Frederico Aranha
Historiador
aranha.frederico@gmail.com
A campanha russa na Síria objetiva primeiramente salvar o regime com a retomada do maior número possível de localidades estratégicas perdidas recentemente, transformando esses ganhos militares em uma forte posição para, eventualmente, sentar numa mesa de negociação. É o que se depreende das declarações de Sergei Lavrov, Ministro do Exterior da Rússia, em Viena (24/10): Nossa posição resume-se numa fórmula muito simples – ninguém pode decidir o destino da Síria e do seu Presidente a não ser o povo sírio, fora do campo de batalha, sem revolta e violência, mas pelo diálogo político [1].
Lavrov apenas repercutiu as palavras de Vladimir Putin por ocasião da visita de Bashar al-Assad à Moscou, em 20 de outubro, quando salientou que os resultados positivos das operações militares servirão como base para estabelecer um acordo a longo prazo calcado num processo político que envolva todas as forças políticas e grupos étnicos e religiosos do país (v. http://kremlin.ru/events/president/news/50533). Com sua iniciativa, Putin gerou uma nova situação que previne qualquer ação internacional contra Assad.
Os ataques aéreos têm como alvo prioritário as forças do Exército da Conquista [2] e do Exército Sírio Livre [3] que ameaçam a planície de al-Ghab no noroeste do país, porta de acesso à província de Latakia coração do território da minoria Alauita (bastião do regime) a que pertence Assad, cuja queda constituiria um desastre decisivo para seu governo, sem prejuízo de outros alvos, como as zonas sob controle do Estado Islâmico, mormente a infraestrutura da exploração de petróleo e gás a principal fonte de receita do Califado (v. infomapa ISW).
Para além de apoiar o governo claudicante de um aliado antigo (desde a era soviética) e cliente de armas, a Rússia tem razões estratégicas globais para intervir militarmente na Síria, como se sugere: 1º- aumentar seu peso geopolítico no Oriente Médio; 2º – contrapor-se à influência e poder dos EEUU nessa região do mundo; 3º – combater as organizações jihadistas antes que voltem a agir no Cáucaso, onde já está implatado no Daguestão um Emirado sob controle do Estado Islâmico; 4º – desviar a atenção do Ocidente aos eventos na Ucrânia.
A força conjunta russa, síria, iraniana, com o apoio do Hezbolah visa, apesar das declarações públicas em contrário, eliminar ou neutralizar grupos rebeldes que não pertencem ao Estado Islâmico, por enquanto poupado. Após a guerra do Afeganistão, é a primeira vez que a Rússia se envolve numa operação expedicionária, ainda que limitadamente. Pode a Rússia alcançar objetivos tão ambiciosos com meios limitados? Será que o emprego do poder militar russo no quadro confuso da guerra civil síria cria uma chance verdadeira para alterar a realidade da marcha dos acontecimentos? As respostas a essas questões dependem largamente do armamento que a Rússia está disposta a empregar nesta campanha e como vai utilizá-lo, produzindo com isso consequências políticas profundas. Analisando o arsenal russo em terra, no ar e no mar da Síria, pode-se constatar os esforços da Rússia em atualizar seu equipamento militar.
Plataformas Aéreas [4] e Petrechos [5]
A Rússia deslocou para a Síria uma força de aviões antigos modernizados e aeronaves de última geração, totalizando doze caças bombardeiros SU-24M2, doze aviões de ataque SU-25SM e SU-25UBM, quatro caçasmultirole SU-30SM e seis caças bombardeiros SU-34. O grosso da frota é composto de bombardeiros táticos e de ataque ao solo – os caças SU-30SM proporcionam cobertura aérea, presumivelmente contra outras forças aéreas atuando na região.
A intensidade operacional é moderada, começou com vinte sortidas diárias e chegando a sessenta no momento em que as operações terrestres iniciaram. Atualmente, houve um pico de ataques com mais de quatrocentas missões na semana anterior, mas já vêm diminuindo gradualmente. Os ataques focam alvos estacionários conhecidos, localizados nos pontos de partida da ofensiva e depósitos camuflados de armas, bem como centros de comando e controle dos insurgentes. Na primeira semana os russos miraram equipamento capturado das forças do governo pelos rebeldes, de modo a minar sua resistência.
Desde então, o esforço tem se concentrado no ataque à terra, com vistas à ofensiva a grupos rebeldes em Latakia, Alepo e Hama. Alas de helicópteros Mi-24P e Mi-28 estão também engajadas, atacando posições inimigas a média altitude com grande precaução por causa da ameaça de possíveis manpads (misseis antiaéreos portáteis) em mãos dos insurgentes, afora a artilharia antiaérea convencional (canhões automáticos unitubo e bitubo, calibre 23 e 30 mm) instalada nos utilitários technicals.
Um arsenal de armas guiadas e não guiadas supre a campanha aérea. Apesar do emprego de munição de precisão, bombas KAB-500S guiadas por GPS por meio da rede de satélites GLONASS e mísseis KH-25ML guiados por laser, o grosso do arsenal é de bombas não guiadas – alto explosivas de fragmentação tipo OFAB 250-270, suplementadaspela bomba BETAB-M perfurante (até 1 m de concreto), pela RBK-500-SPBE-D cluster (cacho) de fragmentação contra carros de combate e viaturas blindadas e potentes foguetes balísticos ar-terra. O bombardeio realizado em média altitude com essas bombas carece de precisão, potencializando o risco de efeitos colaterais, porisso os russos estão atacando alvos em campo aberto e estruturas fixas com uma abordagem que se pode chamar de “bastante aproximada”.
A Força Aérea Russa conduz uma campanha de bombardeios relativamente econômica, empregando equipamento moderno de aquisição de alvos combinado com munição velha, ao mesmo tempo que testa seletivamente suas aeronaves de última geração e modernas munições guiadas. A Rússia tem restrições orçamentárias, de modo que dispões de número limitado de munição de precisão para a campanha na Síria, até porque a maioria dos alvos potenciais não valem o uso de munição de tão alto valor. Ao contrário da Força Aérea dos EEUU, a Rússia não pode suprir munições guiada suficiente para destruir os Technicals (utilitários Toyota equipados com canhões antiaéreos ZU-23 e ZU-30, unitubo e bitubo, calibre 23 e 30 mm) que dominam o campo de batalha.
Correria o risco de esgotar essse tipo de munição rapidamente, como ocorreu com forças da NATO na campanha contra a Líbia, em 2011. A propósito da campanha aérea em marcha, o Tenente General russo Yevgeny Buzhinsky declarou ao site Defense News que A Força Aérea Russa começou a usar táticas ocidentais para destruir alvos isolados com armas de alta precisão, mas de modo geral está voando missões tradicionais de ataque ao solo. (…), éa primeira vez que a Força Aérea Russa está empregando munições de alta precisão, disse ele. Disse mais, que a Força Aérea Russa nunca operou para bombardear cidades, territórios e infraestruturas isoladas simplesmente e desde a IIª Guerra Mundial tem sido empregada para apoiar operações terrestres e conduzir a defesa aérea.
Analistas russos creditam a adoção de ataques de precisão nos moldes ocidentais à habilidade da indústria de defesa da Rússia de desenvolver tecnologias avançadas no campo das munições guiadas a partir da década dos anos noventa, ao invés de à receita ditada pela evolução da doutrina e do pensamento militar. A campanha na Síria é uma demonstração impressionante das novas tecnologias militares, como os sistemas de armas guiadas empregadas pela primeira vez em combate, incluindo mísseis ar-terra e os novos mísseis de cruzeiro de superfície Kalibr–NK.
Forças Terrestres
Em apoio à frota aérea foram deslocados para a Síria uma bateria do sistema Pantsir-S1 de defesa antiaérea, uma dezena de carros de combate T-90A, viaturas blindadas, artilharia auto-propulsada (canhões, obuses e sistemas lançadores de foguetes), uma brigada de infantaria naval e tropas de apoio de engenharia. Acredita-se que cerca de 1.700 homens estão em Tartus para ampliar a base naval e reconstruir o píer, na verdade uma doca flutuante. Feitos os melhoramentos, a Rússia poderá atracar ali belonaves de porte da sua frota de superfície.
Enquanto os carros de combate e a infantaria naval destinam-se aparentemente à defesa da base russa, os helicópteros e a artilharia (lançadores de foguetes TOZ1A de 24 tubos, calibre 220 mm, munição com ogivas termobárica, alcance útil de 3.000/3.500 m, dito “lança-chamas” no jargão militar russo) estão engajados apoiando a ofensiva das forças do regime. Supõe-se que forças russas poderão no futuro ampliar sua presença, substituindo forças sírias em outros complexos militares do governo sem entrar em combate. Ao Exército Sírio juntaram-se tropas iranianas e auxiliares do Hezbolah. Não se sabe a real capacidade de combate do Exército Sírio, mas sem dúvida necessita de apoio para ter alguma chance de sucesso. O Irã delocou milhares de homens para a ofensiva contra Hama e Aleppo. Embora a frota aérea russa não tenha sofrido nenhuma perda confirmada, talvez não seja capaz de alterar significativamente o balanço de forças. Os ataques terrestres sírios/iranianos no Nordeste de Latakia e na província Hama obtiveram ganhos iniciais limitados e agora encontram-se num impasse. Enquanto a publicidade está fixada na aviação russa, essa parte do esforço de guerra pode ser mais efetiva em prover momentum e moral do que o apoio aéreo direto.
Poder Naval Russo
Liderado pela Frota do Mar Negro, o esquadrão russo do Mediterrâneo tem como missão principal prover a defesa da zona costeira da Síria, sobretudo a proteção antiaérea. Consiste de dez belonaves deslocadas num esquema de rotatividade, a maioria sendo de navios de apoio, desembarque e inteligência e vigilância, e quatro navios de combate de superfície. Apesar de antiquado, o cruzador lançador de mísseis Moskva [6], da classe Slava, fornece o grosso da capacidade e poder de fogo da frota, incluindo uma variação naval do sistema de defesa antiaéreo S-300. Devido à preocupação de Moscou com as forças aéreas ocidentais operando na região, essa missão naval é um meio conveniente de manter o sistema S-300 perto de Latakia e Tartus sem posicioná-lo em terra, o que poderia provocar problemas especialmente com Israel, pois o sistema cobriria todo o espaço aéreo israelense ameaçando a movimentação da sua Força Aérea, o que a Rússia quer evitar.
De qualquer sorte, os céus da Síria tornaram-se muito perigosos para as doze forças aéreas que atuam na região, em que pese acordos de tráfego aéreo estipulados tacitamente. Já há um tratado formal da Rússia e EEUU em vigor para disciplinar a questão, pois ambos os países pretendem aumentar o número de aeronaves em ação.
O restante dos navios de combate – duas fragatas da classe Krivak e um destroyer da classe Kashin de quarenta e seis anos, não impressionam. A maior parte da Frota do Mar Negro está em docas secas ou estaleiros e os processos de modernização paralisados. A Marinha Russa carece de embarcações modernas de transporte e apoio logístico, a ponto de suplementar sua frota para a intervenção na Síria com navios cargueiros comerciais adquiridos apressadamente da Turquia, ao mesmo tempo que deslocou navios de transporte que estavam em missão logística tão distante como a do Ártico.
Entrementes, a frota do Mar Cáspio equipada com as excelentes corvetas da classe Buyan-M e as fragatas da classe Gepard dispararam mísseis de cruzeiro Kalibr-NK (3M-14T) contra alvos na Síria. Dada a total desnecessidade militar para esse ataque, a ação se prestou para uma publicidade de alto custo com vistas a demonstrar a posse pela Rússia de armas de precisão de longo alcance comparáveis com o famigerado míssil de cruzeiro americano Tomahawk. A flotilha do Mar Cáspio é nova e capaz comparada com a do Mar Negro e o disparo dos mísseis Kalibr pode ser um sinal de que a frota sediada na Criméia será suprida de novas fragatas, corvetas e submarinos modernizados da classe Kilo. Também foram deslocados para o teatro de operações aviões de vigilância e guerra eletrônica IL-20 (equivalente ao Orion americano) equipados com o sistema Krasukha-4 de última geração, possibilitando à Força Aérea Russa não só monitorar como interferir no tráfego aéreo da região.
Dessa forma, a intervenção russa fortalece o esforço conjunto Síria/Irã, porém seu impacto tem sido mais decisivo para alterar omomentum e revigorar o Exército Sírio. Os ataques aéreos têm sem dúvida afetado as forças rebeldes, mas ainda não geraram opções táticas para as forças sírias explorarem em profundidade. Mostram capacidade modesta se comparados, por exemplo, com os da Força Aérea e Marinha americana, embora tenha dado um grande salto em relação ao desempenho na Guerra Rússia-Georgia de 2008, ocasião em que teve papel subalterno – inclusive perdeu vários aviões.
O grande esforço de modernização impulsionado pelas reformas militares e por um duro programa de treinamento em todos os níveis, restarou a competência e capacidade de ponderável parcela das Forças Armadas Russas. A tecnologia russa na área de foguetes e mísseis não só eliminou o atraso, como em muitos aspectos ultrapassou o know-how dos países ocidentais. Sua Força Aérea está tentando emular limitadamente a performance americana na Guerra do Golfo de 1991, com resultados indefinidos ainda, mas indiscutivelmente apresenta um formidável progresso em relação à história pós-soviética da arma. De modo geral, a atuação da Rússia na Síria, seja política, seja militar, é genuinamente representativa de grande potência. Seguramente, é peça chave para a solução do doloroso drama da Síria. (Porto Alegre, 26/outubro/2015)
NOTAS
[1] Comentando as declarações de Lavrov, Fedor Voytolovsky, Diretor do Instituto de Relações Exteriores e Economia Mundial da afamada Academia de Ciências da Rússia, disse que A Rússia está criando as condições para um compromisso de diferentes forças políticas de orientação não terrorista. Graças à intervenção na Síria (…) eles, agora, compreendem a possível participação de Assad num acordo de paz. Alexei Malashenko do Moscow Carnegie Center concorda com ele: A questão mais importante agora, é a participação de Bashar e sua gente num eventual período de transição. Quanto tempo será necessário para ocorrer a transferência de poder para alguém, não se sabe (…). Penso que Assad não vai reinar para sempre. (Disponível em lenta.ru. Acesso em 25/10/2015)
[2] O Exército da Conquista é uma coalização de grupos rebeldes sunitas. Destacam-se o Ahar Ash Sham (Movimento Islâmico dos Homens Livres do Levante), o mais importante, a Frente Al-Nusra, braço da Al-Qaeda, a Irmandade Muçulmana da Síria e muitos outros. Controla e contesta uma grande região no noroeste do país, que inclui parcialmente Aleppo (dominam 40% da cidade e a zona rural), a segunda cidade do país e vital centro rodoviário.
[3] O “Exército Livre da Síria” origina-se da defecção de oficiais e soldados do Exército Sírio que se aliaram ao Movimento de Oficiais Livres, compondo uma grande aliança. Várias etnias e grupos religiosos fazem parte também: palestinos, drusos, curdos, sírios – preponderantemente sunitas, mas contando também com xiitas alauitas da tribo de Assad opositores do regime e cristãos. Atua no sudoeste do país, na periferia da capital e na zona rural adjacente, e se estende até a fronteira da Jordânia, Israel e Líbano.
[4] Plataformas Aéreas
a – Caça SU-30
b – Caça-bombardeiro SU-34
c – Bombardeiro SU-24
d – Aeronave de ataque SU-25
e- Helicóptero de ataque Mi-24
f – Helicóptero de ataque Mi-28
Nota ( Fotos na parte inicial do artigo)
[5] Bombas
KH-25ML
Peso do explosivo: 89 kg
Alcance: 11 km
Velocidade: 1.300-2.400 km/h
KAB-500S
Peso do explosivo: 195 kg
Velocidade: 500-1300 km/h
Precisão: 7-12 m
Alcance: 66 km
[6] Infográfico: Cruzador Moskva.
FONTES DE CONSULTA
http://www.defesanet.com.br/
http://www.e-ir.info/
http://www.defensenews.com/
http://mdb.cast.ru/
http://www.aljazeera.com/
http://vpk-news.ru/
http://asian-defence-news.blogspot.ru/
http://topwar.ru/
http://time.com/
http://www.theguardian.com/international
http://www.nbcnews.com/
http://sputniknews.com/
http://ria.ru/
http://lenta.ru/
http://southfront.org/international-military-review-syria-iraq-battlespace-oct-27-2015/
http://southfront.org/international-military-review-syria-iraq-battlespace-oct-28-2015/
http://www.debka.com/