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Balas Borracha – Íntegra Decisão da Justiça SP

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Balas Borracha – Justiça proíbe PM/SP de usar em protestos Link

O editor

Processo Digital nº: 1016019-17.2014.8.26.0053
Classe – Assunto Ação Civil Pública – Garantias Constitucionais
Requerente: Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Requerido: Estado de São Paulo
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Valentino Aparecido de Andrade

Vistos.
 
1. Examina-se a medida liminar pleiteada pela DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO nesta ação civil pública que ajuizou contra a FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, conhecendo-se, nesse contexto e em cognição sumária, das razões por ela apresentadas em sua peça inicial, cotejando-as com o conteúdo da defesa prévia apresentada pela requerida e com o que veio de alegar o MINISTÉRIO PÚBLICO. Registre-se que algumas matérias preliminares apresentadas pela ré em sua contestação também aqui serão examinadas.
 
E por se admitir a intervenção, a título de "amicus curiae", da pessoa jurídica denominada CONECTAS DIREITOS HUMANOS, de suas razões também se conhece, no mesmo contexto.
 
2. Reconhece-se a legitimidade da DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO a discutir em Juízo a matéria relacionada a interesses difusos, quaisquer que sejam os direitos relacionados a esses interesses, por haver previsão na Constituição da República de 1988 quanto às funções da Defensoria Pública, essencialmente caracterizadas por se direcionarem à proteção judicial dos direitos humanos (artigo 134), categoria jurídica que abarca todos os direitos fundamentais positivados, assim aquele por cuja proteção a autora, DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, está a pugnar nesta ação, que é o direito fundamental de reunião, e direitos nele enfeixados ou dele decorrentes.
 
Direito de reunião, previsto no artigo 5o., inciso XVI, da nossa Constituição de 1988, que é, em essência, um direito de ação coletiva por se caracterizar como um “direito fundamental democrático”, no sentido de que se trata de um direito fundamental concedido a todas as pessoas, incluindo obviamente aquelas hipossuficientes, cuja proteção na esfera jurisdicional é realizada por meio da ação civil pública, que assim pode ser promovida pelas Defensorias Públicas.
 
Com a criação das Defensorias Públicas, o Ministério Público não é mais a única Instituição com legitimidade para a propositura de ações judiciais de proteção a interesses difusos e coletivos.
 
Esse é importante papel é hoje compartilhado com as Defensorias Públicas, o que, de resto, é tanto melhor ao regime democrático, pois é que óbvio que é mais conveniente ao interesse público que o direito de ação não fique nas mãos de uma só instituição, que por algum motivo poderá deixar de fazer o que a Lei lhe determina (a proteção ao interesse público), nalgum caso.
 
Como assinala CANOTILHO ao tratar do direito ao procedimento judicial, os titulares dos direitos difusos têm direito de ação judicial, "de forma a assegurar-lhes não só a possibilidade de contestar qualquer acto da administração de que resulta a violação dos interesses difusos, mas também a obtenção de uma injunção judicial no sentido de fazer cessar as causas de perturbação dos referidos interesses.". ("Estudos sobre Direitos  Fundamentais", p. 83, 1a. edição brasileira, 2a. edição portuguesa, Coimbra-RT editoras). Daí o direito de ação que é conferido às Defensorias Públicas, quando ajuízam ação civil pública na proteção de direitos difusos e coletivos, como se dá nesta ação. Legitimidade ativa configurada, pois.
 
3. Quanto à causa de pedir e pedido, formulados nesta ação civil pública, a análise desses elementos permitirá decidir quanto a alegação da ré de haver continência com uma ação civil pública em trâmite pela 14a. Vara da Fazenda Pública desta Capital, e também quanto à competência.
 
Nesta ação, a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, relacionando em sua peça inicial oito episódios (em uma peça apresentada posteriormente, relaciona alguns outros episódios), busca demonstrar que o direito fundamental de reunião estaria a ser pela ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, obliterado ou de forma indevida restringido, porquanto sua Polícia Militar estaria a agir com acentuada violência e com a finalidade única e principal de eliminar a reunião, agindo assim a pretexto de manter a segurança pública. O objetivo desta ação é, pois, a de provocar o exame pelo Poder Judiciário quanto a dois direitos que estariam a colidir: o direito fundamental de reunião e o direito do Poder Público de agir para a garantia da ordem pública, buscando a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO que se aplique à essa relação jurídico-material o princípio da proporcionalidade, azado instrumento à ponderação de direitos fundamentais, quando em colisão com outros direitos fundamentais ou de outra categoria jurídica.
 
Conforme esclareceu a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, a causa de pedir e o pedido desta ação em nada se assemelham ao que forma o objeto da ação civil pública que está em trâmite pela 14a. Vara da Fazenda Pública (processo registrado sob número 0024010-95.2013). E de fato não há vínculo entre tais ações, pois que naquela a causa de pedir refere-se à forma como se realizam, em reuniões e noutras manifestações populares, as "prisões para averiguação", nada dizendo respeito ao direito de reunião, que forma a causa de pedir desta ação. Assim, não conexão ou continência entre tais ações.
 
Quanto à competência: discute-se nesta ação civil pública o direito de reunião e sua colisão com o direito (dever) do Estado de manter a ordem pública. Essa matéria é de índole constitucional e como tal pode ser discutida em ação civil pública. O objetivo da ação nada tem de natureza penal, portanto.
 
4. Não há vedação legal à concessão de medida liminar, considerada a relação jurídico-material que forma o objeto desta ação civil pública. Nenhum dispositivo legal, de resto, poderia legitimamente afastar o controle jurisdicional efetivo e célere sobre a proteção a direitos fundamentais, nomeadamente quando se trata de analisar-se a proteção a um direito fundamental que estaria a ser desrespeitado pelo Poder Publico.
 
5. A medida liminar é concedida nesta ação civil pública, porque caracterizada a verossimilhança jurídica no que alega a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, a compasso com o se reconhecer que continua a existir uma situação de risco atual e concreto, que não desapareceu em razão do tempo consumido entre a propositura desta ação e esta Decisão, cujos efeitos continuam a ser reclamados à proteção jurídica do direito invocado na peça inicial.
 
A verossimilhança configura-se. Senão vejamos.
 
Verificou-se, durante os protestos populares havidos no ano de 2013, desencadeados a princípio por uma insatisfação pontual quanto ao reajuste no valor da tarifa dos ônibus nesta Capital, que a Polícia Militar do Estado de São Paulo não estava estrutural e logisticamente preparada para lidar com as manifestações populares, que, é fato, não eram comuns no Brasil, salvo aquelas realizadas em 1985 por ocasião do movimento denominado "Diretas-Já". De 1985 a 2013, com efeito, o que houve foram manifestações esporádicas, sem uma finalidade específica que pudesse arregimentar uma grande parcela de manifestantes. Havia, quando muito, uma manifestação, e não o exercício do direito de reunião, se considerarmos os requisitos que a doutrina criou para caracterizá-lo. Os protestos ocorridos entre maio e julho de 2013, este sim, caracterizam-se como exercício legítimo do direito de reunião, porque neles se identifica claramente um laço comum entre as pessoas reunidas em diversas vias públicas desta Capital. Esse laço comum tem origem direta na grande insatisfação das pessoas com a classe política em geral e com os rumos de nosso País.
 
Era mesmo de se esperar que a Polícia Militar do Estado de São Paulo não soubesse agir diante dessas reuniões populares, porque o fenômeno sócio-jurídico era entre nós novo. Mas mesmo sendo um fenômeno novo, o que se viu, em 2013, foi uma absoluta e total falta de preparo da Polícia Militar, que, surpreendida pelo grande número de pessoas presentes aos protestos, assim reunidas em vias públicas, não soube agir, como revelou a acentuada mudança de padrão: no início, uma inércia total, omitindo-se no controle da situação, e depois agindo com demasiado grau de violência, direcionada não apenas contra os manifestantes, mas também contra quem estava no local apenas assistindo ou trabalhando, caso dos profissionais da imprensa. (Pelo menos dois jornalistas foram vítimas da violência policial nesses eventos.)
 
Destarte, em face da gravidade de todos os episódios narrados na peça inicial, revela-se apropositada esta ação civil pública, que busca trazer ao controle do Poder Judiciário essa situação, buscando encontrar-se um ponto de equilíbrio entre dois direitos: o direito fundamental de reunião, a todos garantido, e o direito (dever) da ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, de garantir a ordem pública. Impõe-se, pois, um juízo de ponderação que objetive harmonizar tais direitos em colisão, cabendo observar que o direito fundamental invocado (o de reunião) por buscar garantir a liberdade coletiva de expressão, exige do Poder Público um dever de não agredir e de se abster de impedir a reunião de quem queira dessa forma democrática manifestar-se.
 
E examinando quais são as medidas que a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO reclama sejam adotadas, enumeradas as folhas 91/93, verifica-se que quase todas objetivam garantir de forma razoável o legítimo do direito de reunião, sem que se retire do Poder Público o direito de manter a ordem pública. A harmonização entre o direito de reunião e a garantia da ordem pública pode, portanto, ser alcançada se tais medidas forem adotadas. Daí porque, concedida a medida liminar, obriga-se a ré, FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, a adotar quase todas as medidas sugeridas na peça inicial, porque elas não fazem eliminar o poder da Polícia Militar em sua atuação na segurança pública.
 
Segurança pública, importante frisar, que não pode funcionar como um pretexto ao Poder Público para, sem mais, agir com violência, como vem agindo, com a evidente intenção de desestimular as pessoas que queiram protestar. Como bem pontificam CANOTILHO e VITAL MOREIRA em sua famosa obra “Constituição da República Portuguesa Anotada”, v. 1º (p0. 641), o Estado não pode invocar uma proteção genérica e indiferenciada de segurança pública para impedir a realização de protestos. Apenas em casos específicos, nos quais as circunstâncias demonstrem cabalmente que a mantença do protesto estaria concretamente a causar risco à mantença da segurança pública, é que se poderia tolerar alguma esfera de restrição, mas em nenhum caso a vedação total do Estado ao exercício de um direito democrático como é o direito de reunião. Vedação absoluta que está a ocorrer como efeito diretamente decorrente da ação truculenta da Polícia Militar deste Estado. Basta considerarmos acentuado grau de insatisfação das pessoas em geral com a classe política de nosso País em relação ao diminuto número de protestos que tiveram lugar após as ações violentas da Polícia Militar de São Paulo. Seria de se esperar que o número de protestos até aumentasse, mas o que se viu na prática é que, especialmente no período em que ocorriam os jogos da Copa do Mundo, foi a presença ostensiva da Polícia Militar em inúmeros lugares, com armas visíveis e em clara posição intimidativa, o que fez com que tais protestos simplesmente desapareceram. Quando muito, o que tem ocorrido são manifestações, e não o legítimo exercício do direito de reunião.
 
O Direito de reunião deve ser garantido, sobretudo por se tratar de um direito essencialmente democrático. E sendo o nosso País um país democrático, esse direito deve ser respeitado pelo Estado, e eficazmente protegido pelo Poder Judiciário, quando isso não ocorre. Daí que é razoável obrigar-se a ré a elaborar um projeto de atuação de sua Polícia Militar, a aplicar-se quando se trate de reunião populares em protestos. Com o grau de insatisfação popular direcionado contra a classe política deste País, e com o fato de se divulgar a possibilidade de haver uma recessão econômica, pode-se lobrigar que os protestos voltarão a ocorrer em breve e com grande afluxo de pessoas – o que justifica a necessidade a de Polícia Militar elaborar e apresentar à população qual o seu projeto de atuação, que, aliás, é reclamado pelo princípio constitucional da eficiência.
 
A Polícia Militar deve obviamente estar preparada para agir em face de protestos populares. Mas agir não significa necessariamente dispersar. Agir deve significar manter a ordem pública, se o caráter pacífico da reunião desaparece em condições tais que a ordem de segurança pública esteja absolutamente atingida. Cabe à Polícia Militar atuar com o objetivo de garantir o direito de reunião e de manifestação. Destarte, a dispersão somente pode ocorrer em casos extremos, em que as circunstâncias demonstrem inequivocamente que a ordem pública esteja a sofrer forte abalo, e que não haja outra solução que não seja o de impor a dispersão das pessoas reunidas. Essa situação deve ser excepcional, cabe ressaltar, e alicerçada em razões objetivas, que possam ser conhecidas e controladas posteriormente pela sociedade.
 
Naturalmente que o uso de armas de fogo pelos policiais ou de munição de elastômetro dá ensejo a que policiais menos preparados possam agir com demasiada violência. Além disso, o simples uso dessas armas causa intimidação às pessoas que queiram se reunir. O uso dessas armas de fogo, ou mesmo com munição de elastômetro, não se pode admitir, portanto.
 
O controle que a Polícia Militar do Estado de São Paulo vem conseguindo alcançar dentro dos estádios de futebol, sem uso de armas de fogo e de munição de outra natureza, bem demonstra que é plenamente possível que a Polícia Militar possa garantir a ordem pública em protestos populares, sem o uso de tais armas, e sem impedir a realização do vento (no caso, dos protestos). Sprays de pimenta e gases podem eventualmente ser utilizados, mas em casos extremos.
 
Esse projeto deve ainda determinar que os policiais militares tenham uma identificação quanto a seu nome e posto, colocada em local visível de sua farda. O cidadão tem o direito de saber o nome do agente policial, assim de qualquer agente público com quem esteja a lidar.
 
O projeto deve igualmente minudenciar as condições em que haverá a ordem de dispersão dos populares, como providência-limite, indicando que tipo de oficial poderá determiná-la, e em que circunstâncias poderá fazê-lo, obrigando-o ainda a divulgar as razões que levou em consideração para assim ter agido, tudo de molde que se possa posteriormente controlar-se o ato administrativo praticado, inclusive por via judicial. Qualquer pessoa poderá ter acesso ao conhecimento de tais razões, bem assim do nome do policial militar que tenha determinado a ordem de dispersão.
 
Não se pode, contudo, obstar que a Polícia Militar filme as manifestações populares. Trata-se de um meio que poderá permitir uma melhor análise das ocorrências de um evento, inclusive em proteção àqueles que tenham sido agredidos por policiais. A Polícia Militar deverá armazenar o conteúdo integral dessas filmagens, pois poderá ser judicialmente obrigada a exibi-lo, se o caso.
 
Em nosso Ordenamento Jurídico em vigor, o direito de reunião não é condicionado a um aviso prévio, nem a qualquer outra condição, salvo a que se refere à mantença da ordem pública. A ré não pode, pois, genericamente impor condições de tempo e de lugar ao exercício do direito de reunião. Deve ainda providenciar indicar ao conhecimento público o nome do oficial que possa atuar como um porta-voz do comando, o que naturalmente criará um meio de comunicação, demonstrando que o interesse do Estado não é o de impedir a reunião, mas de mantê-la em funcionamento, desde que sob as condições de segurança pública. Esse canal de comunicação produzirá certamente experiências importantes à logística de atuação da Polícia Militar em protestos populares. O plano a ser elaborado pela Polícia Militar deverá indicar o nome do policial militar que esteja encarregado de servir como porta-voz da Instituição em suas relações de comunicação com os organizadores do evento.
 
Note-se que nenhuma dessas medidas estará a obstaculizar que a ré, por sua Polícia Militar, mantenha a ordem pública em face de protestos. Tais medidas buscam apenas garantir o legítimo exercício do direito fundamental de reunião, em sua convivência com o dever do Poder Público de garantir a ordem pública, observando-se a justa proporção entre tal direito e tal dever.
 
6. Esta medida liminar é concedida, pois, com o objetivo de garantir o legítimo exercício do direito fundamental de reunião, que está sendo indevidamente contrastado pela ré nas condições atuais. Fixa-se o prazo de 30 (trinta) dias a que a ré elabore e apresente a conhecimento público o plano de atuação de sua Polícia Militar em protestos. Recalcitrante, a ré suportará multa diária fixada em R$100.000,00 (cem mil reais), patamar consentâneo com a finalidade de legitimar a coerção à ré para que faça cumprir o que lhe é judicialmente determinado.
 
A ré já apresentou contestou e está representada nos autos. Assim, a sua intimação a cumprir esta Decisão será realizada por meio da intimação de sua Procuradoria, por intimação em periódico oficial.
 
7. À réplica.
 
Int. A DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO e o MINISTÉRIO PÚBLICO, pessoalmente.
São Paulo, em 24 de outubro de 2014.

VALENTINO APARECIDO DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO

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