Nota DefesaNet Em curto período vários meios de comunicação publicaram quatro extensas reportagens com oficiais-generais com participação no governo Bolsonaro ou com influência. DefesaNet coletou e apresenta aos leitores estas matérias. Recomendamos a leituras de todas. Cada uma traz particularidades relevantes.
Caderno EU & Fim de Semana Jornal Valor 21 Junho 2019 Gen Heleno – Um general no Olho do Furacão Crucial para manter o equilíbrio no governo, ministro é hoje um especialista em administrar problemas de todo o tipo, a todo o instante. Jornal Valor 21 Junho 2019 Gen Ex Ramos – Ulysses e Rio Branco são paradigmas de habilidade O general Luiz Eduardo Ramos, refuta a ideia de que tenha ido para o cargo para conter o amigo a quem conhece desde a adolescência quando ambos foram colegas na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas. "O presidente não é tutelável". Revista Época Edição 1094 Gen Santos Cruz – É um Show de Besteira Demitido da Secretaria de Governo de maneira abrupta e deselegante o general Santos Cruz pede foco à gestão Bolsonaro e diz ser hora de ”parar com tanta fofoca” UOL 24 Junho 2019 Gen Etchegoyen – Exército não vai ampliar a participação no governo
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Por Cristiano Romero e Monica Gugliano
Publicado no encarte EU & Fim de Semana Jornal Valor 21 Junho 2019
Um lance de escadas e 100 metros por um corredor separam a sala do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno Ribeiro Pereira, do gabinete do presidente Jair Bolsonaro (PSL). Quem já o ouviu revelar seu pendor na longa carreira militar – "Viver no olho do furacão" – deve estranhar a fala mansa, o linguajar informal e os gestos contidos.
Mas não se engane o interlocutor: ministro mais próximo de Bolsonaro, o general Heleno tem opiniões fortes e não se acanha em expressá-las. Não gosta do PT, de Lula e nem muito menos de Fernando Henrique Cardoso. Atribui ao tucano o fato de o petista ter chegado ao poder. "O Lula é terrível, mas o Fernando Henrique era pior, hein?", diz ele ao Valor, sem pedir reserva por criticar o tucano.
Heleno é um general de Brasília. Foi, por exemplo, adido em Paris e comandante do Exército na Amazônia. Mas foi na capital do país onde construiu, sempre nos bastidores, sua carreira no centro do poder. Sua posição hoje é vista como crucial para manter o equilíbrio dentro de um governo que, precocemente, delineou muito claramente suas divisões internas, roubando da oposição o papel de… fazer oposição.
Heleno é a expressão do grupo de militares, a maioria da reserva, que apoia Bolsonaro desde a primeira hora, quando ninguém sonhava que o capitão, que dedicou os 28 anos que passou no Congresso Nacional como deputado apenas à defesa dos interesses das corporações militares, chegaria perto da Presidência da República. Seu grupo se opõe ao do filósofo Olavo de Carvalho, bolsonarista que, do "exílio" nos Estados Unidos, dedica-se a atacar todo e qualquer militar próximo de Bolsonaro, inclusive o vice-presidente, Hamilton Mourão, que, eleito, é o único indemissível do chamado "núcleo militar" do governo, denominação que o ministro Heleno rejeita, quase manifestando indignação. "Somos militares da reserva, fomos muito bem formados, estudamos muito e ainda podemos prestar bons serviços ao país", reage ele à primeira das críticas feitas à grande presença de militares em cargos civis da nova gestão.
Dentro do governo, Heleno tem lado. A disputa, natural numa democracia, é por poder. E, em Brasília, assim como em outras capitais de países democráticos, ganha-se uma hoje, perde-se outra amanhã. É do jogo. Na semana passada, o grupo liderado pelo general Heleno sofreu dolorosa baixa – a demissão do ministro da Secretaria de Governo, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, considerado o militar mais popular entre as tropas e que deixou confortável posto nas Nações Unidas, em Nova York, para embarcar na imprevisível nau bolsonarista. Exibindo pragmatismo típico de quem conhece os enigmas do poder, o ministro explica assim a perda, em menos de seis meses de "batalha", do valioso colega: "O próprio presidente usou uma metáfora para explicar que 'o casamento havia terminado'". Ponto. Assunto encerrado.
Aos 71 anos, o general Heleno sabe que está no topo de sua trajetória pública e que, dada a atual configuração do poder no Planalto Central, sua responsabilidade é muito maior que a exercida em outros momentos delicados da história recente do país. Sua vocação para estar no "olho do furacão", como seus amigos gostam de dizer, é antiga.
Em 1977, Heleno era ajudante de ordens do ministro do Exército, Sílvio Frota (1910-1996), quando este foi demitido por questionar o plano de abertura política, que, conduzido pelo general Ernesto Geisel (1907-1996), então presidente, e idealizado pelo general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), dava os primeiros passos para promover o desembarque lento e gradual dos militares do poder. Frota, por pouco, não sucedeu na tentativa de abortar a abertura, nos dias mais tensos do regime militar. "Me orgulho muito de ter sido [ajudante de ordem de Frota]", diz. "Vamos falar sobre isso, general?", indaga a reportagem do Valor. "Ah, para isso aí a gente tem que fazer outro almoço…"
Em 1985, na transição do poder do último governo militar para o primeiro civil em 21 anos, surgiu um movimento em Brasília para impedir que José Sarney assumisse a Presidência no lugar de Tancredo Neves (1910-1985), que caiu doente na véspera da posse. Ajudante do então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves (1921-2015), Heleno participou do "contragolpe". "Essa história é conhecida, se procurar aí tem. O Ulysses Guimarães [1916- 1992, presidente do PMDB na época] começou a criar dúvidas sobre quem seria o substituto do Tancredo. Aí, o general Leônidas falou: 'Tá no livrinho', né?", conta Heleno. Ironicamente, o livrinho era a Constituição de 1967. A posse, porém, só se viabilizou quando Leônidas telefonou a Sarney, na noite do dia 14 de março de 1985, véspera da inauguração da Nova República, para lhe dar garantias: "Boa noite, presidente". Palavra de general. Ponto. Assunto encerrado.
Pela terceira vez no "olho do furacão", o general Heleno já sabe do que cuidar e proteger, além da segurança do presidente da República. A defesa da agenda econômica liberal e da equipe liderada pelo ministro Paulo Guedes, apontada como a faceta mais "normal" da conturbada administração Bolsonaro, seria atribuição do grupo do general Heleno. "O Paulo Guedes vende pente para careca na rua de Uruguaiana! Ele tem um poder de convencimento impressionante", brinca. "Paulo Guedes é brilhante."
O gabinete do general Heleno fica no quarto andar no extremo oeste do Palácio do Planalto. No mesmo pavimento despacham os outros generais da reserva que viraram ministros. Ele recebe a reportagem na porta do gabinete e apresenta os assessores que participam do almoço, todos militares de alta patente. Há muito pouco de pessoal na sala dele a não ser alguns poucos objetos relacionados ao Exército. Além da mesa de trabalho, o espaço tem um conjunto de sofá e poltronas e uma mesa de reuniões.
Heleno é um dos poucos auxiliares que lidam francamente com o presidente. Em cinco meses de um governo em que é quase impossível lembrar de alguma semana que tenha passado sem, pelo menos, disputas intestinas e ruidosas, o ministro costuma dizer que virou um especialista em administrar problemas de todo tipo. "Tenho uma proximidade com o presidente que é muito gratificante. Acabo participando de tudo que acontece, então é uma grande escola isto aqui. Mas, aí, vou repetir o que ele falou: eu nasci para ser milico, não nasci para ser ministro e nem para ser general", afirma.
Apesar dessa convicção, Heleno nunca antes precisou ser tão político e menos militar. "Eu nunca quis ser político, mas nunca fui desligado da política", admite. No governo, ele serve a um presidente cuja personalidade com frequência estimula confrontos, em vez de apaziguá-los, e lida com as disputas que cercam o poder entre os diferentes grupos (militares, familiares e ideológicos etc.). "Os jornais criaram essa história de 'ala militar', 'os militares do governo' etc. Isso tudo é uma bobagem", refuta.
A relação que Heleno construiu com Bolsonaro começou há muitos anos e se solidificou a partir dos primeiros anos desta década. Em 2014, quando não seria fácil encontrar alguém disposto a apostar que o então deputado-capitão Jair Messias Bolsonaro seria o 38º presidente da República, Heleno, ainda que também duvidasse da hipótese, estava disposto a conversar e a ouvir a ideia. "Na primeira vez que nos encontramos, ele me disse que estava pensando e que ia ser candidato a presidente da República", recorda o ministro.
"Lembro que uma das primeiras perguntas que fiz para ele foi: 'Você tem grana?'. Ainda acrescentei: 'A prestação de contas da Dilma [Rousseff, ex-presidente] e do Aécio [Neves, senador e candidato a presidente] fora a Lava-Jato [as doações de caixa dois e propinas reveladas pela Justiça], ficaram em mais de R$ 300 milhões…". Bolsonaro, recorda Heleno, não titubeou: "General, não tem nada. Não tenho nada. Eu vou partir para o confronto, usar a rede social…".
Na mesa de reuniões, onde é servido o almoço, vê-se que a austeridade impera. A comida é simples, mas a gentileza é farta. Há salada, frango, peru, lasanha, batata gratinada, opção vegetariana, de dieta e um filé de carne vermelha extracardápio. Os lugares estão marcados e um pequeno cardápio foi impresso para a ocasião e amarrado com uma fitinha verde e amarela. Para beber, água, refrigerante, suco de laranja e, embora, não conste no menu, vinho tinto rotulado com a logomarca da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), subordinada ao GSI. "Salud, santé, cheers… Outro dia fui jantar na embaixada da Suécia e aprendi também como é 'saúde': 'hälsa'!", diz Heleno, erguendo a taça, rindo e explicando a origem do vinho. "Presente de um amigo nosso, da Itália. O cara toma esse vinho, fabricado pela inteligência, e conta tudo!"
A conversa trata, então, do primeiro de muitos almoços que aconteceram entre os dois, quando Bolsonaro apenas sonhava com a Presidência. O então deputado, diz o ministro, percebia um imenso vazio político no país e acreditava ser ele quem poderia ocupá-lo. A conclusão de Bolsonaro, então um nome de pouquíssima expressão nacional, mais conhecido pelos seus radicalismos conservadores do que por sua atuação parlamentar, não espantou o interlocutor. "Eu acreditava nisso em parte porque eu sabia que ele era limpo. Se ele não fosse limpo… O que esses caras odiavam ele… tinham arrebentado com ele. Antes desses almoços, eu me encontrava muito com ele na praia porque morava ao lado de sua casa na Barra."
Tampouco, diz o ministro, lhe causou estranheza a afirmação de que a ideia partira unicamente de Bolsonaro. "Se tinha alguém por trás, ele nunca me disse nada, sempre foi uma coisa dele. E eu acho que seja dele mesmo. Ele é muito obstinado, descobriu que havia um vácuo após aquelas manifestações gerais no Brasil em 2013 e pensou: 'Agora eu entro'." Alguns encontros depois, um dos primeiros parceiros da empreitada estava arregimentado e ficaria claro para ambos: se Bolsonaro "entrasse", Augusto Heleno, o homem que gosta de estar no "olho do furacão", estaria junto.
A salada é servida, e o ministro, que não se faz de rogado para comer, elogia os pratos preparados no restaurante do Palácio do Planalto pelo pessoal do Sesi. As mesmas refeições também são servidas no avião do presidente. O ministro diz que, na primeira viagem que fez, Bolsonaro, que tem a seu dispor cabine com cama na parte dianteira do avião, quis saber se a mesma refeição seria servida a todos e ficou satisfeito ao ouvir a resposta positiva. Entretanto, a igualdade não se estendia ao quarto com cama destinado a ele. "Ao saber que os demais não têm cama, decidiu não usar a dele."
Filho único de Ari de Oliveira Pereira, coronel e professor no Colégio Militar, Heleno é descendente de uma família de militares. Herdou do avô, que foi almirante de esquadra e comandante da Escola Naval, o nome. Cresceu ouvindo histórias das Forças Armadas e do papel delas no Brasil. Chegou ao topo da carreira, general de Exército, com muitas realizações e uma amargura: a de não ter sido comandante do Exército.
Aluno exemplar, ele foi sempre o primeiro das turmas em todos os cursos que fez. Era a mãe, Edina, quem o obrigava a estudar, dispensando afagos no menino que nascera em Curitiba, uma das cidades onde a carreira do marido os obrigara a morar. Ao longo dos anos, passou por praticamente todos os altos postos do Exército do Brasil no exterior, arregimentando admiradores e opositores na mesma proporção e intensidade.
Ele mesmo, porém, jogou por terra – e diz não se arrepender disso – suas chances de comandar as Forças Armadas ao criticar a política indigenista do governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A desavença fez com que deixasse o Comando Militar da Amazônia. Heleno voltou para Brasília e foi nomeado diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia, onde permaneceu até passar para a reserva. "Sempre fui um grande opositor do PT e de tudo que o cerca. Jamais gostei do Lula e muito menos da Dilma. Sempre tive horror ao PT."
Segundo ele, a opinião não é apenas por uma questão ideológica. "Eu achava que tudo que eles faziam era uma enganação, nunca acreditei nesses programas sociais do PT", diz. O programa ao qual o ministro se refere especificamente é o Bolsa Família, uma das maiores marcas dos governos petistas.
"O Bolsa Família é uma necessidade hoje? É, e reconheço que o Bolsa Família não pode terminar. Mas o Bolsa Família tem que ter uma porta de saída!", diz Heleno, repetindo o conceito, usual na gestão Bolsonaro, de que os beneficiários precisam dar contrapartidas e entender que o auxílio é temporário. "Quanto tempo quem trabalha vai sustentar quem não tem emprego ou coisa parecida? Tenho que arranjar emprego para esse pessoal, para eles deixarem de ser dependentes de uma classe que ganha dinheiro – e não é para distribuir."
Em 2016, quando Heleno trabalhava no Comitê Olímpico Brasileiro (COB), na preparação dos Jogos Olímpicos do Rio, Bolsonaro, diz o ministro, já não circulava pelo shopping sem ser reconhecido. Os encontros passaram a contar com a companhia de um, às vezes dois dos filhos do deputado, que, metódico, gostava de ir – desde a primeira vez – sempre ao mesmo lugar, o restaurante Camarada Camarão. "A comida é boa, o preço é honesto e dividíamos a conta."
Heleno conta que, se era visível o crescimento da popularidade do possível candidato em determinados segmentos, o mesmo não se via ainda na sociedade em geral e em alguns setores das Forças Armadas. "Não estávamos acostumados com militar político. Era considerado uma coisa meio repugnante. Político é político, militar é militar, não é?", justifica ele. "Uma parte da sociedade nos via como perigo para a democracia e outra parte nos considerava, acho que por terem mais proximidade conosco, importantes para garantir a democracia."
E quando foi que Heleno passou a acreditar que Bolsonaro poderia ser a resposta dos brasileiros à descrença no sistema político e tinha reais chances na disputa pela presidência? "Nesse caso, eu sou engenheiro de obra pronta, porque eu só entendi depois que o negócio aconteceu", diz o ministro, que rejeita até hoje com veemência o título de "conselheiro" do então candidato e atual presidente. "Se falar em conselheiro ou em guru, eu acabo o almoço", brinca. Reage, com certa irritação, a comparações com Golbery, o idealizador da abertura no governo Geisel (1974-1979). "Olha, eu não quero ser comparado ao Golbery de jeito nenhum."
Sempre fui um grande opositor do PT e de tudo que o cerca. Jamais gostei do Lula e muito menos da Dilma. Sempre tive horror ao PT
Heleno deve ser o personagem de Brasília que conhece Bolsonaro há mais tempo. Nunca o subestimou. "Eu o conhecia da Academia Militar das Agulhas Negras [Aman] porque ele era muito bom atleta e teve o melhor conceito em sua turma de artilharia", diz Heleno sobre Bolsonaro. Segundo o ministro, tudo indicava que o jovem oficial teria uma carreira promissora no Exército. "Mas é o tal negócio, a vida é circunstância. Naquela época em que ele se envolveu no assunto salarial, as Forças Armadas estavam muito mal, e ele não tinha outro recurso que não esse", justifica Heleno – referindo-se ao artigo em que Bolsonaro reclamara dos baixos salários e motivou os 15 dias de prisão do capitão.
"Minha vida era diferente da maioria que tem origem, se não humilde, de classe média baixa. A família do Bolsonaro é uma família humilde. E ele tinha sempre essa preocupação de conseguir fazer um dinheirinho extra para viver melhor", compara o ministro que ganhara carro e apartamento do pai ao se formar.
Entre 1987 e 1988, Bolsonaro foi julgado duas vezes. No Conselho de Justificação, acusado de "ter tido conduta irregular e praticado atos que afetam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe", foi considerado culpado. Mas acabou inocentado pelo Superior Tribunal Militar (STM). Heleno, que era assistente do general Leônidas Pires Gonçalves acompanhou o processo, diz que, na época e naquelas circunstâncias, o colega não merecia execração. "Sempre fui um poder moderador. Tinha cara que queria a cabeça do Bolsonaro…"
Com o passar dos anos, até mesmo o general Leônidas – que se tornou amigo e conselheiro do deputado e o recebia quinzenalmente em seu apartamento no Rio – reconheceu que a punição dada a Bolsonaro tinha ido além do necessário, conta Heleno. "Mas é o tal negócio: do ponto de vista militar, o que ele fez foi alguma coisa grave. Foi grave? Foi, mas para tirá-lo das Forças Armadas? Não era bem o caso", pondera o ministro.
Vieram do general Leônidas – e também de Heleno – expressões e muitas das ideias que Bolsonaro adotou e repetiu ao longo de sua campanha. Entre elas, a de que o Brasil, se não fosse "a revolução de 64", teria virado um imenso "Cubão", dominado pelos "comunistas".
No entanto, até voltar a ser aceito pelos pares, Bolsonaro passou por tempos difíceis e, em muitos momentos, apesar de já eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, era barrado nas solenidades militares. "Cavalão", apelido que Bolsonaro recebera de seus colegas de turma, ficava de fora por determinação dos superiores. "Eu era o único que dizia: 'Pô, esse cara não pode ser barrado! O cara é deputado federal, isso não existe!'", diz Heleno. "Tudo aquilo foi criando em torno dele a figura de um militar insubordinado – que eu sabia que não era, porque já tinha convivido com ele como cadete e como atleta", defende o ministro.
A punição a Bolsonaro, observa Heleno, também teve o componente das mudanças que aconteceram nas Forças Armadas a partir de 1964. "Depois da instalação do que se chama 'regime militar', nós fomos progressivamente sendo doutrinados pela disciplina."
Depois da salada, o garçom avisa que os pratos quentes já estão dispostos próximos à mesa. O ministro escolhe o filé de linguado grelhado com limão, do menu da dieta, arroz integral, feijão. Heleno gosta de contar histórias. Foi professor nas escolas militares e está acostumado a falar para plateias. No governo, costuma dizer, ele busca se preservar. Mas qualquer observador atento percebe que quase nunca consegue.
Ao falar de sua formação, Heleno aproveita para defender as posições do ministro da Educação, Abraham Weintraub, e de Bolsonaro sobre as universidades no Brasil. Ele compara o cuidado e a disciplina dos alunos da Aman aos de outras escolas. "Acontecem absurdos nas nossas universidades e, em muitas delas, sequer é possível fazer uma discussão sobre o que acontece. Admito todas as ideologias. Mas não podemos ter, de 100 professores, 90 fazendo doutrinação", argumenta.
A conversa é interrompida por uma sutil batida na porta da sala e, ainda que por pouco tempo, o almoço recebe um convidado que não estava previsto. O general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, assessor especial do GSI, recebe um carinhoso beijo na testa do ministro Heleno, e alega não poder ficar por causa da agenda. VB, como é chamado por todos, sofre de uma doença neuromotora degenerativa e é hoje uma das vozes mais respeitadas das Forças Armadas. Coube a ele, no último grande conflito entre o filósofo Olavo de Carvalho, Santos Cruz e o vice-presidente Hamilton Mourão, colocar um ponto final na discussão travada por meio das redes sociais.
O GSI que Heleno comanda tem um perfil muito diferente daquele que herdou dos antecessores. "Como sempre foi uma função muito ligada ao presidente, a personalidade dele influi muito no desempenho do chefe do GSI." Ele reconhece que, dos ministros que passaram pelo cargo nos últimos anos, é o que mantém uma relação de mais proximidade com o chefe. "A gente não tem um manual de instruções anterior."
Chega a hora de escolher a sobremesa. Frutas para todos. O almoço já dura quase três horas. O café é, então, servido, e os assessores começam a sugerir que está na hora de terminar. A agenda do ministro marca compromissos logo a seguir. Mas Heleno ainda tem histórias para contar. Nos governos de Fernando Collor e de Itamar Franco, ele já trabalhara ali e também vivera momentos de turbulência política. E passara pelo impeachment de Collor e a adaptação ao estilo de Itamar, o presidente mercurial que, entre outras manias, detestava a segurança. "Em Juiz de Fora, Itamar não aceitava segurança de jeito nenhum. Aí eu peguei, botei uma luneta no último andar do prédio. O cara ficava lá, olhando dentro do apartamento dele. Quando ele trocava de roupa, o cara avisava. Era o sinal de que ia sair de casa", recorda, às gargalhadas
Após esse período, Heleno passou por vários postos no Brasil. Foi adido militar em Assunção (Paraguai) e em Paris, e estava novamente em Brasília quando foi indicado à ONU para comandar a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah), em 2004. Mais do que destroçado, o Haiti – até hoje um dos países com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo – estava convulsionado pelas guerrilhas entre gangues e pela falta de infraestrutura. As Forças Armadas haviam sido extintas. Nas ruas de Porto Príncipe, porcos e pessoas disputavam restos de comida em valas de lixo. Os tiroteios aconteciam a céu aberto dia e noite num cenário que os soldados brasileiros desconheciam.
Heleno circulava pela cidade numa caminhonete da ONU conduzida por dois filipinos. Não levava seguranças, e se a situação complicava em algum ponto da cidade, era comum vê-lo surgir ao lado dos subordinados, dando orientações. O trabalho em tempo integral ganhava uma pausa de três em três meses, quando Heleno vinha ao Brasil e passava alguns dias com a mulher, Sônia, e os dois filhos, Renata e Mário Márcio. As curtas folgas, lembra, serviam para breves descansos da tensão permanente que não conseguia reparar nas poucas horas que passava no apartamento onde morava na cidade. "Esse foi o maior furacão que enfrentei", diz. E por quê? "O país estava destroçado, e infelizmente não melhorou muito. Mas, naquele época, nunca vi nada igual.