DEMOCRACIA: Duas ou três coisas que eu sei sobre ela


DEMOCRACIA: DUAS OU TRÊS COISAS QUE EU SEI SOBRE ELA


Bolívar Lamounier


Ontem eu escrevi e postei um texto para discussão; escreveria muitos mais, se pudesse. Mas escrever, além de exigir tempo e envolver certo esforço físico, é inútil quando as ideias estão confusas, em fluxo, ainda sem forma.

Eu adoro discutir, mas me inclino a expor o que penso num plano relativamente abstrato; entendo que um certo vagar no esclarecimento dos conceitos torna a discussão mais produtiva. Não escrevo com a pretensão de indicar rumos a quem quer que seja, faço-o na expectativa de estimular a reflexão conjunta.

Tenho a firme convicção de que a compreensão das coisas é gradual e requer o esforço de muitas cabeças. Requer a TROCA de ideias; esta é uma das razões de eu gostar muito do Facebook, aqui a troca de fato acontece.

Certas teclas eu venho martelando desde o primeiro dia das manifestações. Tenho o Estado constitucional e a democracia representativa como valores inegociáveis. Sou pela ordem: depredações, vandalismo etc, não é comigo. Posso entender a violência contra uma ditadura ferrenha ou um Estado totalitário; mas não a entendo nem aceito no âmbito da democracia, nem mesmo de uma democracia como a nossa: defeituosa, cheia de problemas e que atravessa uma fase extremamente difícil.

Discordo portanto dos que dizem que no Brasil não há democracia, Com argumentos do tipo “não temos uma VERDADEIRA democracia” eu não vejo como concordar ou discordar, pois são argumentos de má qualidade: um emprego confuso das palavras.

Democracia, para mim, é um regime em que diferentes forças políticas competem pelo poder mediante eleições limpas e livres; em que uma proporção elevada dos cidadãos têm individualmente o direito de votar e de o fazer secretamente; em que a legitimidade da oposição seja reconhecida sem rodeios pelos ocupantes eventuais do poder, e vice-versa: a oposição reconheça sem rodeios a legitimidade dos eleitos para assumir o poder e governar; e em que há uma real separação de poderes, e assim por diante. Todos esses pontos presumem, como é óbvio, a plena observação dos direitos e garantias constitucionais dos indivíduos, grupos sociais, associações e partidos lícitos, bem como a liberdade de imprensa e de opinião.

Assim conceituada, a democracia deixa de existir onde haja muita corrupção entre os políticos? Muita desigualdade social? Muita criminalidade? Partidos como muitas rivalidades internas, pouca coesão, pouca identidade ideológica? Minha resposta é um rotundo NÃO.

A democracia NÃO deixa de existir nas circunstâncias apontadas – isso por muitas razões, dentre as quais vou mencionar três. Primeiro, porque ela é um tipo de regime (ou de sistema político, como queiram), não um modelo ideal de sociedade; não foi inventada para uma sociedade de anjos e nem mesmo para uma sociedade teoricamente humana, mas projetada num futuro distante e provavelmente impossível, como a “sociedade sem classes” dos marxistas.

Segundo, a democracia não começará a existir QUANDO todas as mazelas da vida humana forem erradicadas, porque a realidade é justo o oposto: ela existe, e existe há muito tempo, PARA QUE os indivíduos e grupos sociais possam lutar pela redução ou erradicação das referidas mazelas. Ou seja, ela não pressupõe que a solução dos problemas que nos angustiam na sociedade; o que ela faz é assegurar um ambiente institucional relativamente pacífico para que possamos combater as raízes de tais angústias. É portanto um arcabouço ou um “framework” para que a luta pelo poder se processe em liberdade mas sujeita a certos balizamentos.

Agora bem: o entendimento acima tem dois corolários imensamente importantes. O que chamamos de democracia não é algo “natural”, não aparece e cresce por si mesma; não é como uma planta, que se desenvolve realizando um código preexistente, já contido na semente – ou seja, como um princípio contido em sua origem. Ela se desenvolve na história, ao longo de certas etapas, e será marcada em cada uma dessas etapas pelo que as pessoas pensarem e fizerem – ou seja, de seus entendimentos da realidade, seus modos de pensar, suas ideologias e filosofias etc. Observem que coloquei estes termos no plural: é para frisar que tudo isso acontece em sociedades heterogêneas, diferenciadas, conflituosas. Homogeneidade e consenso só existem no cemitério.

Segundo: o ARCABOUÇO ou balizamento a que chamamos democracia constitui-se lentamente. Vou dar um exemplo. Lá em cima, eu incluí a legitimidade da oposição entre os componentes institucionais da democracia. Quando foi que isso se configurou claramente no mundo? Começou na Grécia, em Roma, na Idade Média? De forma alguma. Começou nos Estados Unidos, e não imediatamente após a adoção da Constituição. Configurou-se quase no meio do século 19!!! Alguém hoje consegue imaginar um país democrático onde isso não exista, ou seja, onde o direito de fazer oposição ao governo não seja reconhecido? É claro que não, e aí está: é um fato recente.

No Brasil, desde quando? Eu tenho para mim que a democracia brasileira começou a se constituir com a Constituição de 1824 – sorry viu, Zé Dirceu?-, mas essa questão da mútua legitimidade entre governo e oposição ficou encruada, ambígua, como uma fonte de crises e mais crises. Em 1950, o jornalista Carlos Lacerda escreveu na primeira página da Tribuna da Imprensa, jornal de sua propriedade: “O Sr Getúlio Vargas não deve se candidatar. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à força para derrubá-lo”.

Vejam pois o paradoxo: foi só após os 21 anos de governo militar e provavelmente por causa dele- por ele ter acontecido- que essa pedra no sapato de nossa democracia começou de fato a desaparecer. Digo “começou” por precaução. Não creio, sinceramente não creio, que Lula e o PT compreendam este assunto. Não lhes atribuo má fé democrática, não é isso. Minha precaução tem a ver com o tipo de ideologia que eles professam. Me parecem inegável que eles conservam aquele ranço totalitário dos antigos comunistas: aquela noção escatológica de que a história caminha para um “fim”, um paraíso terrestre, e de que eles são, mal comparando, o povo eleito, o partido que a Providência incumbiu de nos conduzir até lá. Nos conduzir por várias etapas, evidentemente; a etapa atual caracteriza-se pela “democracia burguesa”, então, para eles, ela é mais ou menos aceitável, mais ou menos legítima, mas outras etapas virão…

O “etapismo” é uma peça essencial em toda engrenagem totalitária. Entendamo-nos, pois: eu não digo que o PT e os partidos soi-disant de esquerda ajam de má fé, que tenham planos concretos para inviabilizar a democracia ou algo no gênero. Decididamente não. O que eu digo, e que de certa forma é mais grave, é que eles tem esse ranço, esse problema filosófico mal resolvido: o “etapismo” escatológico, e não compreendem que ele é absolutamente incompatível com a mútua legitimidade entre governo e oposição ou, se preferem, com a alternância no poder, que é a regra de ouro da democracia.

Os pontos tratados neste texto parecem-me preceder logicamente a analise de formatos ou modelos alternativos de democracia, que espero abordar no próximo.

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