12/1962, enfatiza a necessidade do desenvolvimento progressivo do direito internacional na elaboração mais detalhada dos princípios jurídicos fundamentais que devem reger as atividades dos Estados na exploração e uso do espaço exterior; a responsabilidade por acidentes causados por veículos espaciais; e a prestação de ajuda a astronautas e veículos espaciais e sua devolução, e outros problemas jurídicos; e encaminha ao COPUOS os diversos projetos já apresentados sobre essas questões.

Por fim, a Resolução 1962, 13/12/1963, aprovou por unanimidade, a "Declaração dos Princípios Jurídicos Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Exterior", que consolida tudo o que fora até então acordado por consenso. Influência positiva sobre sua aprovação exerceu a adoção, em 05/08/1963, do Tratado de Proscrição das Experiências com Armas Nucleares na Atmosfera, no espaço Exterior e sob a Água.

Base para a elaboração do Tratado do Espaço, essa declaração comemora 50 anos, em 2013. Embora não obrigatória, ela é o primeira sistema de normas para as atividades espaciais. E deixa claro que, no início dos anos 60, "a comunidade internacional desejava submeter o uso futuro do universo não habitado, não assentado e desconhecido a regras legais feitas pelos humanos, pelo menos no que diz respeito a suas atividades".³

 Eis a íntegra da Declaração:

      "A Assembleia Geral:

– inspirada nas grandiosas perspectivas que a descoberta do espaço exterior pelos humanos oferece à humanidade;

– reconhecendo o interesse que apresenta para toda a humanidade o progresso da exploração e uso do espaço exterior para fins pacíficos;

– julgando que a exploração e o uso do espaço exterior deveriam efetuar-se para o bem de todos os povos, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico;

– desejosos de contribuir para o desenvolvimento de ampla cooperação internacional no que concerne aos aspectos científicos e jurídicos da exploração e uso do espaço exterior para fins pacíficos;

– julgando que esta cooperação contribuirá para desenvolver a compreensão e para consolidar as relações de amizade entre os Estados e os povos;

– recordando sua Resolução 110 (II), de 3 de novembro de 1947, que condena a propaganda destinada a ou suscetível de provocar ou encorajar qualquer ameaça à paz, ruptura de paz ou qualquer ato de agressão, e considerando que a referida Resolução é aplicável ao espaço exterior;

– considerando suas Resoluções 1721 (XVI), de 20 de dezembro de 1961, e 1802 (XVIII), de 14 de dezembro de 1962, aprovadas por unanimidade pelos Estados-Membros da Organização das Nações Unidas,

proclama solenemente que, na exploração e uso do espaço exterior, os Estados se regerão pelos seguintes princípios:

1 – A exploração e o uso do espaço exterior serão realizados em benefício e no interesse de toda a humanidade.

2 – O espaço exterior e os corpos celestes estão abertos à exploração e uso por todos os Estados, na base da igualdade e de acordo com o Direito Internacional.

3 – O espaço exterior e os corpos celestes não poderão ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio.

4 – As atividades dos Estados relativas à exploração e uso do espaço exterior deverão efetuar-se em conformidade com o Direito Internacional, inclusive a Carta da Organização das Nações Unidas, com a finalidade de manter a paz e a segurança internacionais e de favorecer a cooperação e a compreensão internacionais.

5 – Os Estados têm a responsabilidade internacional sobre as atividades nacionais realizadas no espaço exterior, sejam elas exercidas por organismos governamentais ou por entidades não- governamentais, e de zelar para que as atividades nacionais sejam efetuadas de acordo com as disposições enunciadas na presente Declaração. As atividades das entidades não-governamentais no espaço exterior devem ser objeto de autorização e de vigilância permanente do respectivo Estado. Em caso de atividades realizadas no espaço exterior por uma organização internacional, a responsabilidade pelo cumprimento dos princípios expressos nesta Declaração caberá a esta organização internacional e aos Estados que dela participem.

6 – Na exploração e uso do espaço exterior, os Estados deverão guiar-se pelo princípio da cooperação e da assistência mútua e exercerão todas as suas atividades no espaço exterior, levando devidamente em conta os interesses correspondentes dos demais Estados. Se um Estado tiver razões para crer que uma atividade ou experiência espacial, planejada por ele ou por seus nacionais, possa provocar interferência prejudicial às atividades de outros Estados na exploração e uso pacífico do espaço exterior, deverá promover as consultas internacionais adequadas antes de empreender a referida atividade ou experiência. Qualquer Estado que tenha razões para crer que uma atividade ou experiência espacial, planejada por outro Estado, possa provocar interferência potencialmente prejudicial às atividades de exploração e uso pacífico do espaço exterior, pode exigir a realização de consultas sobre tal atividade ou experiência.

7 – O Estado, em cujo registro figure o objeto lançado ao espaço exterior, conservará sob sua jurisdição e controle o referido objeto e todo o pessoal do mesmo objeto, enquanto se encontrarem no espaço exterior. A propriedade dos objetos lançados ao espaço exterior e de seus componentes não é afetada por sua passagem pelo espaço exterior ou seu retorno à Terra. Estes objetos e suas partes componentes encontrados além dos limites do Estado, em cujo registro estão inscritos, deverão ser restituídos a tal Estado, que, a pedido, fornecerá seus dados de identificação antes da restituição.

8 – Cada Estado que efetue ou mande efetuar o lançamento de um objeto ao espaço exterior, e cada Estado, de cujo território ou base é efetuado o lançamento do objeto, é responsável internacionalmente pelos danos causados por tal objeto a outro Estado ou a suas pessoas físicas ou jurídicas, na Terra ou no espaço exterior.

9 – Os Estados considerarão os astronautas como enviados da humanidade ao espaço exterior e lhes prestarão toda assistência possível em caso de acidente, perigo ou aterrissagem forçada no território de outro Estado ou em alto-mar. Os astronautas que fizerem tal aterrissagem serão devolvidos com segurança e sem demora ao Estado de registro de seu veículo espacial."

O grande problema atual dessa declaração e do Tratado do Espaço, que ela originou, é que eles expressam o melhor ordenamento possível para as primeiras décadas da Era Espacial. Hoje, porém, a situação é bem outra. Em pleno século XXI, as atividades espaciais se tornaram indispensáveis a todos os países e povos, o avanço tecnológico é vertiginoso, as atividades espaciais se ampliam e diversificam, o número de atores espaciais segue aumentando, cresce o perigo de rivalidades e conflitos com o uso militar do espaço cada vez mais alarmante. As armas espaciais se aperfeiçoam sem cessar. Há sinais de uma nova guerra fria. A sustentabilidade das órbitas mais utilizadas está em cheque.

Por tudo isso, urge atualizar e assegurar maior eficácia ao Tratado do Espaço, sobretudo diante das tentativas de substituí-lo por um código de conduta de caráter apenas voluntário, não vinculante, não aprovado nem discutido pelas Nações Unidas e, portanto, sem o reconhecimento universal imprescindível. Isso só vem debilitar o Tratado do Espaço, quando, mais que nunca, é preciso justamente o contrário, isto é, fortalecer e ampliar os seus princípios fundamentais, para enfrentar os agudos problemas do nosso tempo, tanto lá em cima quanto aqui em baixo.

 Nesta hora, nada mais justo do que reverenciar a Declaração de 1963 e o Tratado do Espaço de 1967 como patrimônios jurídicos, políticos e culturais inapagáveis, que apontam o caminho do Estado de Direito e da cooperação lúcida e responsável – hoje perigosamente negligenciados.

* José Monserrat Filho é chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB), Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA).

Referências

1) Nome completo: "Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço exterior, Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes".

2) Manfred Lachs (1914-1993) foi juiz da Corte Internacional de Justiça (Haia, Países Baixos) durante 26 anos, de 1967 a 1993, e presidiu este que é o principal órgão judiciário das Nações Unidas, de 1973 to 1976.

3) Cologne Commentary on Space Law (CoCoSL), Volume 1, Outer Space Treaty, Hobe, Schmidt-Tedd – Schrogl (Editors) and Goh (Assistant Editor); Deutschland: Carl Heymanns Verlag, 2009, pp. 12-13.

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