Gen Santa Rosa – Doutrinas artificiais: socialismo e liberalismo

Maynard Marques de Santa Rosa

General-de-Exército (res.), ex-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE)

Publicado na Resenha Estratégica do MSIa

 

A quarentena imposta pelo coronavírus enseja espaço útil para o ócio criativo. As mudanças em curso estimulam a meditação em torno das ideias que moldaram a sociedade moderna, e agora estão mergulhadas no vórtice do processo de evolução compulsória.

Socialismo e liberalismo são faces opostas da mesma moeda. Ideologias que pregam formas diferentes de administrar as relações sociais, têm ambas por finalidade o bem comum. A dicotomia enquadra-se no princípio da unidade dos contrários, enunciado por Heráclito de Éfeso, cinco séculos antes de Cristo. São, no entanto, doutrinas arquetípicas, com apelo emocional excludente e dilema maniqueísta, como os são o bem e o mal, o dia e a noite, a alegria e a tristeza.

O socialismo é um conceito coletivista que prega a imposição compulsória do interesse coletivo sobre o do indivíduo. A violência é uma tática preconizada pelo marxismo. A aplicação política do socialismo suscita o enigma da representação da coletividade.

A teoria socialista elegeu o Estado como depositário e gestor dos recursos da sociedade. A massificação inerente ao sistema reduz o indivíduo a simples peça do mecanismo social, destinada a uma função celular que lhe anula as aspirações e a dignidade. O centralismo e os controles peculiares ao processo polarizam o poder político em um vértice tirânico. Por isso, não há respeito à liberdade individual. O próprio conceito socialdemocrata é um sofisma que não escoima a rejeição ao direito de propriedade.

O liberalismo prega a soberania do livre-arbítrio individual. Ninguém, em tese, tem o direito de impor servidões ao indivíduo sem a sua aquiescência. A cooperação social é uma concessão do indivíduo ou a sua submissão à necessidade. Não seria, porém, essa submissão uma dependência que relativiza o próprio conceito liberal? A sujeição à necessidade do conjunto torna-se, assim, um impositivo categórico.

Portanto, socialismo e liberalismo são visões de mundo antagônicas. A meta socialista é o bem coletivo, enquanto que a liberal é o bem do indivíduo. O método socialista é autoritário, enquanto que o liberal é livre. O centralismo é um princípio vital do modo socialista; o do modo liberal é a liberdade.

Em uma visão antropológica dos fatos, a história da humanidade mostra que a organização social sempre decorreu de imposição. Em todas as épocas, os potentados impuseram modos de vida, servidões e impostos aos súditos para fazer a guerra, construir obras e preservar os privilégios do grupo dominante. A cooperação compulsória tem sido o costume tradicional das relações sociais. Portanto, no fundo, a ideia socialista não passa de um atavismo.

O socialismo floresceu no século XIX, como resposta à exploração capitalista da Revolução Industrial, que havia introduzido uma nova forma de servidão nas relações sociais. Contudo, o ideal socialista já havia nascido muito antes, como observou Alexis de Tocqueville, em O Antigo Regime e a Revolução: “Acredita-se que as teorias destrutivas que em nossos dias são designadas pelo nome de socialismo sejam de origem recente; é um erro: essas teorias são contemporâneas dos primeiros economistas. Enquanto esses empregavam o governo todo-poderoso com que sonhavam para mudar as formas da sociedade, os outros apossavam-se em imaginação do mesmo poder para demolir-lhe as bases”.

A liberdade é uma conquista gradual do processo civilizatório e um anseio natural de justiça das relações sociais. O movimento liberal foi uma onda que cresceu a partir do humanismo da Renascença e atingiu o ponto culminante na Revolução Francesa, quando uma sociedade consciente e amadurecida rejeitou a ordem tradicional regida por tirania e privilégio de sangue.

O liberalismo consagrou as ideias-força de liberdade e igualdade que varreram o Ocidente, a partir da queda da Bastilha, em 1789, resumindo as aspirações de todos os povos. A terceira legenda, inspirada no idealismo de Rousseau, nunca chegou a sensibilizar as massas. É que a fraternidade não tem peso na equação do poder. Talvez o tivesse a propriedade, que foi a sugestão (materialista) de John Locke.

O forte embasamento ideológico da Revolução Francesa, contudo, não foi suficiente para prevenir uma nova tirania: “Das próprias entranhas de uma nação que acabava de derrubar a realeza, viu-se sair subitamente um poder mais extenso, mais detalhado, mais absoluto do que o que fora exercido por qualquer dos nossos reis (Alexis de Tocqueville).”

As sociedades dos dois últimos séculos tiveram a oportunidade de vivenciar experiências dialéticas de liberalismo puro e socialismo marxista, que deixaram um legado de lutas, conquistas e sofrimento em vão ou não.

Na verdade, a marcha do destino coletivo obedece a uma lógica inacessível à razão humana. Irrefutável é a dedução de Heráclito, de que nada é permanente, exceto a mudança. A sabedoria milenar do Eclesiastes adverte que: “Tudo tem o seu tempo determinado, e todo propósito debaixo do céu tem o seu tempo” (Cap. 3, salmo 1). Logo, tudo passa, e o tempo é o vetor da evolução.

As doutrinas concebidas para modelar a sociedade são quimeras efêmeras do orgulho humano. Socialismo e liberalismo passarão para a História, deixando parcelas de legado civilizatório. Entretanto, o componente de abuso que lhes é inerente terá o desfecho descrito no Evangelho: “Toda planta que meu pai não plantou será cortada e lançada ao fogo” (Mt, 15:13).

 

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