O Soldado de El Alamein

O soldado de El Alamein

 

General-de-Brigada (R1) Flávio Oscar Maurer
Participou do último grupo (20 Contingente), que foi enviado
em Missão de Paz ao Suez (Egito),
durante a década de 60.  As reflexões de um jovem oficial ao visitar
um dos importantes campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, El Alamein.


O Egito é um país especial. Os problemas políticos internos e externos com que convive há milênios são questões que jamais lhe tiraram o charme e o mistério de ser o guardião de um dos maiores patrimônios históricos da civilização humana. Apesar das dificuldades decorrentes de seu subdesenvolvimento, onde pontuam baixos índices econômicos e sociais, o Egito pode se orgulhar, mesmo assim, de ter sido um dos países do Oriente Médio onde a paz e a tranqüilidade reinaram por períodos relativa-mente longos.

Nos últimos anos, porém, nuvens negras da ação expansionista dos fundamentalismo islâmico têm perturbado a estabilidade política do país, de forma mais contundente. Por esta razão, vem crescendo a incidência de atos de terrorismo contra o stablisment religioso, cuja característica maior é a de, tradicionalmente, seguir uma linha moderada no culto da fé islâmica. A razão histórica desta postura comedida, qualificada de permissiva pelos fundamentalistas, tem origem na característica cosmopolita que o país adquiriu ao longo de sua história.

A posição geográfica e o privilégio de ser um dos principais elos de ligação entre civilizações antigas e modernas, foram as principais causas que temperaram a formação da índole do seu povo. Assim, a povo egípcio, originário de um caldo cultural extraordinariamente rico, coloca-se acima das querelas ocasionais e oportunistas, como é o caso do fundamentalismo em voga no momento.

Como é sabido, o Egito já foi o centro do mundo, dois mil anos antes de Cristo. Até hoje, a civilização egípcia daquela época encanta o mundo por seus mistérios, muitos ainda não desvendados, bem como pela vanguarda que ocupou em praticamente todos os campos do conhecimento humano.   

Desde de então, o Egito desempenhou papel importante em todas as épocas da história da humanidade. O povo judeu e o próprio cristianismo encontram no Egito, vínculos importantes de suas respectivas histórias. A conhecida epopéia bíblica da travessia do mar Vermelho por Moisés e seus seguidores, em fuga da escravidão no Egito, na busca da terra prometida, é vista pelos judeus como a mão de Deus em defesa do povo por ele escolhido. Do mesmo modo, a estrada de Jericó, na atual Faixa de Gaza, foi palmilhada pela família sagrada na sua fuga de Herodes. São apenas alguns, entre muitos outros, fatos emblemáticos, verdadeiros elos de união entre o Egito antigo e as origens da civilização moderna ocidental. 

Como ponto de convergência entre o ocidente e o oriente, o Egito sempre foi, também, o objetivo da cobiça dos grandes soldados que fizeram as guerras da história do mundo. Lá, por exemplo, Marco Antônio, após conquistar o país pela força de suas legiões, sucumbiu aos encantos de Cleópatra. Lá, também, Napoleão depois de ter conquistado a Europa, expressou sua perplexidade diante da grandiosidade das pirâmides.

Neste século, o domínio do canal de Suez tem sido um objetivo econômico constante, buscado pelos conquistadores modernos. Nele já se envolveram, nestes últimos tempos, praticamente todos as potências com objetivos hegemônicos no mundo.   

Assim, nas últimas décadas o Egito acabou sendo o pião do jogo de xadrez dos acontecimentos do oriente médio. Daí porque o país teve participação ativa em todas as guerras que Israel promoveu contra seus vizinhos, na busca de consolidar-se como país soberano.   

Mas o passado grandioso, das pirâmides, dos faraós, continua sendo o principal motivo para atrair anualmente ao Egito milhões de turistas do mundo inteiro, a despeito dos momentos de crise. O encanto, o sentimento de misticismo, a magia e o poder de atração que o Egito transfere aos que o visitam, faz transportá-los para um passado milenar. Esta sedução natural sempre esteve acima das eventuais guerras e conflitos.   

Todos estes componentes, sem dúvida, exercem uma significativa influência sobre a índole do seu povo. Bastante diferente das demais povos árabes, o egípcio é, muito provavelmente por essas razões, um tipo aberto ao contato externo. É alegre, independente e comunicativo. Estas características identificam-no muito com o brasileiro.   

São, também, as razões mais prováveis pelas quais os milhares de brasileiros que pertenceram aos 20 contingentes do Batalhão Suez, com que o nosso país colaborou por dez anos com a manutenção da paz na fronteira entre o Egito e Israel, sob os auspícios da ONU, ainda guardam as melhores lembranças daquele país e de seu povo, mesmo passados mais de 30 anos do término da missão.   

Foi assim com um jovem oficial do Batalhão Suez. Na década de 60, sair do Brasil era, ainda, uma aventura que poucos tinham a oportunidade de viver. Acalentando sonhos e trazendo da AMAN o espírito romântico da profissão militar, o tenente, pertencente ao último contingente do batalhão brasileiro, viveu todas as emoções de comandar um pelotão isolado na fronteira internacional e se defrontar com todas as dificuldades que uma missão desse tipo acarreta.   

O mais profundo impacto que o soldado brasileiro teve com a realidade foi o episódio da guerra dos seis dias, iniciada em 5 Jun 67, onde a crua brutalidade do entrechoque de forças, na busca dos objetivos a ferro e fogo por cada um dos contendores, mostrou a ele que nestes momentos a dignidade do ser humano quase sempre fica relegada a um papel secundário.

O soldado é, na verdade, um mero instrumento para a busca desses objetivos. Serão, em todos os casos, esses objetivos verdadeiramente nobres, merecedores do sacrifício de vidas? É a questão que o soldado, hoje dobrado pela vida, continua formulando para si próprio.   

O que faz o soldado lutar numa guerra? A grande verdade é que ele mesmo não sabe bem. Na maioria dos casos ele assimila a doutrinação que lhe foi incutida, mas a sua própria consciência, quando chão treme e as balas espoucam ao seu lado, quase sempre não lhe dá plena convicção da verdade que o colocou naquela situação.

Ao viver a guerra, ele logo descobre que, ao final dela, restarão apenas duas categorias de soldados: vencedores e vencidos. Aos vencedores a glória. Aos vencidos, o desprezo e a culpa por todos os erros, ainda que, como soldados, tenham no campo de batalha sido bravos, dando o que têm de melhor e mais precioso: as suas próprias vidas.

Assim, o jovem soldado que, pela experiência recém vivida, passou a ter consciência do seu papel na guerra. Viu que a ferocidade com que homens lutam, o pouco valor da vida humana naquele momento, faz com que a guerra nada tenha da imagem heróica trazida das escolas de formação. O tenente já fora tomado, também no Egito, pouco antes da guerra, por profundo arrebatamento existencial. Por outro motivo. Foi pela feliz oportunidade de ter visitado, numa rápida viagem ao Cairo, um lugar muito especial, desconhecido pela maioria dos que visitam o Egito, por não estar incluído nos roteiros turísticos.   

El Alamein fica a mais ou menos 100 Km a oeste de Alexandria, segunda cidade em importância no Egito, situada ao norte do Cairo. Como todos sabem, foi em El Alamein que, em 1942, travou-se a batalha decisiva da 2ª Guerra Mundial na campanha da África. El Alamein, foi, juntamente com Stalingrado, o ponto de inflexão daquele conflito. Caso as forças do eixo tivessem vencido batalha de El Alamein, teriam as portas abertas para a ocupação de todo o Oriente Médio, já que não havia mais efetivos aliados para se opor a elas.   

Mas assim não foi. As forças aliadas, num derradeiro e supremo esforço, conseguiram deter a ofensiva alemã e italiana. Após quase dois anos de campanha no deserto do norte da África, aquele foi o lugar e o momento onde soldados superaram-se a si mesmos em todos os aspectos. Mesmo diante da inclemência do calor do deserto, da falta de suprimentos, da aridez do terreno, todos, sem exceção, foram à mais extrema exaustão física e mental para vencer aquela batalha.   

Eis aí a razão pela qual o visitante de hoje, se tiver consciência do que aconteceu em Al Alamein, ao chegar no exato local onde se travou a batalha, quer queira ou não, será levado a profunda reflexão sobre o papel do soldado na sociedade de todos os tempos.   

El Alamein é um ponto alto no terreno. Lá há um monumento muito bem cuidado pelo governo egípcio. Embora situado em pleno deserto é um pequeno oásis artificial. Ao lado do monumento, há três cemitérios, situados lado a lado. Um com soldados ingleses, outro com alemães e outro com italianos, todos tombados na célebre batalha. Percorrendo os túmulos, pode ser constatado que lá estão enterrados, na sua grande maioria, corpos de jovens soldados, entre 20 e 30 anos de idade.   

Por que lutaram e por que morreram todos eles? O visitante que observa o campo de batalha de El Alamein fica estupefato. Olhando em frente e para a esquerda, oeste e sul, apenas o deserto, areia pura e pedras, até onde a vista alcançar. Já olhando para a direita, norte, apenas o Mar Mediterrâneo, com seu azul profundo, característico, até o horizonte. E pensar que todos eles, naquela batalha e em todas as demais no norte da África, estavam a milhares de quilômetros de suas pátrias, de suas casas, de suas famílias.

Morreram pelas pedras e pelos grãos de areia do deserto. Certamente não foram os ideais da liberdade ou do nazismo que fizeram ambos os lados lutarem como feras. Assim, também, pensou o tenente, será que os expedicionários brasileiros na Itália estavam convictos de estarem se batendo pela democracia, a qual nem sequer conheciam em seu próprio país?   

Os dois episódios, o de viver a brutalidade da guerra e o de ter se sensibilizado profundamente pelas suas conseqüências no silêncio de um longínquo cemitério no deserto, marcaram o jovem tenente profundamente. Ali ele despiu, definitivamente, a capa de romantismo que até então vinha vestindo no exercício da sua profissão e passou a encará-la de forma muito mais realista e pragmática.   

O sonho de glórias e de aventuras empolgantes estão distantes da realidade do soldado.   

Quando for empregado em operações de combate, sua competência e seu preparo profissional, afinal de contas, devem direcionar-se muito mais à sua própria sobrevivência, a de seu grupo ou, ainda, aos homens sob seu comando, do que à defesa muitas vezes vaga de causas políticas ou ideológicas. Elas sempre são fortuitas, passageiras e atendem muito mais aos interesses dos grupos que os patrocinam, do que à pátria propriamente dita. Mesmo porque, olhando para trás, na nossa história recente, as verdades de hoje, são muito diferentes das de ontem.

Nota DefesaNet

Este texto foi publicado originalmente em 2003, quando o Gen Maurer completava 40 anos de formatura na AMAN.

Republicamos como homenagem à memória do Gen Maurer e aos colegas que participaram dos Batalhòes Suez.

Publicaremos oportunamente mais outros 5 textos do General Maurer contando histórias e estórias vividas no Batalhão Suez.

O General Maurer faleceu em 05 de Fevereiro de 2014, aos 74 anos.

O Editor

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